PLANO REAL

PLANO REAL

Duas características básicas podem ser identificadas no Plano Real dentro da seqüência de tentativas de estabilização da economia brasileira, depois da crise da dívida externa do início da década de 1980. Uma característica foi a intenção deliberada de fugir aos movimentos bruscos e do elemento surpresa que fizeram a glória e o fracasso de seus antecessores, e que atingiram o paroxismo no Plano Collor. A segunda característica foi a insistência da equipe no governo em anunciar o plano como uma estratégia multifásica de estabilização, da qual a reforma monetária seria apenas um momento, e não necessariamente o mais importante. Essas duas características tinham o objetivo de desarmar os espíritos dos agentes econômicos, que tinham se habituado a associar programas de estabilização a perdas súbitas de direitos.

O comportamento defensivo contra os choques antiinflacionários exacerbava conflitos e acelerava a inflação ao gerar corrida contra a moeda, aumentando, a cada tentativa, os custos dos programas de choque e diminuindo as chances de sucesso em programas baseados em desindexação. A concepção de uma seqüência de etapas permitiria certa flexibilidade para a correção dos erros inevitáveis dos programas de choque, mas, ao mesmo tempo, se tornaria compatível com a construção de uma imagem de serenidade na reinstitucionalização da política econômica, que seria útil para minimizar os custos da estabilização em termos de perdas bruscas de crescimento econômico e de desemprego.

A abordagem fiscal

A primeira etapa foi a construção de algum espaço para a política fiscal. Diante do irrealismo óbvio que seria tentar fazer uma reforma fiscal de profundidade sem conhecer as necessidades de financiamento do governo por detrás do véu da inflação elevada, optou-se por obter um mínimo de desvinculação entre despesas e receitas orçamentárias a partir da criação do chamado Fundo Social de Emergência (FSE).

A segunda foi anunciar uma seqüência de reformas que envolveria a Previdência Social, e os componentes administrativo e patrimonial, com a finalidade de construir um horizonte plurianual no qual fosse possível se obter uma redução consistente das necessidades de financiamento inflacionário do governo.

A terceira foi a introdução de uma moeda de conta indexada capaz de, através de um mecanismo de operacionalidade simples, permitir uma recuperação mínima da percepção de preços relativos.

O processo político

A posse de Fernando Henrique Cardoso, como ministro da Fazenda, criou um elemento de serenidade em meio ao pânico dos investidores. A competência técnica da equipe que se juntou ao governo, além, naturalmente, das qualidades de político do novo titular da Fazenda, ajudou a afastar as perspectivas de um novo choque econômico. Só assim pode-se entender como, depois de seis meses de estudos e negociações sobre a proposta orçamentária para 1994, e nove meses depois da posse, o anúncio da etapa de transição com um indexador oficial que servisse de unidade de conta, a chamada Unidade Real de Valor (URV) logrou ser mais um elemento de tranqüilidade. Seria feita uma ponte entre a moeda moribunda e uma outra moeda que se pretendia estável e forte. Esta foi vista como uma boa solução para a angústia dos que temiam por mais um congelamento demagógico e pernicioso, porém estava longe de ser um programa de estabilização.

A comissão especial do Congresso que examinou o programa demonstrou boa disposição para negociar com a equipe econômica, mas na realidade nada foi obtido até o fim do período de revisão constitucional, exceto o FSE, artifício para tornar manejável a execução orçamentária. Com pouco apoio do lado da reestruturação fiscal, o programa de estabilização entraria no ano das eleições gerais em uma trajetória precária de sustentação.

A economia em 1993

Por outro lado, as vendas de Natal confirmaram os prognósticos mais otimistas, que apontavam para um nível de atividade mais elevado ao final de 1993. O ano fechou com um crescimento industrial de mais de 8% e um PIB com crescimento da ordem de 5%, deixando tranqüilo o presidente Itamar Franco, que passou a ter mais razões para acreditar em sua equipe. Sem recessão, com reservas abundantes e um saldo cambial em dezembro da ordem de três bilhões de dólares, havia segurança para o anúncio dos primeiros passos do novo programa de estabilização.

A URV

O anúncio da URV, cujo valor foi estabelecido em lei como igual ao do dólar comercial (de forma a facilitar as conversões contratuais ao dólar, em vez de se utilizar uma indexação diária dos pagamentos defasados), como instrumento de uma reforma monetária gradual foi, sem dúvida, a grande inovação do programa de transição. Ao fim da primavera de 1993, analistas econômicos e a imprensa especulavam sobre as medidas drásticas que seriam inevitavelmente tomadas, em decorrência da aceleração de mais de dez pontos percentuais na inflação mensal entre maio e dezembro. Reforma monetária, confiscos, congelamentos e tablitas voltaram à ordem do dia. A equipe econômica lançou e deixou vazar a idéia de que poderia ser feita uma reforma monetária com indexação pelo dólar, sem que houvesse necessidade de choque, nem de dolarização da economia. Bastaria que houvesse um mínimo de consenso de que as condições institucionais para um ajuste fiscal duradouro seriam viáveis e que elas estariam dadas antes de que fossem tomadas medidas para que fosse eliminada a inércia inflacionária.

