Em 15 de novembro de 1889 um golpe de Estado protagonizado por militares instaurou a República no Brasil. Desde logo, é importante atentar para o significado da denominação habitual que o evento adquiriu, pois a própria forma pela qual a historiografia em geral a ele se refere já implica algumas ideias importantes. Em primeiro lugar, a de que teria ocorrido uma “proclamação”, um anúncio público de que a Monarquia fora substituída pela República, mudança esta que não encontrou resistência nem provocou luta. Logo surgem outras ideias associadas, como a de que a República no Brasil teria sido algo inevitável, uma etapa necessária da “evolução” da sociedade brasileira. Mais ainda, a de que o fácil sucesso do golpe de Estado teria sido o resultado de um quase consenso nacional, e de que os militares, principais protagonistas do movimento, teriam atuado de forma unida e coesa.
Não é essa a visão mais precisa que hoje se pode ter desses fatos. Se no dia 15 de novembro de fato praticamente não houve resistência, nos dias seguintes, em vários pontos do Brasil, estouraram revoltas protagonizadas por soldados e militares de baixa patente, episódios extremamente pouco conhecidos da história do país. Na época, esses movimentos foram bastante reprimidos, e houve censura aos jornais, o que fez com que ficassem mal conhecidos. Não foram revoltas de grande monta, mas foram indicativos de não havia um consenso na sociedade a respeito da necessidade da República.
Acima de tudo, não havia uma maioria republicana no país e nem mesmo unidade entre os militares. Havia muitos republicanos civis no final do Império, mas eles estiveram praticamente ausentes da conspiração. O destaque às vezes atribuído aos efeitos da propaganda republicana é exagerado. Em 1889, o poder eleitoral do Partido Republicano era pequeno. Em agosto daquele ano, na eleição para a Câmara dos Deputados, os três candidatos do partido na Corte receberam 12% dos votos. Nas províncias, o partido era uma força política significativa apenas no Rio Grande do Sul e em São Paulo, onde contava com cerca de 25% do eleitorado e estava em crescimento, devido ao apoio que passara a receber de muitos fazendeiros após o fim da escravidão. Para além dessa modesta força eleitoral, o Partido Republicano sempre foi, desde sua fundação em 1870, um partido dividido, tanto em termos ideológicos quanto em termos estratégicos e táticos, incluindo a avaliação sobre a conveniência de uma aliança com os militares para um golpe de Estado.
OS MILITARES E A REPÚBLICA
O golpe de 1889 foi um momento-chave no surgimento dos militares como protagonistas no cenário político brasileiro. A República então “proclamada” estaria por um século, em alguma medida, marcada por esse sinal de nascença (ou, em outra versão, pecado original). O golpe foi militar, em sua organização e execução. No entanto, ele foi fruto da ação de uma pequena e muito específica fração do Exército. Quase não houve participação da Marinha, nem de indivíduos na base da hierarquia militar. Também estiveram ausentes oficiais situados no topo da hierarquia. Dos generais, apenas Manuel Deodoro da Fonseca esteve presente. Os oficiais superiores podiam ser contados nos dedos, e o que mais se destacou entre eles não exercia posição de comando de tropa: o tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor de matemática na Escola Militar.
Quem foram, então, os militares que conspiram pela República e se dirigiram ao Campo de Santana na manhã do dia 15 de novembro de 1889 dispostos a derrubar o Império? Basicamente, um conjunto de oficiais de patentes inferiores do Exército (alferes-alunos, tenentes e capitães) que possuíam educação superior ou “científica” obtida durante o curso da Escola Militar, então localizada na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Na linguagem da época, eles eram a “mocidade militar”.
Essa versão dos acontecimentos difere em alguns pontos importantes das opiniões comumente disponíveis nos livros de história. Em algumas narrativas, Deodoro estaria unindo simbolicamente todo o Exército, em outras, estaria representando apenas os chamados “tarimbeiros”, oficiais mais ligados à tropa que geralmente não tinham estudos superiores e constituíam a maior parte da oficialidade. A atuação de Deodoro, no entanto, pode ser melhor compreendida como a de um chefe militar levado ao confronto com o governo motivado pelo que imaginava ser a defesa da “honra” do Exército e por algumas particularidades da política do Rio Grande do Sul, que havia chefiado havia pouco; não por convicções republicanas. Pouco antes do golpe, reuniu-se em torno de Deodoro um grupo muito pequeno de oficiais de patentes médias.
