TONELEROS, ATENTADO DA

TONELEROS, Atentado da

 

Atentado ocorrido na madrugada de 5 de agosto de 1954, na rua Toneleros, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, contra o jornalista Carlos Lacerda, um dos principais opositores do presidente Getúlio Vargas. Tendo resultado na morte do major-aviador Rubens Florentino Vaz, o episódio teve ampla repercussão nas áreas política e militar, agravando a crise que se desenrolava praticamente desde a posse de Vargas na presidência da República e que culminou com seu suicídio.

A crise enfrentada pelo governo era em parte provocada pela atuação da União Democrática Nacional (UDN), segundo maior partido político do país, que desencadeava campanhas sistemáticas contra Vargas e defendia uma plataforma eminentemente oposicionista visando às eleições legislativas marcadas para outubro de 1954. O principal porta-voz das posições udenistas era o jornal Tribuna da Imprensa, de propriedade de Carlos Lacerda, também candidato à Câmara dos Deputados pelo Distrito Federal.

A Tribuna combatia Getúlio Vargas mesmo antes do seu retorno à presidência. Na edição de 1º de junho de 1950, Lacerda afirmava que Vargas “não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Depois que Getúlio assumiu a chefia do Executivo, a Tribuna da Imprensa baseou sua campanha em acusações de corrupção administrativa, se bem que os ataques de caráter pessoal, que incluíam diversos membros da família do presidente, também fossem freqüentes. Em 1954, ano eleitoral, a campanha de oposição ao governo se intensificou. Em junho, Vargas foi acusado de malversação de fundos públicos, tendo Lacerda lhe atribuído os epítetos de “patriarca do roubo” e “gerente-geral da corrupção no Brasil.”

O jornal de Lacerda denunciou também a existência de pessoas que aproveitavam suas funções no governo para encobrir atividades escusas. Samuel Wainer, proprietário do jornal Última Hora, foi acusado de se haver valido de seus vínculos com Getúlio para obter vultoso empréstimo no Banco do Brasil. João Goulart, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), situacionista, e ex-ministro do Trabalho, e Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil, também foram alvo de cerrados ataques.

 

O atentado e o suicídio de Vargas

Nos primeiros minutos de 5 de agosto, quando voltava de um comício no Colégio São José em companhia do major Rubens Vaz e de seu filho Sérgio, Carlos Lacerda foi alvejado na porta de sua casa, à rua Toneleros, em Copacabana. O major Vaz, integrante de um grupo de oficiais da Aeronáutica que dava proteção ao jornalista durante a campanha eleitoral, teve morte instantânea, ao passo que Lacerda escapou com um ferimento no pé. No tiroteio também foi ferido o guarda municipal Sálvio Romero, que tentou interceptar a fuga do agressor.

Às 3:30h da madrugada, o motorista de táxi Nélson Raimundo de Sousa apresentou-se à polícia, informando que o autor do crime fugira em seu carro. Iniciava-se assim o processo de identificação dos envolvidos no atentado. As investigações, a cargo da polícia civil, foram encaminhadas pelo 2º Distrito Policial, sob a responsabilidade do delegado Jorge Luís Pastor, com a assistência do coronel da Aeronáutica João Adil de Oliveira e do promotor público João Batista Cordeiro Guerra.

No dia seguinte, 6 de agosto, o presidente do Clube de Aeronáutica convocou uma reunião à qual compareceram cerca de seiscentos oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. No final da reunião, foi emitido um comunicado que exigia a completa apuração do crime. Nesse mesmo dia, Vargas fez divulgar através do ministro da Justiça, Tancredo Neves, um comunicado assumindo “perante o país, especialmente a Aeronáutica, o compromisso de quem se empenha, com o maior rigor, em apurar todas as responsabilidades pela deplorável ocorrência”. Delineava-se já um sério conflito entre as forças armadas e a Presidência da República, agravado no dia 7 pelo depoimento de Nélson Raimundo na Polícia Militar, incriminando um membro da guarda pessoal de Getúlio, Climério Euribes de Almeida.