A regra de conversão salarial, contida na Medida Provisória nº 434, que instituiu o programa, foi a melhor defesa dos salários jamais proposta para funcionar no período de transição para a reforma monetária. Isso aconteceu, apesar de ela pôr em risco uma reindexação salarial no novo índice oficial, que implicava a conversão, na nova moeda de conta, da média dos quatro últimos salários percebidos, calculados pela taxa de câmbio na data do recebimento pelo trabalhador. Uma greve que ameaçava paralisar o país foi adiada e a tentativa de acionar uma oposição articulada por parte de alguns sindicalistas não rendeu bons resultados.

Depois do primeiro susto, a população passou a temer os efeitos da inflação em URV, que ocorreria apenas na medida em que houvesse atraso na correção do câmbio, em presença de aceleração dos preços em cruzeiros reais. Medida pela experiência passada, o atraso era muito pequeno nos 12 meses anteriores, pois o governo procurava ajustar a taxa de câmbio em paralelo à aceleração da inflação, desde a posse do presidente Itamar Franco.

Sabia-se que a guerra por um ajuste fiscal para tornar o governo menos dependente da inflação exigiria pelo menos três batalhas: a do orçamento equilibrado, a de flexibilização da execução orçamentária e a das reformas do Estado (Previdência Social, monopólios públicos e equacionamento dos demais passivos pendentes da União). As duas primeiras tinham grande chance de bom êxito. A última, que permitiria que o surto de crescimento pós-estabilização fosse imediatamente convertido em uma nova etapa de crescimento acelerado, teria mesmo que ficar para o mandato presidencial seguinte. Mas o governo perdeu as três batalhas, frustrando as esperanças de uma arregimentação de última hora, que seria feita pelo senador Fernando Henrique Cardoso, que havia deixado o ministério para assumir a candidatura presidencial.

As medidas tomadas entre março e junho de 1994 destinavam-se a permitir uma transição suave entre o regime de megainflação e o regime de baixa inflação. No regime de megainflação (uma espécie de hiperinflação reprimida na qual a economia funciona quase normalmente), a chave para um funcionamento quase normal dos negócios é uma atenção crescente para a diferença entre o preço de anúncio e o preço de liquidação das transações. O primeiro é o que está no cardápio dos restaurantes, nas listas dos revendedores e no salário que o trabalhador espera receber no fim do mês, que é impregnado por inflação esperada. O segundo é quanto o freguês paga depois de verificar o desconto, o prazo para o cheque pré-datado, ou o que o trabalhador descobre, no mês seguinte, ao verificar quanto seu trabalho efetivamente compra. Com baixa inflação, algumas dessas regras e práticas geradas para a convivência com uma inflação elevada são irrelevantes (como a de dar descontos para compras à vista ou no cartão de crédito e proteger em fundos de curtíssimo prazo, os chamados FAFs, os saldos monetários utilizados para transação). Outras práticas são simplesmente incompatíveis com a baixa inflação, como a de um varejista vender por um preço à vista menor do que o preço que paga ao atacadista, que era possível, simplesmente, pela diferença de prazos de liquidação entre as duas operações.

O regime da URV pretendia justamente permitir que tal transição ocorresse tanto quanto possível por renegociações voluntárias de (novos) preços de liquidação entre as partes. Preços que fossem compatíveis com a baixa inflação sem a necessidade do efeito de coordenação que era atribuído ao congelamento de preços pós-reforma. Foi, desta forma, simulada a dolarização dos preços e contratos sem prender o governo em um regime de taxa de câmbio nominal fixa. Na transição para a inflação baixa, manteve-se constante, em termos reais, a taxa de câmbio, coisa que o governo já demonstrara capacidade de fazer desde o final de 1991.

O grande feito dessa opção foi viabilizar a transição para a reforma monetária sem controlar preços e com uma interferência mínima nos contratos privados, características que marcaram o fracasso dos programas anteriores.

A reforma monetária

A reforma monetária foi decretada pela circulação da nova moeda, o real, lançado com o valor equivalente a uma URV, ou seja 2.750 cruzeiros reais, que era o valor da taxa de câmbio à época do seu lançamento.

