O nome Contestado não faz jus à complexidade do movimento que eclodiu no sul do Brasil no ano de 1912. A contestação dos limites territoriais entre Paraná e Santa Catarina foi apenas uma das muitas fagulhas a despertar uma das maiores revoltas sociais ocorridas no campo em território nacional. Apesar de insuficiente, o título diz muito sobre aqueles que possuem poder de registrar os feitos históricos, assim como sobre a prioridade política na resolução desse conflito: com a intervenção federal na região – ocorrida em setembro de 1914 –, urgia eliminar a disputa entre as lideranças políticas dos estados vizinhos e impedir que o movimento se alastrasse para além das fronteiras paranaenses e catarinenses. Tais disputas colocavam em risco o domínio das oligarquias e ameaçavam comprometer o jogo político nacional.
A REVOLTA SOCIAL
O conflito do Contestado emergiu da reunião de fiéis em torno da figura carismática de José Maria: curandeiro e rezador a quem a população do planalto catarinense denominava monge. Não se tratava de título concedido pela Igreja Católica, uma vez que lhe fora conferido por sua prática como curandeiro. Além do monge José Maria, haviam passado pela região, antigo caminho de tropas que ligava o Rio Grande do Sul a Sorocaba, outros viandantes, de nome João Maria. O primeiro, em 1844, e o segundo, no momento da Revolução Federalista (1893-1895). O terceiro monge, José Maria, trouxe consigo práticas similares a dos antigos: benzeduras, conselhos aos necessitados, porções de cura para os doentes. Em função disso foi associado aos demais ao se instalar nas proximidades do município de Curitibanos no ano de 1912.
O superintendente desse município catarinense, no temor de que José Maria lhe fizesse oposição política, enviou correspondência ao presidente do estado – Vidal Ramos – denunciando a aglomeração de pessoas reunidas em redor do monge. Em suas palavras, ali se verificava um “ajuntamento de fanáticos” predispostos a proclamar a monarquia no sul do Brasil. Apesar de infundada, a justificativa foi suficiente para que Vidal Ramos organizasse uma pequena diligência policial com a ordem de dispersar o grupo. Avisado a tempo do movimento da força catarinense, José Maria deslocou-se com seus seguidores para Irani, pequena localidade pertencente a Palmas e em litígio judicial entre Paraná e Santa Catarina.
A chegada do grupo a Irani, em outubro de 1912, foi vista pelos paranaenses como uma tentativa de os vizinhos tomarem posse de um território contestado judicialmente. Como resposta, o governador Carlos Cavalcanti de Albuquerque enviou um destacamento do Regimento de Segurança do Paraná para expulsar os supostos invasores. No confronto morreram 11 soldados e seis seguidores de José Maria, além do próprio monge e do comandante oficial do regimento, João Gualberto Gomes de Sá.
Na primeira metade de 1913, novos fiéis se reuniram em Taquaruçu na expectativa do retorno do monge, que regressaria acompanhado do “Exército Encantado de São Sebastião”. A liderança do grupo foi iniciada por uma adolescente de 11 anos de idade chamada Teodora. Ela dizia conversar em sonho com José Maria e receber deste a incumbência de orientar os fiéis para a guerra santa. Nesse momento, o movimento começou a construir linguagem própria e um programa com características messiânicas e milenares. Além disso, passou a agregar pessoas com interesses e proveniências diversas: opositores dos coronéis locais, desempregados da ferrovia que atravessava a região, a Brazil Railway Company, ex-funcionários da madeireira e colonizadora internacional Southern Brazil Lumber and Colonization Company, fazendeiros interessados na questão de limites territoriais e aventureiros. Somaram-se a esses os pobres e despossuídos de suas terras, vítimas das atividades de grilagem expandidas na região com a chegada do capital estrangeiro, representado pelas empresas citadas, todas ligadas ao grupo de Percival Farquhar.