Devido às dimensões assumidas pelo episódio, o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Nero Moura, autorizou, no dia 12 de agosto, a instauração de um inquérito policial-militar, presidido pelo próprio coronel Adil. Após a abertura do IPM, os interrogatórios e depoimentos passaram a ser realizados na base aérea do Galeão.

No dia 13 de agosto, soldados da Aeronáutica prenderam Alcino João do Nascimento e o conduziram ao Galeão. Na base, já se encontrava detido João Valente de Sousa, secretário da guarda pessoal de Getúlio. Em seu depoimento, Alcino confessou que matara o major Vaz e ferira Lacerda e o guarda municipal. Afirmou também que fora contratado por Climério Euribes de Almeida para assassinar o jornalista, e que José Antônio Soares, sócio e compadre de Climério, servira de intermediário entre os dois. Alcino acrescentou que ouvira uma conversa entre Climério e Soares, na qual o nome de Lutero Vargas, filho do presidente, era citado como o mandante final da eliminação de Lacerda. Também interrogado, Valente confessou ter recebido ordens de Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal e homem de confiança de Getúlio, para fazer chegar às mãos de Climério 50 mil cruzeiros antigos, destinados à sua fuga. Ainda segundo Valente, Soares fora o portador daquela quantia.

Com a confirmação do envolvimento da guarda pessoal do presidente, a oposição intensificou sua campanha, exigindo a renúncia de Vargas. A bancada udenista na Câmara, liderada pelo deputado Afonso Arinos de Melo Franco, colocava sistematicamente o assunto em discussão. Ao mesmo tempo, em plena campanha eleitoral, a UDN utilizava seus comícios para mobilizar a população contra o governo. Era auxiliada nessa tarefa pelos violentos editoriais da Tribuna da Imprensa, assinados por Lacerda, que insistiam no envolvimento de Vargas no atentado. Paralelamente, sucediam-se na área militar as reuniões da alta oficialidade das três armas, aumentando as pressões sobre o presidente da República.

No dia 16 de agosto, devido ao clima de oposição ao governo reinante entre os oficiais seus subordinados, o ministro da Aeronáutica renunciou. Nero Moura foi substituído pelo brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, igualmente contrário ao afastamento de Vargas.

Climério Euribes de Almeida, cujo nome era mencionado desde o início das investigações, foi detido na madrugada do dia 18, numa operação que envolveu cerca de duzentos homens fortemente armados, dezenas de carros e viaturas militares e um helicóptero. Levado para a base aérea do Galeão, Euribes confessou ter sido contratado por Gregório Fortunato — que já se encontrava preso —, para eliminar Carlos Lacerda.

Na tarde daquele mesmo dia, um grupo de oficiais da Aeronáutica retirou do palácio do Catete o arquivo particular de Gregório, contendo várias cartas e outros documentos. O exame desse material revelou uma série de transações financeiras irregulares promovidas por Gregório, que envolviam o próprio filho do presidente, Manuel Vargas. Essas revelações abalaram ainda mais a imagem do governo Vargas, que perdeu credibilidade mesmo junto aos militares do Exército liderados pelo ministro da Guerra, Euclides Zenóbio da Costa, que até aquele momento se opunham à renúncia do presidente.

No dia 22 de agosto, os brigadeiros lotados no Rio, em reunião no Clube de Aeronáutica, aprovaram a proposta de Eduardo Gomes de exigir a renúncia do presidente, e escolheram o marechal Mascarenhas de Morais, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), para transmitir essa decisão a Getúlio. Mascarenhas levou a nota da Aeronáutica ao conhecimento de Getúlio, o qual afirmou categoricamente que não renunciaria. Entretanto, a atitude dos brigadeiros logo chegou ao conhecimento dos generais e almirantes. A alta oficialidade da Marinha, reunida no dia 23, decidiu apoiar a exigência da Aeronáutica. Informado sobre a adesão de sua arma, o ministro Guillobel declarou não poder ficar contra seus colegas de farda.