Todas as fontes disponíveis sobre o 15 de Novembro destacam a liderança que Benjamin Constant exercia sobre a “mocidade militar” formada na Escola Militar da Praia Vermelha, por ter sido durante muitos anos seu professor de matemática. Ele seria o “mestre”, “líder”, “catequizador” ou “apóstolo”, desses militares. Para vários autores, principalmente os vinculados à tradição positivista, Benjamin e seus jovens liderados teriam sido o principal elemento na conspiração. Igualmente importante para a compreensão do movimento que levaria ao golpe republicano é, no entanto, focalizar não apenas o “líder” ou “mestre”, mas também seus pretensos “liderados” ou “discípulos”. Quando se examina com atenção as fontes documentais hoje disponíveis, a imagem que resulta é diferente. Ao invés de assistirmos a Benjamin Constant catequizando os jovens da Escola Militar, encontramos justamente a “mocidade militar” atraindo-o e convertendo-o para o ideal republicano. Nessa versão, portanto, cabe à “mocidade militar” o papel de principal protagonista da conspiração republicana no interior do Exército.
Formados pela Escola Militar da Praia Vermelha (então chamada de Escola Militar do Brasil), esses jovens contavam com dois poderosos elementos de coesão social: a mentalidade “cientificista” predominante na cultura escolar e a importância dada ao mérito pessoal. Esses elementos culturais informaram a ação política que levou ao fim da monarquia e à instauração de um regime republicano no Brasil.
A supervalorização da ciência, ou “cientificismo”, expressava-se na própria maneira pela qual os alunos se referiam informalmente à Escola — “Tabernáculo da Ciência” —, deixando desde logo evidente a alta estima que tinham pelo estudo das ciências. É importante observar que a Escola Militar foi durante muito tempo a única escola de engenharia do Império. Como a Escola não era passagem obrigatória para a ascensão na carreira militar, havia um fosso entre os oficiais formados na Escola Militar e o restante (a maioria) da oficialidade do Exército, sem estudos superiores, mais ligados à vida na caserna, com a tropa.
Por outro lado, durante todo o Império, foi clara a hegemonia dos bacharéis em direito no interior da elite. Enquanto o status social dos militares era baixo, os jovens bacharéis em direito tinham caminho aberto para cargos e funções públicas em todos os quadros administrativos e políticos do país. Os jovens “científicos” do Exército tinham que lutar para situar‑se melhor dentro de uma sociedade dominada pelos bacharéis.
O republicanismo da “mocidade militar” era oriundo da valorização simbólica do mérito individual somada à cultura cientificista hegemônica entre os alunos e jovens oficiais “científicos”. A “mocidade militar” era francamente republicana desde muito antes da “Questão Militar” de 1886-1887, geralmente considerada um marco da radicalização política dos militares ao final do Império. Já na década de 1870, alunos da Escola Militar criaram clubes secretos republicanos. Entre a “mocidade militar” não havia, no entanto, clareza a respeito de como a República vindoura seria organizada. Parece ter sido suficiente saber que se tratava da única forma científica de governo, aquela onde reinaria o mérito, ordenador de toda a vida social. A falta de definição a respeito de como seria a República facilitou, por um lado, a unidade de pensamento e ação da “mocidade militar” antes do golpe de 1889; por outro lado, ajudou a apressar sua fragmentação tão logo a República foi instituída.
Foi com esse espírito “científico” e republicano que a “mocidade militar” participou ativamente da conspiração que levou ao fim da monarquia no Brasil. Nesse processo, esses jovens conseguiram atrair alguns oficiais não politizados — como Benjamin Constant — e outros de perfil mais troupier, como Deodoro. Apesar de poucos, esses oficiais mais graduados foram importantes para passar à nação e ao Exército a idéia de que representavam o conjunto da “classe militar”.
O 15 DE NOVEMBRO
Há versões discordantes quanto a haver ou não uma data prevista para golpe. De qualquer forma, durante toda a noite do dia 14, oficiais inferiores dos regimentos de artilharia e cavalaria da Corte, além dos alferes-alunos da Escola Militar, rebelados, organizaram a saída das tropas para atacar o governo. O presidente do Conselho de Ministros do Império, Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, informado do que se passava, convocou diversas unidades e se refugiou com o ministério no Quartel-General do Exército, de onde deveria ser organizada a resistência ao golpe.
Do lado dos golpistas, toda a preparação da tropa para o combate se deu sem a presença de Benjamin e Deodoro. Ao final da madrugada do dia 15, os rebelados foram buscar Benjamin em casa, para que comandasse as tropas no deslocamento em direção ao QG. A ausência de Deodoro, seriamente doente, era motivo de preocupação, pois só ele teria ascendência suficiente sobre a tropa — especialmente sobre os batalhões de infantaria da 1ª Brigada do Exército, que não estavam com os revoltosos. Para surpresa de todos, no entanto, avisado da movimentação, Deodoro levantou-se e foi ao encontro das tropas sublevadas, já em movimento, que passou então a comandar.
