PLANO CRUZADO

PLANO CRUZADO

 

Plano de estabilização econômica anunciado em 28 de fevereiro de 1986, no governo do presidente José Sarney (1985-1990). Inicialmente bem-sucedido, pois os índices inflacionários caíram consideravelmente, o recrudescimento da inflação levou o plano ao fracasso no final de 1986.

 

A concepção do Plano Cruzado

O governo Sarney implementou, em 28 de fevereiro de 1986, um plano de combate à inflação que ficou conhecido como Plano Cruzado, o nome da nova moeda brasileira que substituiu o cruzeiro. Este plano surgiu como uma esperança para a população brasileira que, na época, se defrontava com uma trajetória ascendente da inflação, que atingiu uma taxa anual de 517% nos meses de janeiro e fevereiro de 1986, de acordo com o índice geral de preços da Fundação Getulio Vargas. Nove meses depois, o Plano Cruzado fracassou pois a inflação voltou, e no primeiro bimestre de 1987 a taxa anual de inflação já estava em 337%.

Quais as razões do fracasso do Plano Cruzado? Alguns analistas atribuem a erros de administração do próprio plano a principal razão para o seu fracasso. Outros economistas identificam na sua concepção a única causa para o seu malogro. Para avaliar o Plano Cruzado é preciso, então, entender a concepção do processo inflacionário da equipe de economistas responsável pela elaboração do plano.

Uma questão que surgia normalmente entre economistas que tentavam compreender o processo endêmico da inflação brasileira era como explicar a diferença entre uma inflação do tipo latino-americana e a inflação em outras partes do mundo. Os economistas latino-americanos, da escola estruturalista, identificavam na mudança dos preços relativos dos produtos agrícolas a principal fonte da inflação em países, como o Brasil, que procuravam aumentar a taxa de crescimento do produto real da economia através de instrumentos de política econômica. Depois da quintuplicação dos preços do petróleo em 1973, pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), o jargão dos economistas, no hemisfério norte, passou a usar a denominação “choque de oferta” para designar mudanças de preços relativos, um fenômeno bastante conhecido dos estruturalistas latino-americanos desde a década de 1950.

Uma outra hipótese bastante popular, entre os estruturalistas, para explicar a inflação era o suposto conflito distributivo entre capitalistas e trabalhadores. De acordo com esta hipótese, a inflação é o resultado das demandas inconsistentes dessas duas classes sociais que desejariam frações do bolo que, somadas, seria maior do que o todo. Este conflito em outras partes do mundo seria resolvido de maneira diversa, mas na América Latina a inflação se encarregaria de resolvê-lo. Analiticamente o conflito distributivo poderia ser compreendido através da determinação dos preços e salários da economia. Mas os economistas estruturalistas nunca foram capazes de oferecer uma explicação convincente para o fato de a determinação de preços e salários, aqui na América Latina, ser diferente de outras partes do mundo. Alguns preferiam ficar com a crença no conflito distributivo quando a lógica era incapaz de produzir um modelo econômico capaz de explicar esta hipótese.

Durante a primeira metade da década de 1980 alguns economistas brasileiros associados ao Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Pérsio Arida, Edmar Bacha, Francisco Lopes, Eduardo Modiano, André Lara Resende) e à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Luís Carlos Bresser Pereira e Yoshiaki Nakano), inspirados no estruturalismo, desenvolveram a hipótese neo-estruturalista para a inflação brasileira. Os neo-estruturalistas diagnosticaram a inflação brasileira como sendo do tipo inercial, resultado da fixação dos preços através de uma margem (mark-up) sobre os custos de produção, indexação dos salários e política de minidesvalorização cambial, sendo este processo impulsionado por choques de oferta que ocorriam de maneira não-sistemática, mas que determinariam a dinâmica do sistema. Nesta concepção, a inflação de hoje dependia da inflação de ontem, que, por sua vez, dependia da inflação de ante-ontem, e assim por diante. Daí o nome inercial para apelidar este processo inflacionário, e a imagem de uma catraca para caracterizar o fato de que a inflação dependia dela própria.

Os economistas neo-estruturalistas estavam divididos quanto à maneira mais adequada para acabar com o processo inflacionário. A proposta Lopes-Bresser Pereira-Nakano consistia num choque heterodoxo, através do congelamento dos preços e salários. A proposta Larida (Lara Resende-Arida) consistia na superindexação da economia, através da introdução de uma nova moeda. O Plano Cruzado optou pelo congelamento, enquanto o Plano Real preferiria o caminho da superindexação pela URV, que se transformaria no real, a nova moeda brasileira a partir de julho de 1994.

