COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT)

 

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma instituição civil, sem fins lucrativos, criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em outubro de 1975 para atuar nas questões agrárias.

 

Antecedentes (1950‑70)

 

Em 1950 o bispo de Campanha (MG) publicou carta pastoral com o título "Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma agrária", primeiro documento oficial da Igreja católica sobre o tema. Contrapondo‑se aos movimentos sociais rurais de então (notadamente as Ligas Camponesas e sua perspectiva socializante), a Igreja mobilizou seus organismos leigos (como a Juventude Agrária Católica e o Movimento de Educação de Base) em defesa de uma reforma agrária que trouxesse a justa distribuição da propriedade, o desenvolvimento sócio-econômico e a estabilidade da família rural. Sua atuação mudou a partir de 1964: por um lado, aqueles organismos tornaram‑se alvo da repressão policial-militar; por outro lado, a Igreja via suas propostas contempladas pela aprovação do Estatuto da Terra, o que lhe permitia retirar da agenda a questão agrária.

 

Conjuntura política de sua criação (1971‑75)

 

A política agrária do regime militar autoritário favoreceu o desenvolvimento da agroindústria e a capitalização das grandes propriedades. Situação particular era a da Amazônia, que devia ser ocupada e modernizada a qualquer custo por imperativos da segurança nacional. A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) canalizou para aquela área vultuosos investimentos, beneficiados por incentivos fiscais e empréstimos subsidiados. Priorizando a grande propriedade ao invés da colonização e a pequena lavoura local, essa política favoreceu a concentração da propriedade rural e a expulsão dos antigos ocupantes da terra. Esse processo feriu tanto povos indígenas, cujos territórios foram retalhados e entregues a quem prometesse transformá‑los em empresas rurais, quanto a multidão de posseiros, lavradores sem título de propriedade.

Não tardaram a eclodir conflitos entre os grandes proprietários, amparados pelo governo e economicamente poderosos, e os pequenos posseiros isolados e desprotegidos, invariavelmente os perdedores. Muitos morreram vítimas de pistoleiros, outros fugiram das fazendas onde viviam em regime de semi‑escravidão. Sua situação chamou a atenção de bispos, padres e agentes de pastoral alinhados à “opção preferencial pelos pobres”, firmada na II Conferência Episcopal Latino‑Americana de Medellín, em 1968. Nesse processo, destacou-se a figura de dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT), que convidou seus colegas da Amazônia a examinar o problema durante a Assembléia da CNBB de 1973. Do desdobramento desse encontro nasceu, em outubro de 1975, a CPT, organismo criado para articular uma ação conjunta da Igreja frente aos conflitos rurais.

 

Natureza e organização

 

A gestação da CPT foi marcada pelo debate entre um setor do episcopado que limitava a função sócio-política da Igreja ao dever de levar os problemas sociais ao conhecimento das autoridades e com elas colaborar para sua solução, e bispos que desejavam ver a Igreja assumindo uma posição política solidária com os grupos desfavorecidos. Esse debate encerrou‑se quando a CPT definiu‑se como organismo de apoio e serviço que “se coloca do lado dos mais pobres para ajudá‑los a encontrar caminhos de organização autônoma”. Ela seguia o exemplo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que naquele mesmo momento estava revendo a posição da Igreja frente aos povos indígenas: ocupar‑se menos em integrá‑los na sociedade, do que em defender seu direito à terra, à própria cultura e à efetiva proteção do Estado. A criação da CPT marcou, portanto, uma posição historicamente original da Igreja Católica do Brasil frente ao Estado: abandonando a função mediadora que lhe era socialmente atribuída, passou a jogar sua força e seu prestígio “em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais”.

No contexto autoritário e repressivo da época, os agentes pastorais foram colocados como suspeitos de subversão da ordem social e muitos foram presos por infringirem a Lei de Segurança Nacional. Contando com a omissão ou a conivência dos poderes públicos, muitos proprietários rurais em áreas de conflito contrataram pistoleiros para eliminar sindicalistas ou lideranças rurais, advogados, padres e freiras. Assim, entre 1975 e 1984 foram mortos pelo menos dez agentes da CPT e 37 líderes rurais, cuja memória tem sido celebrada como a de novos mártires da Igreja. Para cumprir seus objetivos numa realidade adversa, a CPT constituiu‑se como um organismo ágil e flexível, de modo a poder atuar em todo o território nacional com o mínimo de estrutura burocrática.