Do lado do governo, Ouro Preto tentou inutilmente organizar a resistência. As tropas rebeladas entraram no Campo de Santana no início da manhã. Seriam talvez uns seiscentos homens, incluindo os três regimentos da 2ª Brigada e os alferes-alunos da Escola Militar. Em termos bélicos, era uma tropa muito problemática. Já a tropa arregimentada pelo governo e disposta no interior ou nas imediações do QG era muito mais bem estruturada e muito maior: seriam talvez umas duas mil pessoas, incluindo batalhões de infantaria, fuzileiros navais, marinheiros, Polícia da Corte e Corpo de Bombeiros. Mas não houve disposição em dar combate, apesar das repetidas ordens dadas por Ouro Preto nesse sentido ao ajudante-general do Exército, Floriano Peixoto, que deveria comandar a defesa do governo. A única ação em defesa do governo foi isolada: o ministro da Marinha, barão de Ladário, chegando atrasado para unir-se às tropas no interior do QG, sacou sua arma e recebeu alguns tiros; mesmo ferido, não morreu. Os revoltosos puderam posicionar seus canhões em frente ao QG sem que fossem incomodados.
Convencido da falta de disposição para a resistência, Ouro Preto reuniu-se então com o ministério e capitulou. Deodoro, seguido dos principais militares rebelados, ingressou a cavalo no interior do QG, foi saudado pela tropa e ordenou uma salva de tiros de canhão. Passados alguns instantes, Deodoro entrou na sala em que estavam reunidos os ministros e anunciou que organizaria outro ministério de acordo com as indicações que iria levar ao imperador.
Os motivos para a falta de reação por parte das tropas do governo podem ser encontrados, em parte, nos longos anos de insatisfação profissional dos militares; outra parte deve ser creditada à falta de uma liderança disposta a tomar a iniciativa do combate, tão essencial nesses momentos, e cuja ausência rapidamente transforma situações de clara superioridade tática em derrotas completas. A conhecida inabilidade de Ouro Preto no trato com os militares também parece ter dado sua parcela de contribuição para a falta de resistência. O fato é que, naquela manhã de 15 de novembro de 1889, configurou-se uma situação de confronto entre “militares” e “casacas”, como os primeiros denominavam pejorativamente os civis, vencendo a “classe militar” que falava em nome da nação. Não no sentido desejado por Benjamin e pelos jovens republicanos, todavia. Deodoro não falara em mudança de regime ao derrubar o ministério, e sim em entender-se com o imperador para organizar novo ministério. Há mesmo a versão — negada enfaticamente por todos os partidários de Deodoro, e motivo de infindáveis discussões futuras — de que ele teria, ao sair do edifício, erguido um “viva” ao imperador.
Na tarde do dia 15, republicanos militares e civis ainda estavam inquietos, por não ter sido formalmente instituída a República. Muitos, incluindo Benjamin, seguiram para a casa de Deodoro. O fato é que apenas à noite se formalizou a constituição do governo provisório — Deodoro (presidente), Benjamin (Guerra), Quintino Bocaiúva (Relações Exteriores), Rui Barbosa (Fazenda), Aristides Lobo (Interior), Campos Sales (Justiça), Eduardo Wandenkolk (Marinha) e Demétrio Ribeiro (Agricultura) — e se assinou o primeiro decreto, que dizia, em seu artigo 1º: “Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de governo da Nação Brasileira — A República Federativa”.
É importante atentar para o fato de que a República foi proclamada provisoriamente. Esse mesmo decreto dizia, em seu artigo sétimo, que se aguardaria “o pronunciamento definitivo da Nação, livremente expressado pelo sufrágio popular”. O plebiscito só seria realizado 104 anos mais tarde, em 1993. A República obteve 86,6% dos votos válidos, contra 13,4% para a Monarquia. Na época, obviamente, República e Monarquia já tinham um sentido completamente diferente daquele que tinham em 1889.
Celso Castro
[Verbete do Dicionário histórico-biográfico da Primeira República 1889-1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu/FGV]
FONTES: Arq. pessoal de Benjamin Constant (Museu Casa de Benjamin Constant, Rio de Janeiro); CASTRO, C. Militares; CASTRO, C. Proclamação; LEMOS, R. Benjamin Constant.