 

A implementação do Plano Cruzado

As principais medidas do Plano Cruzado foram editadas através dos decretos-leis nº 2.283 e nº 2.284, respectivamente de 28 de fevereiro de 1986 e 10 de março de 1986. O segundo decreto-lei corrigiu apenas alguns erros do primeiro. De maneira sucinta, as principais medidas do Plano Cruzado foram as seguintes:

a) introdução de nova moeda — a unidade do sistema monetário brasileiro passou a ser o cruzado, em substituição ao cruzeiro. A conversão de valores expressos em cruzeiros para cruzados foi fixada à razão de mil cruzeiros para cada cruzado;

b) regra de conversão de obrigações contratuais — critérios distintos foram aplicados para as obrigações contratadas com cláusulas de indexação e àquelas que não previam tal cláusula. No caso de obrigações sem cláusula de indexação, ficou estabelecido que a partir do dia 3 de março de 1986 o cruzado teria uma valorização diária de 0,45% em relação ao cruzeiro, equivalente a uma inflação mensal de 14,42% da antiga moeda. Para as obrigações com cláusula de indexação, a conversão foi efetuada em duas etapas. Na primeira, os valores em cruzeiros foram atualizados para cruzeiros do dia 28 de fevereiro de 1986, mediante a aplicação pro rata da correção monetária. Na segunda etapa, os valores assim obtidos foram convertidos para cruzados à razão de um cruzado para cada mil cruzeiros. Este procedimento foi usado para a conversão dos saldos das cadernetas de poupança, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do Fundo de Participação PIS/PASEP;

c) congelamento de preços — todos os preços foram congelados, e nomeou-se também como agente fiscalizador qualquer pessoa do povo. O congelamento poderia ser suspenso por ato do Poder Executivo;

d) desindexação — a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), que era corrigida mensalmente pela taxa de inflação, foi extinta. Em seu lugar foi criada a Obrigação do Tesouro Nacional (OTN), cujo valor foi congelado até o dia 3 de março de 1987. O uso de cláusula de correção monetária nos contratos com prazos inferiores de um ano foi proibido. A correção monetária para a caderneta de poupança e para os fundos de poupança forçada (FGTS e PIS/PASEP) foi mantida;

e) conversão dos salários para cruzados — os salários foram convertidos para cruzados pelos seus valores reais médios, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao valor real médio foi acrescido um abono de 8%. O valor fixado para o salário mínimo incorporou um abono de 16%;

f) indexação dos salários — os salários foram indexados de acordo com uma escala móvel, que reajustaria automaticamente o salário toda vez que a inflação acumulada alcançasse 20%. Nas datas-base do reajuste de cada categoria profissional, os salários teriam um reajuste de, no mínimo, 60% da variação acumulada de 60% da inflação, medida pelo índice de preços ao consumidor do IBGE;

g) conversão dos aluguéis, prestações do Sistema Financeiro de Habitação e mensalidades escolares — estes preços foram convertidos para cruzados de acordo com o princípio do valor real médio;

h) política cambial — a taxa de câmbio foi utilizada como âncora do sistema e o seu valor foi fixado em 13 cruzados e 80 centavos por dólar. Mas este valor não foi congelado, pois o Banco Central do Brasil poderia alterá-lo a qualquer momento.

A concepção neo-estruturalista do processo inflacionário supunha que a moeda era passiva e que, portanto, caberia à política monetária ajustar a oferta de moeda à quantidade demandada. Na economia brasileira, por razões institucionais, em virtude do sistema de reservas bancárias defasadas e da liquidação da compra e venda dos títulos públicos na conta reservas bancárias que os bancos mantêm junto ao Banco Central, o instrumento que esta instituição utilizava para conduzir a política monetária, no dia-a-dia de suas operações, consistia na fixação da taxa de juros do overnight, a taxa pela qual os bancos comerciais trocam reservas bancárias entre si. No primeiro dia útil após o lançamento do Plano Cruzado, o Banco Central do Brasil fixou a taxa de juros supondo que a inflação esperada pelo público coincidia com a meta de inflação zero estabelecida pelo governo. O comportamento do público nos primeiros três meses do Plano Cruzado, entretanto, mostrava sinais claros de que a taxa de inflação esperada pelo público não era zero. A monetização da economia não era, portanto, compatível com a meta de inflação zero, em virtude do descompasso entre o que o público desejava e o que o Banco Central injetava de moeda na economia.

Os autores do Plano Cruzado não tiveram nenhuma preocupação com a política fiscal, pois o déficit público e seu financiamento nada tinha a ver com o processo inflacionário, segundo a visão inercialista da inflação. Na verdade, a política fiscal do Plano Cruzado foi expansionista porque houve um aumento dos salários reais do setor público, em virtude dos abonos concedidos na conversão dos mesmos para cruzados.

