O Brasil foi a única economia latino-americana a não suspender o serviço de sua dívida externa desde o lançamento do primeiro empréstimo externo, em 1824, até o começo da vigência do primeiro funding loan (empréstimo de consolidação), em 1898. A partir do fim da década de 1890, entretanto, seguiram-se, com regularidade, crises de balanço de pagamentos e negociações de funding loans. Esses sucessivos empréstimos de consolidação, em 1898, 1914 e 1931, permitiram o alívio do serviço da dívida externa, a solução de crises de liquidez e a retomada do endividamento externo no médio prazo nos dois primeiros episódios. Este verbete trata dos fundings de 1898 e de 1914 e, à guisa de conclusão, faz referência ao funding de 1931.    

 

O FUNDING LOAN DE 1898

A economia brasileira enfrentou dificuldades de balanço de pagamentos na década de 1890, depois que se esgotou o boom do Encilhamento. O montante da dívida externa havia aumentado substancialmente no final do Império, tornando a economia vulnerável a choques externos. Na esteira da proclamação da República, caiu o saldo da balança comercial e diminuiu a entrada de novos empréstimos. O resultado foi uma vertiginosa queda da taxa de câmbio de 27 pence por mil réis em 1889 para 7 pence em 1898.  A crise financeira do Brasil estimulou a busca de soluções que atenuassem a crise cambial.  

O manifesto eleitoral de Campos Sales enfatizava a prioridade no saneamento financeiro da República: “A restauração das finanças é a obra ingente que se impõe às preocupações patrióticas do governo da Republica... Muito terá feito pela República o governo que não fizer outra coisa senão cuidar das suas finanças”.  Em meio à sua viagem à Europa, em seguida à vitória eleitoral (1/3/1898), Campos Sales foi informado de que Tootal, gerente do London & River Plate Bank em Paris, havia feito em nome dos credores, no Rio de Janeiro, proposta relativa a um funding loan. A inspiração argentina do funding loan era clara. No início da década de 1890, a Argentina havia sofrido a crise Barings, enfrentando enormes dificuldades de balanço de pagamentos, e foi obrigada a renegociar o serviço da dívida externa. Negociou, no início de 1891, um funding loan à taxa de juros de 6%, com a finalidade de refinanciar integralmente os pagamentos de juros e garantias ferroviárias, por três anos, entre 1891 e 1893. Havia o compromisso de que o governo central não assumiria compromissos financeiros adicionais por três anos. O arranjo do funding argentino não foi, entretanto, mantido, sendo substituído pelo Arreglo Romero, que reduzia os pagamentos programados. 

A proposta inicial de Tootal solicitava como garantia de um empréstimo de 10 milhões de libras, a receita de todas as alfândegas da República, da Estrada de Ferro Central do Brasil e do serviço de abastecimento d’água da capital federal. Obrigava à retirada de circulação, ao câmbio de 12 pence/mil réis, do papel moeda equivalente, e que esta soma fosse recolhida a determinados bancos estrangeiros e incinerada publicamente. Campos Sales, na Europa, visitou os escritórios de N. M. Rothschild & Sons Limited, e teriam sido suas ponderações que possibilitaram a retirada da Central e do serviço de águas da lista inicial de garantias e um acordo final quanto a um valor de 18 pence/milréis, para estabelecer o montatnte a retirar de circulação. A emissão dos títulos do funding loan, à taxa de 5%, respeitado o limite de 10 milhões de libras, abarcaria o serviço de juros dos empréstimos externos federais, bem como do empréstimo interno em ouro de 1879, e as garantias ferroviárias. A garantia do empréstimo era a arrecadação das alfândegas do Rio de Janeiro e, subsidiariamente, as de outros portos brasileiros. Previa-se a suspensão das amortizações de todos os empréstimos incluídos no funding por 13 anos, e durante três anos seriam lançados, a 100%, títulos do novo empréstimo à medida que maturassem juros de empréstimos e prazos de pagamentos de garantias ferroviárias. O serviço do próprio funding se restringiria a juros até 1911, quando seria iniciada a amortização por 50 anos. À medida que fossem lançados os títulos do novo empréstimo, o meio circulante equivalente, convertido à taxa cambial de 18 pence/mil réis, seria recolhido e incinerado em um dos bancos estrangeiros credenciados – London and River Plate Bank, London and Brazilian Bank e Brasilianische Bank für Deutschland – a partir de 1º de janeiro de 1899 para títulos emitidos de 1º de julho a 31 de dezembro de 1898, e depois pari passu. A casa N. M. Rothschild & Sons Limited solicitou de Campos Sales sua garantia de que aprovava o “plano”, pois, “embora lamentassem profundamente uma suspensão de pagamentos em espécie”, haviam recomendado a sua aceitação por parte dos credores brasileiros. Segundo os banqueiros do Brasil, a carta dar-lhes-ia a “coragem” necessária para fazer essa gestão junto aos credores, podendo demonstrar que nada haviam negligenciado na salvaguarda de seus interesses. Campos Sales ofereceu essa garantia solicitada em termos que seriam duramente criticados pela oposição: “Posso assegurar-vos que… o governo brasileiro terá grande empenho [la plus particulière sollicitude] para dar [ao acordo] plena e inteira execução em todos os seus termos.” O visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros imperial, condenou taxativamente os termos da negociação do funding loan, especialmente a obrigação de transferência de depósitos para incineração por bancos estrangeiros e o compromisso de não lançar empréstimo pelo prazo de duração do funding loan. O funding loan, por outro lado, sofreu fortes críticas de uma parte da imprensa financeira londrina, que o classificou como “arranjo confiscatório”, mas nada que se pudesse comparar às críticas que se acumulariam no Brasil contra Murtinho e as consequências de seu programa de estabilização sobre o nível de atividade e o sistema financeiro, em especial o impacto da significativa apreciação cambial ocorrida.