A partir de dezembro de 1913, o governo catarinense começou a montar expedições militares para desmobilizar o movimento organizado na localidade de Taquaruçu. Após algumas ações malogradas, em fevereiro de 1914 essa comunidade foi destruída. Além dos guerreiros de São Sebastião, mulheres, crianças e idosos foram mortos. O massacre figurou como questão fundamental para fortalecer o movimento. A partir desse episódio, os fiéis começaram a expandir suas ações. Novos pontos rebeldes se multiplicaram na região, por meio da proliferação das chamadas cidades santas, ou redutos, na linguagem militar: Caraguatá, Bom Sossego, Pedra Branca, Papudo, Aleixo, São Pedro, Tavares e a famosa Santa Maria compunham um cenário complexo de vilas espalhadas pelo planalto catarinense sob a inspiração de João Maria e de São Sebastião. O raio de domínio dos sertanejos rebeldes chegou a atingir 28 mil quilômetros quadrados, e a maior das cidades – Santa Maria – teve uma população estimada em 25 mil pessoas distribuídas em 5.500 casas, o que lhe rendeu a comparação com Belo Monte em Canudos.
Em suas ações, os sertanejos do Contestado construíram pauta de reivindicações elaboradas a cada nova ação de combate. Entre as exigências constavam a deposição política de coronéis da região, a resolução do litígio de limites territoriais favorável à Santa Catarina, o deslocamento da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, madeireira e colonizadora de terra multinacional instalada na região, a punição dos crimes cometidos contra mulheres e crianças mortas em ações militares, a distribuição e o reconhecimento de título de propriedade de terras aos sertanejos e a deposição do presidente da República, Hermes da Fonseca.
Estima-se que o movimento dominou uma área com aproximadamente 80 mil pessoas. A expansão do movimento, bem como suas reivindicações, preocupou não apenas os governantes dos estados do Paraná e de Santa Catarina, como também a imprensa nacional da época e o presidente Hermes da Fonseca. Periódicos da capital federal, como A Noite, Correio da Manhã, Fon-Fon, Careta e O Malho foram alguns dos meios que noticiaram o conflito do Contestado. Além disso, a importante revista militar A Defesa Nacional, criada pelos chamados “jovens turcos” em outubro de 1913, cobriu ativamente a atuação do Exército no Contestado.
Denunciou-se na imprensa o perigo de repetir-se no Sul do Brasil o ocorrido em Canudos pouco mais de uma década antes. Os ataques tinham como mira o governo federal liderado por Hermes da Fonseca, mas também as ações do Exército na repressão ao conflito. Apontada como despreparada bélica e ideologicamente, a corporação militar não gozava de grande prestígio social à época. Desde a proclamação da República tentava-se implementar as reformas que dariam novo ânimo às forças armadas e as equiparariam às suas congêneres na América Latina. O projeto de modernização do Exército contemplava a contratação de missão militar estrangeira – alemã ou francesa – para treinar os oficiais brasileiros, a renovação dos equipamentos bélicos, tidos como obsoletos, e a reforma e a expansão dos quartéis militares, entre outras questões. O ponto máximo da reforma seria a aprovação da lei que acabaria com o sistema de recrutamento militar voluntário por outro que fosse por sorteio. A lei foi aprovada em 1908, mas, por falta de apoio político, só foi colocada em prática em 1916.
Nesse contexto, a atuação do Exército na Guerra do Contestado reacendeu a discussão da lei do sorteio ao colocar a doutrina militar na ordem do dia. Contribuiu para tal audiência a atuação da Liga de Defesa Nacional, criada em 1914 com a intenção de despertar o sentimento patriótico na juventude brasileira, tendo como referência o ingresso dessa parcela da sociedade nas forças armadas, além da eclosão da Primeira Guerra Mundial no cenário europeu.
Incapazes de solucionar o conflito e almejando benefícios políticos, em agosto de 1914, os presidentes do Paraná, Carlos Cavalcanti de Albuquerque, e de Santa Catarina, Vidal Ramos davam ao governo e ao Exército as armas necessárias para planejar uma grande operação de guerra no Sul do Brasil. Sob o comando do general Fernando Setembrino de Carvalho, a Campanha do Contestado figurou como laboratório e vitrina para o projeto de modernização do Exército brasileiro.