As medidas tomadas em 1º de julho de 1994 para a concretização da reforma monetária foram bem recebidas pelos analistas. Primeiro, pelo fato de o governo brasileiro poder fazer, logo de saída, uma tripla ancoragem da nova moeda, o real, o que não havia sido possível, por exemplo, ao governo argentino em 1991. O câmbio fixo, dada uma posição de reservas quase oito vezes maior da que dispunham os argentinos, era na realidade um teto, pois os agentes logo perceberam que seriam caras as apostas contra o programa através da busca por moeda estrangeira. O controle do déficit fiscal foi viabilizado durante quase dois anos pelo FSE. Além disso, o artigo 48 da medida provisória, que criou a nova moeda, virtualmente impediu o uso político das despesas do Tesouro, congelando por 90 dias os gastos públicos, proibindo a abertura de créditos especiais no Orçamento, bloqueando os financiamentos e avais do Tesouro e impossibilitando novas operações de crédito interno ou externo, exceto os de rolagem de dívida e de capital de giro.

Estabeleceu-se, pela primeira vez desde a criação do Banco Central, uma intenção clara de limitar as emissões da nova moeda, uma vez remonetizada a economia. Este objetivo visava claramente a apoiar a resistência do Ministério da Fazenda contra as investidas de caráter político para gastos parafiscais, que costumam ser freqüentes em ano eleitoral.

As três âncoras

Os fundamentos do esforço de estabilização da moeda em 1994 basearam-se em uma tripla amarração: o teto para o câmbio permitiu a desindexação, o controle do déficit a curto prazo melhorava as perspectivas fiscais e a adoção de uma política monetária ativa foi anunciada. Foram justificadas as expectativas de que o Real sobreviveria com folga às eleições, e que o novo governo poderia completar as tarefas da estabilização, desfrutando da oportunidade de administrar uma economia com baixa inflação.

Em que se baseava a expectativa de que a inflação não retornaria, a menos que o novo governo contribuísse para isso? O teto para a taxa de câmbio estava apoiado numa forte posição de reservas internacionais. A desindexação do câmbio fixo destinava-se a apagar a memória da indexação de curto prazo, e viabilizava uma perspectiva de estabilidade para os salários e para os custos em geral, que haviam sido atrelados à URV. Isso neutralizou grande parte das pressões inflacionárias do lado da oferta. Como existia capacidade ociosa na indústria, boa safra colhida e capacidade para importar, houve condições para a economia agüentar alguma inevitável expansão da demanda por bens e serviços, que seria resultante da redução do imposto inflacionário.

O equilíbrio macroeconômico requeria que a tendência à elevação da demanda por parte do setor privado fosse acompanhada por um controle da demanda de bens e serviços por parte do setor público, para evitar-se que a expansão do gasto público gerasse espirais de euforia temporária. Foi feito, assim, um esforço para aumentar o controle do déficit fiscal, apesar do fracasso da revisão constitucional em torná-lo permanente.

Finalmente, o governo mostrou clara intenção de limitar as emissões da nova moeda, uma vez remonetizada a economia. Fixou limites à expansão da base monetária que implicaram uma monetização nos primeiros três meses cerca de 15% inferior ao que ocorreu no Plano Cruzado. Houve, entretanto, duas grandes diferenças: em primeiro lugar, um depósito compulsório de 100% sobre os depósitos à vista foi instituído para bloquear a oferta de crédito, colocando sob controle do Banco Central a decisão de expandir os empréstimos bancários ao setor privado, sem contingenciamentos, tetos ou restrições artificiais.

Comentários finais

O terceiro aniversário do Real representou a vitória da tranqüilidade sobre o tumulto, assim como o segundo marcou a vitória da coerência diante das pressões para mudar a política, enquanto o primeiro pôde ser celebrado essencialmente pela capacidade demonstrada pelo governo em manter acesa a esperança na estabilização em meio ao turbilhão mexicano.

Na passagem do primeiro ano da nova moeda, a crise mexicana ameaçava tornar-se, para muitos analistas, uma grande tempestade latino-americana. A política econômica na Argentina estava pressionada pelos efeitos contracionistas que a perda de reservas internacionais exercia sobre a economia. Naquele momento, o papel de desindexação cambial na estabilização atingia o auge de seu desprestígio. Se a conversibilidade e a paridade fixa do peso argentino ruíssem, o Brasil seria a próxima peça a cair no dominó latino-americano.

A política cambial foi relaxada, mas, apostando contra o cenário da contaminação iminente e resistindo às pressões para uma mudança radical de estratégia macroeconômica que trincou a unidade da equipe econômica, o núcleo remanescente da equipe cerrou os dentes e fez uso férreo do recém-adquirido instrumento de controle monetário. Não faltaram, à época, sugestões para que se adotasse a opção chilena: aceitar o gradualismo deflacionista vivido pelo Chile no início dos anos 1980, defendido por muitos como uma rota segura para o crescimento.