O cerco em torno de Vargas apertava. Na tarde de 23 de agosto, começou a circular sigilosamente um manifesto assinado por 30 generais, entre os quais Canrobert Pereira da Costa, Juarez Távora, Álvaro Fiúza de Castro, Ângelo Mendes de Morais, Alcides Etchegoyen, Peri Bevilacqua, Humberto de Alencar Castelo Branco e Henrique Lott, endossando a decisão dos brigadeiros. Em seu trecho final, o documento, conhecido como Manifesto dos generais, dizia o seguinte: “Os abaixo-assinados, oficiais-generais do Exército, conscientes dos seus deveres e responsabilidades perante a nação, ...e solidarizando-se com o pensamento de seus camaradas da Aeronáutica e da Marinha, declaram julgar... como melhor caminho para tranqüilizar o povo e manter unidas as forças armadas a renúncia do atual presidente da República, processando-se sua substituição de acordo com os preceitos constitucionais.”

O quadro se completou naquele mesmo dia 23, com o virtual rompimento do vice-presidente Café Filho com Getúlio, anunciado em discurso no Senado. Isolado politicamente, respaldado cada vez menos nos meios militares e concretamente ameaçado de deposição, Getúlio Vargas suicidou-se em 24 de agosto.

 

Prosseguimento das investigações

Apesar da comoção causada pela morte de Vargas, o inquérito teve continuidade. Em seu quarto depoimento, prestado em 8 de setembro de 1954, Gregório Fortunato acusou Benjamim Vargas, irmão do ex-presidente, de mandante do atentado. Benjamim depôs na base aérea do Galeão no dia seguinte, quando admitiu que Gregório lhe havia dito que mandara matar Carlos Lacerda e que não o denunciara por razões morais. O irmão de Getúlio foi acusado por crime de favorecimento pessoal, tendo, no entanto, obtido habeas-corpus.

No seu depoimento seguinte, Gregório afirmou ser o general Ângelo Mendes de Morais o verdadeiro mandante do crime da Toneleros. Nessa ocasião, Gregório teria sido submetido a torturas por elementos da polícia do então Distrito Federal, entre eles o detetive Cecil Borer. Uma vez que Mendes de Morais era hierarquicamente superior ao coronel Adil, responsável pelo IPM, o inquérito foi remetido ao ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes. O processo contra Mendes de Morais foi julgado no Superior Tribunal Militar, que decidiu pelo seu arquivamento.

Depois de concluído o inquérito no Galeão, as conclusões foram encaminhadas para a Auditoria de Correção, de onde seguiram para a justiça civil, pois o crime não era de natureza militar. O processo contra Gregório, Alcino, Climério e os outros acusados foi então remetido ao Tribunal do Júri.

O julgamento só ocorreu em outubro de 1956. Os trabalhos foram presididos pelo juiz Joaquim Sousa Neto, atuando como promotor público Raul de Araújo Jorge. Acompanharam o processo os advogados Adauto Lúcio Cardoso (também deputado federal pela UDN), por Carlos Lacerda, e Hugo Baldessarini pela viúva do major Vaz. O primeiro a ser julgado foi Alcino João do Nascimento, defendido pelo advogado Humberto Teles e condenado a 33 anos de reclusão. Gregório Fortunato, defendido pelos advogados Carlos de Araújo Lima e Romeiro Neto, recebeu uma pena de 25 anos de reclusão. Nélson Raimundo de Sousa, defendido por Evaristo de Morais Filho e José Ribamar Fontes, foi condenado a 11 anos. José Antônio Soares, defendido por Rosemar Pimentel e Cândido Camargo, recebeu uma pena de 26 anos de reclusão. Finalmente, João Valente, que não participou nem do plano, nem da execução do crime, foi condenado a dois meses de detenção por ter dado fuga aos acusados.

Sérgio Lamarão

 

 

FONTES: BALDESSARINI, H. Getúlio; DULLES, J. Unrest; MACHADO, F. Últimos; SILVA, H. 1954.