Confronto entre o Exército e os participantes de um movimento popular de fundo religioso liderado por Antônio Conselheiro, ocorrido na comunidade de Canudos, no interior da Bahia, em 1897.

           

ANTÔNIO CONSELHEIRO

A Guerra de Canudos pode ser compreendida no quadro de movimentos sociais que eclodiram em alguns pontos do território nacional e sacudiram a República nascente, a partir da primeira Revolta da Armada (1893) até a Guerra do Contestado (1912-1914). De todos esses movimentos, Canudos foi o mais célebre. Isso se explica, em parte, pelo contorno específico de seu desfecho fatal, mas, sobretudo, pelo fato de que foi objeto da narrativa de Os sertões, de Euclides da Cunha, obra lançada em 1902 que fez grande sucesso nos meios literários brasileiros.

Da narrativa euclidiana da Campanha de Canudos surgiu um personagem, ligado umbilicalmente ao movimento: Antônio Conselheiro, espécie de monge, apóstolo e profeta peregrino. Não que não houvesse outros andarilhos no sertão arrebanhando fiéis, com suas prédicas e sermões. A prática não era original. Basta lembrar o monge Francisco de Mendonça Mar, fundador do santuário de Bom Jesus da Lapa, que antecedeu o Conselheiro em andanças em quase dois séculos. O fato é que a geografia e o modelo de organização social dos sertões se constituíram como base ideal para o surgimento de inúmeros movimentos de cunho messiânico.

Por outro lado, não se deve deixar de compreender o personagem Antônio Conselheiro como resultado das experiências do homem real, Antônio Vicente Mendes Maciel, e do ambiente em que se desenrolou sua vida. Filho de um comerciante, de uma das mais tradicionais famílias nordestinas, perdeu a mãe ainda criança. Como a família Maciel estivesse em guerra permanente com os Araújos, num desses conflitos de clãs, comuns no Nordeste brasileiro, Antônio foi enviado ao seminário, mas não chegou a ordenar-se. De seu casamento, apenas nos chegou a notícia de que foi fracassado e a mulher o abandonou.      

Nada se sabe sobre o início de sua atividade religiosa e peregrina pelo interior da Bahia – apenas que, por volta de 1876, suspeito do assassinato da esposa, o monge despertou a atenção da Corte do Império. Julgado e absolvido na terra natal, Quixeramobim (CE), tão-logo deixou o Júri, seguiu de volta para o interior da Bahia e retomou a atividade religiosa e a vida de penitente. A partir daí, aspectos de sua trajetória pessoal foram associados à ocorrência de milagres, não faltando quem visse em sua figura a reencarnação de dom Sebastião. E de vila e vila, a pregar, sempre, o Conselheiro era seguido por “multidão contrita, em silêncio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino”, segundo Euclides da Cunha.

Às voltas com o crescimento da pressão abolicionista e republicana, a política do Império entendeu que o assunto era da alçada da província baiana; se houvesse alguma ilegalidade nos atos do andarilho, que se tratasse como caso de polícia, e alguma heresia, que a resolvesse a cúria. Essa indiferença da política imperial frente ao crescimento do messianismo conselheirista nos sertões se verificou, igualmente, de correspondência trocada entre o presidente da Bahia e o ministro dos Negócios do Império, para o qual Antônio Conselheiro não passava de um doido, que deveria ser recolhido ao hospício de alienados.

A Proclamação da República modificou a visão do poder central acerca de Antônio Conselheiro e seu movimento, que passaram a ser vistos como ameaças à ordem constituída. Em 1893, o Conselheiro e seus seguidores, depois de duas décadas de andanças, finalmente se fixaram em Canudos, ao pé do morro da Favela, às margens do rio Vaza-Barris, numa antiga fazenda abandonada no interior da Bahia. Ali Antônio Conselheiro fundou o arraial do Belo Monte, e a notícia se espalhou, fazendo multiplicar o número de seguidores. Entre andarilhos, ex-escravos, jagunços, vítimas da seca, a gente pobre de que o Nordeste estava cheia, chegou-se a supor que viveram no arraial cerca de 30 mil pessoas, sob um regime comunal e de religiosidade severa.