 

O FUNDING LOAN DE 1914

Entre 1900 e 1905, dobrou o saldo em circulação dos empréstimos externos tomados pelo Brasil. Entre 1905 e 1913, esse saldo dobrou novamente. A “janela de oportunidade” que se abriu no mercado financeiro internacional permitiu significativo aumento da dívida externa, tornando a economia brasileira, a exemplo de outras economias em desenvolvimento, extremamente vulnerável a qualquer perturbação que afetasse fluxos de capital e exportações. A partir de 1912, o Brasil enfrentou uma sucessão de eventos que transformaram radicalmente a posição do seu balanço de pagamentos. O serviço da dívida havia sido retomado a partir de 1909. As exportações de café reduziram-se com a queda de preços decorrente da venda de estoques determinada pela justiça norte-americana com base no Sherman Act. As exportações de borracha caíram rapidamente, em vista do impacto da entrada no mercado mundial da borracha plantada asiática.

Longas negociações em Londres sobre o lançamento de um grande empréstimo brasileiro foram suspensas em 27 de junho de 1914, apenas um dia antes que a Áustria-Hungria declarasse guerra à Sérvia, e se generalizasse a guerra na Europa. No início de setembro, o Brasil, em seguida à suspensão de pagamentos relativos ao serviço da dívida externa devidos a partir de 1º de agosto de 1914, comunicou que estava estudando as condições para oferecer um empréstimo de consolidação aos credores externos do governo federal.  O segundo funding loan, que não incluía condicionalidades fiscais, teria um capital nominal máximo de 15 milhões de libras, emitido ao par, 63 anos de prazo de amortização com início de resgate em 1927, taxa de juros de 5%, e seria garantido pela receita da alfândega do Rio de Janeiro e, subsidiariamente, de todas as outras alfândegas. Seriam suspensas as amortizações de todos os empréstimos federais denominados em libras ou francos até 1º de agosto de 1927,  e os juros desses empréstimos que vencessem entre 1º de agosto de 1914 e 31 de julho de 1917 seriam refinanciados pelos novos títulos. Ficava vedada por três anos a emissão de novos empréstimos externos.

 

O FUNDING LOAN DE 1931

A partir de 1925, com a recuperação de economia e o novo boom no mercado internacional de capitais, houve novamente um rápido aumento do endividamento externo público brasileiro, embora menos significativo do que o ocorrido no início do século, antes de 1913. Também no caso desta outra “janela de oportunidade”, o endividamento externo excessivo não foi uma característica exclusiva do Brasil e afetou outras economias em desenvolvimento.  A peculiaridade da nova onda de endividamento foi a participação dos empréstimos em dólares, que corresponderam na década a 75% das entradas de recursos externos relativos a empréstimos no Brasil. A partir de meados de 1928, as entradas de capital, que haviam sido muito substanciais desde 1925, reduziram-se significativamente, dando início a uma violenta crise de balanço de pagamentos, depois agravada pela queda dos preços de café, em virtude do colapso do esquema de valorização, que dependia de financiamento externo e da queda da demanda mundial.  