Manter a opção por continuar a baixar a inflação requeria convicção nos instrumentos monetários, mesmo em presença da deterioração da posição fiscal. O freio monetário baseado nos elevados compulsórios foi uma estratégia que abriu espaço para o financiamento do déficit público, que crescia com a generosidade dos aumentos salariais concedidos no apagar das luzes do governo Itamar Franco. Mas a freada brusca expôs as feridas mortais que o fim da inflação elevada havia infligido ao sistema financeiro.

O segundo ano do Real foi, assim, marcado pela crise bancária, que agravou o desgaste do Banco Central e definiu o novo desafio à viabilidade política da estratégia da estabilização. Se havia esperança de alguns governadores na sobrevivência de seus bancos como instrumentos para financiar a expansão dos gastos, ela foi extinta pela notória falência daquelas instituições e pela capacidade demonstrada pela equipe liderada não mais por Pérsio Arida, mas por Gustavo Loiola, o novo presidente do Banco Central, para resistir às pressões e às intrigas.

Insistir na estabilização como prioridade significava, à época, resistir às pressões para afrouxar o controle monetário e tentar produzir um cenário de inflação declinante como parte essencial de coerência na política macroeconômica.

Apesar dos custos notórios em termos de produção, emprego industrial e desgaste político dentro da aliança governista, o governo pôde comemorar o segundo aniversário do Real redobrando as apostas dos efeitos benéficos da inflação esperada no declínio do segundo semestre de 1996. A verdadeira âncora do Real, que permitia a continuidade do processo de estabilização, era a inflação esperada e, assim, a coerênca dos objetivos e dos instrumentos macroeconômicos utilizados, apesar dos grandes desgastes, foi a marca registrada do segundo aniversário.

No terceiro ano ocorreu a recuperação da economia, consolidou-se a inflação esperada em declínio e a combinação de um déficit fiscal menor (embora elevado) com a recuperação econômica permitiu que a confiança crescente nos rumos da economia pagasse dividendos na forma de melhoria da qualidade do financiamento externo.

As críticas e as pressões sobre o governo dirigiram-se no terceiro ano para que este encontrasse formas de acelerar o crescimento. Dois desafios foram enfrentados: o primeiro foi manter a tranqüilidade diante dos resultados contraditórios do nível de atividade, que era interpretado por muitos como uma recessão prolongada; o segundo foi não perder a calma diante da trajetória do déficit no balanço de pagamentos em conta corrente, empurrada pela deterioração rápida do déficit comercial a partir do segundo semestre de 1996. Sem uma recuperação do nível de atividade que justificasse o crescimento das importações e a abertura de um hiato crescente de financiamento externo aumentavam as pressões, ora para conter a demanda, ora para acelerar as desvalorizações e, no meio do caminho, para restaurar o protecionismo e a política industrial baseada na escolha prévia dos vitoriosos. A opção pela tranqüilidade dos movimentos suaves e a espera paciente pelos resultados de políticas que levam tempo para surtir efeito — em meio a notórios fracassos em termos dos efeitos das reformas sobre o déficit público esperado — requerem a manutenção das reservas elevadas, e isso tem custos, pois subordina a política de juros à melhoria da qualidade do financiamento externo.

A confiança no futuro da estabilização e no crescimento da economia é elemento essencial da manutenção da trajetória de sucesso do Real no seu quarto ano. Para que isso seja possível, o grande desafio do governo é convencer poupadores e investidores, consumidores e trabalhadores de que não precisará de mais inflação no futuro para fechar suas contas. Esta é uma tarefa que só foi conseguida nos últimos três anos à custa de processos que não podem ser mantidos indefinidamente no futuro. Esgotados os limites para o crescimento da dívida pública pelo aumento do mercado cativo, começaram a fluir as receitas das vendas dos ativos. A vitória da privatização como idéia e como fonte de recursos para compensar o fracasso em conter suas despesas não isenta, porém, o governo de encarar o fato de que o problema é reduzir suas necessidades de financiamento.

Analisando em retrospectiva percebe-se que uma das características mais destrutivas da experiência inflacionária brasileira foi o efeito dominante da inflação sobre a agenda de discussões nos rumos da política econômica. Tal dominância decorreu precisamente dos mecanismos que permitiram o país funcionar e crescer em ambiente de alta inflação. Depois que tal adaptação mostrou-se ilusória, a partir das mudanças de regras contratuais de correção monetária nos experimentos pós-Cruzado, os mecanismos de defesa contra as mudanças de regras, que invariavelmente têm ocorrido quando a aceleração da inflação ameaça fugir ao controle do governo, aumentaram ainda mais a importância da inflação esperada como variável central para a tomada de decisões econômicas e condicionante dos rumos da política econômica.

Ao contrário do que ocorria até a primeira metade da década de 1980, a estabilização da economia foi percebida como essencial para libertar as forças criativas da economia do jogo estéril da inflação e permitir uma mudança nos rumos das discussões acerca das perspectivas do país.

Dionísio Dias Carneiro