 

A CAMPANHA

A primeira arremetida contra os seguidores do Conselheiro decorreu de uma avença entre os moradores de Belo Monte e comerciantes de Juazeiro (BA), os quais não efetuaram a entrega de materiais na data aprazada, fazendo paralisar as obras da construção de uma igreja. Em fins de 1896, marchando até aquela cidade para cobrar o compromisso, os peregrinos foram interceptados por forças policiais baianas, que foram duramente derrotadas. À nova investida de tropas legalistas, houve a repetição da vitória dos conselheiristas, que souberam resistir em Canudos. Ajudados ainda pela topografia acidentada da região, os habitantes de Belo Monte rechaçaram as tropas chefiadas pelo major Febrônio de Brito.

Prontamente, então, sob clima de comoção nacional, formou-se a terceira expedição, agora exclusivamente de tropas do Exército, cuja chefia ficou a cargo do coronel Antônio Moreira César. Figura controvertida, embora considerado um dos principais comandantes militares de seu tempo, Moreira César, por sua atuação em Santa Catarina no fim da Revolta da Armada, transformara-se num mito. Contudo, no início de 1897, novo desastre. Após uma série de equívocos de seu comandante, que ignorou as dificuldades do clima e da geografia do sertão, a força legalista foi outra vez derrotada, e Moreira César foi morto em Canudos.

 A notícia do novo fracasso do governo levou à imediata certeza de que no arraial havia elementos ligados à restauração e que ali se tramava contra a República. Suspeitava-se que os fanáticos eram ajudados com recursos por alguns poderosos locais, sequiosos ante a possibilidade do retorno à antiga ordem monárquica. As notícias de cadáveres e esqueletos vestindo dólmãs, soldados decapitados, oficiais empalados pelos seguidores do Conselheiro, circularam pelos centros urbanos. Para o autor de Os sertões, a tragédia foi um “afloramento originalíssimo do nosso passado, patenteando todas as falhas de nossa evolução”. Canudos significaria um atentado contra a ordem e o progresso, a eclosão de um mundo de trevas, em que se agitavam mestiços originados de uma combinação degradante de raças, um empecilho no caminho da realização do projeto civilizatório da República.

Mobilizada a opinião pública, sobretudo na capital federal, a reação foi uníssona. Era urgente uma reação firme e exemplar: “Todos clamavam pelo aniquilamento dessa ameaça à novel República. Os estudantes assinaram uma petição exigindo a liquidação dos sequazes. Deputados e senadores não discutiam outra coisa no parlamento. Os jornais tratavam a derrota como calamidade nacional”, no dizer de Walnice Nogueira Galvão. Euclides da Cunha, inclusive, foi dos que ajudaram na propagação da hipótese segundo a qual em Canudos se lutava pela restauração, depois que publicou no jornal O Estado de S. Paulo, em março de 1897, dois artigos em que comparava os seguidores de Conselheiro aos camponeses da Vendéia francesa – o movimento que, segundo François Furet, foi “o conflito mais simbólico do ano de 1793, que colocou em luta, em campina rasa, a Revolução e o Antigo Regime”.

Em todas as circunstâncias, a participação do Exército foi fundamental para a vitória das forças da ordem vigente e o desmantelamento dos movimentos sociais que eclodiram entre 1893 e 1916. Por outro lado, uma das principais particularidades de Canudos foi a tenacidade com que os revoltosos suportaram o assédio das forças do governo.

Todavia, frente à quarta expedição, Canudos não resistiu. Da vitória das forças comandadas pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães e pelo ministro da Guerra Carlos Machado de Bittencourt, em outubro de 1897, resultou o saldo de mais de 20 mil mortos e o arraial do Belo Monte incendiado. Para Walnice Nogueira Galvão, “com a guerra de Canudos se completa o processo de consolidação do regime republicano” e se exorciza, de vez, o “espectro de uma eventual restauração monárquica”.

Ainda em 1897, o médico e criminologista Raimundo Nina Rodrigues, seguidor das teses de Cesare Lombroso e Scipio Sighele, tomou medidas no crânio do profeta rebelde Antônio Conselheiro, depois que lhe exumaram o cadáver, esperando poder explicar o fanatismo religioso dos conselheiristas através das proporções volumétricas da cabeça de seu líder.

 

Eduardo Junqueira

 

FONTES: CASCUDO, L. Dicionário; CHAVES, E. Nina (v. 8, p. 29-37); CUNHA, E. Sertões; FURRET, F. Vendéia; SILVA, R. Antônio Conselheiro; WALNICE, N. Sertões.