Otto Niemeyer, assessor financeiro no início do período Vargas, criticou a idéia de que a saída para a crise cambial devesse incluir um terceiro funding loan: alegava que “o homem que afunda três vezes em geral se afoga”, referência aos dois empréstimos de consolidação anteriores. O funding de 1931 foi afinal lançado em duas séries, com taxa de juros de 5%, com resgate em 20 e 40 anos, dependendo da garantia de cada empréstimo. O total do lançamento estava limitado a cerca de 18 milhões de libras para refinanciar os juros dos empréstimos federais que vencessem a partir de outubro de 1931 por três anos. O serviço dos fundings anteriores seria mantido inalterado. 

 

TAXAS DE RETORNO

As taxas internas de retorno dos fundings foram marginalmente inferiores às de aplicações alternativas contrafactuais em títulos britânicos ou norte-americanos no caso dos fundings de 1914 e 1931, 40 anos, e significativamente maiores para os fundings de 1898 e 1931, 20 anos. Foram modestamente superiores às de outros empréstimos brasileiros lançados em períodos semelhantes, reflexo do tratamento privilegiado que receberam os fundings nos sucessivos reajustes durante os anos 1930 e 1940. A evolução declinante das taxas de retorno dos fundings brasileiros em relação às de seus contrafactuais é semelhante à característica dos demais empréstimos brasileiros, em vista do fato de terem sido lançados relativamente tarde no quadro da história do primeiro ciclo do endividamento externo brasileiro. As exceções são as tranches do funding de 1931, 20 anos, cujas taxas de retorno são superiores às dos respectivos contrafactuais.

Entretanto, a simples comparação de taxas internas de retorno é insuficiente como método de avaliação de rentabilidades comparadas. É razoável supor que os compradores de títulos brasileiros estivessem dispostos a comprá-los porque o maior risco envolvido no endividamento brasileiro, medido pela volatilidade das taxas de retorno anuais, seria compensado pela sua maior rentabilidade, quando comparada a títulos “sem risco” da dívida pública britânica ou norte-americana. As taxas de retorno anuais são calculadas supondo-se que o investidor compra os títulos no início de cada ano e vende no final de cada ano, recebendo, além disso, os juros relevantes. A volatilidade das taxas anuais é medida pelo seu desvio padrão. A relação entre taxas de retorno e risco para todos os fundings, medido pelo desvio padrão das taxas de retorno anuais, é bem comportada, tal como havia sido determinado para os demais empréstimos brasileiros. Isto é, empréstimos brasileiros envolveram maior risco do que aplicações contrafactuais sem risco e também maiores taxas de retorno médias anuais. As médias das taxas de retorno anuais dos fundings tendem também a ser levemente superiores às de outros empréstimos lançados no mesmo período.

Incompatibilidades flagrantes entre a capacidade de pagamento do serviço da dívida externa e a capacidade de gerar divisas levaram, em 1898 e 1914, à fórmula de refinanciamento automático dos juros por um período relativamente curto (três anos) e protelação das amortizações por um período bastante longo (13 anos), embora só no primeiro caso envolvendo condicionalidades quanto à estabilização. A mesma fórmula foi de novo aplicada em 1931 com o refinanciamento dos pagamentos de juros, mas o elemento de diferenciação foi a limitação da suspensão das amortizações a apenas três anos. O diagnóstico de que a dívida de países como o Brasil seria impagável, a menos de substancial redução dos montantes nominais, começou a generalizar-se mesmo entre os credores. Niemeyer mostrou boa intuição na sua crença no afogamento de quem mergulhara três vezes, mas subestimou enormemente a importância da desorganização dos mercados financeiros internacionais, a duração da interrupção dos fluxos de capital para economias como a brasileira e a proliferação de acordos permanentes relativos à dívida externa dos países em desenvolvimento envolvendo substancial revisão das condições contratuais. O acordo permanente brasileiro referente à dívida contraída antes de 1930 seria negociado em 1943.

 

Marcelo de Paiva Abreu

 

[Verbete do Dicionário histórico-biográfico da Primeira República 1889-1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu/FGV]

FONTES: ABREU, M. Brazil; ABREU, M. Funding; CALÓGERAS, J. Política;  FRITSCH, W. Aspectos; GUANABARA, A Presidência ; MONTEIRO, T. Presidente;  OURO PRETO, A. Finanças; SOUTO, V. Último.