Seus estatutos, aprovados pela CNBB, definem a CPT como um organismo da Igreja Católica e a ela subordinado através da Linha de Pastoral Social, tendo assegurada sua autonomia quanto à organização e às formas de atuação específica. Uma Assembléia Nacional, que se reúne a cada dois anos, determina as linhas de trabalho, define as prioridades e elege a diretoria. Esta deve ter um bispo na presidência e um membro da Igreja Católica (leigo ou clérigo) na secretaria‑executiva, podendo chegar até 1/3 a participação de membros de outras Igrejas cristãs. A mesma estrutura reproduz‑se nas comissões regionais, variando as modalidades de entrosamento com a CNBB local. A solidariedade de organismos internacionais, notadamente aqueles ligados às Igrejas cristãs, desempenha papel relevante não só por seu aporte financeiro quanto por conferir repercussão mundial à questão fundiária brasileira. Sob essa estrutura institucional vigora uma complexa teia de relações, geralmente de caráter informal, que é a chave de seu dinamismo.

Sendo a CPT apenas uma comissão que representa a Igreja nas questões agrárias, suas bases estão nos grupos e comunidades eclesiais com que se articula e que consegue mobilizar. Essa relação se dá no sentido das comunidades para a CPT, visto que elas pedem assistência jurídica, solidariedade a ocupações, e apoio em suas lutas contra a grilagem, expulsão de posseiros e outros conflitos locais. De sua parte, a CPT oferece às comunidades eclesiais e grupos envolvidos na questão da terra cursos para formação de lideranças, publicações de interesse popular, encontros para análise da realidade, celebrações religiosas e romarias da terra, bem como outros serviços de interligação e assessoria. Assim, um rede de equipes de pastoral da terra cujo total não ultrapassa algumas centenas de pessoas de fato expressa uma vasta teia de dezenas de milhares de grupos locais e CEBs. Nisso reside sua força propriamente política.

 

Desenvolvimento

 

Criada numa conjutura na qual uma proposta cristã inspirada na opção pelos pobres se contrapunha à política agrária fundada na doutrina de segurança nacional, a CPT foi reformulando suas prioridades na medida em que avançava o processo de democratização do país e os problemas agrários passaram a receber um tratamento civilizado. Distinguem‑se portanto dois momentos que não são simplesmente fases sucessivas no tempo. 0 primeiro foi marcado pelo caráter combativo: a CPT se fazia ouvir na sociedade como “a voz daqueles a quem foi tirada a voz”, denunciando as violações de direitos humanos no campo e mobilizando as Igrejas cristãs em defesa da população rural esmagada pelo processo de modernização capitalista. Data desse período o documento Igreja e Problemas da terra, de 1980, no qual a CNBB postula a necessidade da reforma agrária pela prioridade do “direito à terra de trabalho” sobre o “direito de propriedade da terra de negócio”.

0 segundo momento pode ser caracterizado pela ênfase nas atividades de assessoria técnica e educação popular, sem contudo deixar de estar presente nas lutas pela terra, como mostra os 12 de seus agentes assassinados entre 1985 e 1996. Espécie de incubadeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem‑Terra (MST) e de muitos sindicatos de trabalhadores rurais, a CPT considera que, por sua autonomia em relação à Igreja e ao Estado, essas entidades se tornaram condutos mais adequados para levar a diante o processo de construção da cidadania junto às população rurais deserdadas. Face a essa nova realidade, a CPT tem marcado a presença das Igrejas cristãs oferecendo‑lhes sua experiência de formação de quadros, sua assessoria para o relacionamento com outras áreas da Igreja e da sociedade, bem como sua capacidade de ritualizar e celebrar os êxitos, fracassos e martírios da luta pela terra. Digna de nota é a publicação anual Conflitos de terra no Brasil, que desde 1985 traz a informação mais confiável sobre o assunto.

Assim, em pouco mais de vinte anos de existência, a CPT já marcou o cenário político brasileiro por sua contribuição ao processo de democratização fundiária, de construção da cidadania da população rural e também por seu influxo na produção de um pensamento social católico sintonizado com as causas populares rurais.

 

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

colaboração especial

 

FONTES: CPT. Conquistar; CPT. Luta; MARTINS, J. Camponeses; PAIVA, V. Igreja.