A CAMPANHA MILITAR
Ao deslocar-se para o Sul do Brasil, Setembrino de Carvalho mobilizou aproximadamente seis mil soldados, contratou mais de dois mil civis – denominados vaqueanos – para auxiliar o Exército, e desfalcou os cofres públicos para promover na região grandes manobras militares, mobilizar equipamentos importados e restaurar a imagem pública do Exército brasileiro, imaginado pela população como espaço de banditismo, de práticas homossexuais e de castigo corporal.
No campo de batalha, Setembrino de Carvalho soube manejar com destreza a tecnologia fotográfica e usá-la em prol dos interesses militares: montou álbum com mais de 80 fotos das ações do Exército no Contestado e as fez publicar em sua maioria na prestigiada revista Fon-Fon. Com essa estratégia desacreditava as informações publicadas nos jornais de oposição que denunciavam massacres, estupros e despreparo dos soldados nas ações de guerra. Nas imagens selecionadas, o Exército brasileiro era equiparado ao alemão: equipamento de primeira linha, soldados uniformizados e disciplinados. Em suma, um exército desejado, pronto para receber os jovens brasileiros em suas fileiras e torná-los verdadeiros patriotas, tal como pregava o poeta Olavo Bilac em sua peregrinação em nome da Liga de Defesa Nacional.
Ao deixar a região em maio de 1915, o governo federal havia desmobilizado totalmente o movimento do Contestado, prendido a maioria dos líderes, garantido o status quo dos políticos locais, protegido os interesses da madeireira e colonizadora multinacional e equipado belicamente os coronéis e seus capangas. As últimas operações militares ficaram sob o comando do capitão Vieira da Rosa, oficial catarinense e intelectual afamado no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. A maior parte do efetivo sob o comando desse oficial era composta por vaqueanos, ou seja, antigos coronéis e jagunços inimigos diretos dos sertanejos. Distante do olhar da imprensa, com a retirada da força federal, as ações de violência na região foram intensificadas de tal forma que um dos maiores pesquisadores do movimento – Maurício Vinhas de Queiroz – denominou essa fase “açougue do Contestado”.
O ano de 1916 é registrado, oficialmente, como o fim do conflito social no Sul do Brasil. Nesse ano ocorreu a prisão do último grande líder do movimento – Adeodato Ramos – e foi assinado o tratado de limites territoriais entre Paraná e Santa Catarina. Esse evento ocorreu no salão nobre do palácio presidencial no Catete, no Rio de Janeiro, e foi aclamado pela imprensa como marco da pacificação do conflito. Na ocasião da assinatura do acordo estiveram presentes o então presidente da República, Venceslau Brás, o presidente do Paraná, Afonso Alves de Camargo, e o de Santa Catarina, Felipe Schmidt, além de outras autoridades civis e militares. Nesse mesmo ano ocorreu o primeiro sorteio militar nas forças armadas brasileiras e foi publicado o primeiro volume – de uma série de três – da história da Campanha do Contestado, escrita por um oficial do Exército que participou da ação militar, Dermeval Peixoto. O autor foi totalmente influenciado pela leitura do clássico Os sertões de Euclides da Cunha. Na escrita de Peixoto, o Contestado ressurgiu das cinzas de Canudos, com a diferença que nas ações militares desenvolvidas no Sul do Brasil entre 1912-1916 o Exército Brasileiro renasceu forte e vigoroso.
Rogério Rosa Rodrigues
FONTES: BEATTIE, P. Tribute; ESPIG, M. Presença; GALLO, I. Contestado; MACHADO, P.; ESPIG, M. Guerra; MACHADO, P. Lideranças; MCCANN, F. Soldados; MONTEIRO, D. Errantes; PEIXOTO, D. Campanha (v.3); QUEIROZ, M. Messianismo; RODRIGUES, R. Veredas.