A combinação de políticas monetária e fiscal expansionistas, congelamento de preços e taxa de câmbio fixa fez com que as exportações diminuíssem e as importações aumentassem. O saldo da balança comercial que tinha um superávit mensal de mais de um bilhão de dólares, tornou-se negativo em outubro de 1986, quando as importações superaram as exportações em 79 milhões de dólares. As reservas internacionais do Brasil, que estavam próximas de dez bilhões de dólares em fevereiro de 1986, diminuíram para menos de cinco bilhões de dólares em fevereiro de 1987.

O congelamento de preços provocou inúmeras distorções no sistema de preços, como ensina a boa teoria econômica. Por exemplo, em meados de 1986, o preço de um automóvel Monza com um ano de uso era maior do que o mesmo carro zero quilômetro. As empresas estatais de petróleo, eletricidade e telecomunicações tornaram-se vítimas do Plano Cruzado, pois não tinham mecanismos para contornar o congelamento de preços, como poderiam fazer as empresas privadas através, por exemplo, da maquiagem de produtos. A lucratividade real dessas empresas diminuiu ao longo de 1986, contribuindo para agravar as contas públicas do governo.

 

O Cruzado II

Em meados de 1986 a equipe econômica responsável pelo Plano Cruzado já começava a se curvar diante da evidência empírica e reconhecia que havia um excesso de demanda generalizado na economia. Nestas circunstâncias, os remédios clássicos consistem na adoção de políticas monetária e fiscal contracionistas. A partir de maio de 1986, o Banco Central do Brasil começou a aumentar a taxa de juros básica da economia, a taxa over-night, mas este aumento foi tímido em relação ao que era necessário fazer naquele momento. Em meados de 1986 um novo pacote econômico foi anunciado, denominado Plano de Metas, que na época ficou conhecido como Cruzadinho. Este pacote criou o Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND), e instituiu um empréstimo compulsório, com validade até 31 de dezembro de 1989, que incidia sobre o consumo de gasolina e álcool, e sobre a compra de automóveis e utilitários, cujo pagamento seria feito em cotas do FND, além de outras medidas de menos importância. O resultado deste pacote foi praticamente nenhum, pois a economia continuou aquecida e a inflação engessada pelo congelamento.

O tiro de misericórdia do Plano Cruzado foi dado pelo pacote econômico de novembro de 1986, anunciado logo após as eleições de 15 de novembro, em que o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), partido político que dava sustentação ao governo Sarney, obteve uma vitória esmagadora. Este pacote ficou conhecido como Plano Cruzado II. Na divulgação do pacote, o Ministério da Fazenda classificou as medidas em seis categorias: a) medidas de estímulo à poupança; b) medidas fiscais com correção de preços; c)outras medidas fiscais; d) medidas de estímulo à exportação; e) medidas de desindexação; e f) medidas de redução da participação do Estado na economia. Além de um bom número de medidas cosméticas, o pacote aumentou impostos indiretos, reajustou preços de bens e serviços que estavam completamente defasados, concedeu alguns subsídios para as exportações, e expurgou do índice da inflação as variações de preços de produtos considerados supérfluos, como cigarros e bebidas. O fracasso desta última tentativa de salvar o Plano Cruzado deveu-se única e exclusivamente ao fato de que as origens do processo inflacionário brasileiro não foram atacadas, isto é, o financiamento do déficit público pela emissão de moeda não foi estancado e o regime monetário-fiscal-cambial não foi alterado.

 

As razões para o insucesso do Plano Cruzado

A inflação caracteriza-se pelo aumento contínuo e sistemático dos preços dos bens e serviços da economia, isto é, a moeda perde o seu valor pois, com a mesma quantidade de moeda, obtém-se ao longo do tempo uma menor quantidade de bens e serviços. Como entender uma inflação crônica, como a brasileira, sem compreender como o Banco Central aumenta o estoque de moeda na economia? Na teoria da inflação inercial é a inflação que gera a própria inflação. O Banco Central teria um comportamento passivo, sem nenhuma influência na dinâmica da inflação.

É bem verdade que nas economias latino-americanas a política monetária nos países com longa tradição inflacionária tem sido passiva, mas a razão desta passividade é a obrigação do Banco Central financiar de maneira sistemática uma parcela significativa do déficit público. Quando a receita fiscal e a colocação de títulos públicos não é suficiente para financiar as despesas do governo, o Banco Central emite moeda para financiar o déficit remanescente. Na primeira metade da década dos 1980 a emissão de moeda financiou um déficit fiscal de 2-3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Por que a sociedade usa este mecanismo, em vez de deixar para o Banco Central a tarefa de preservar o valor da moeda, como fazem outros bancos centrais do mundo?

Esta pergunta pode ser respondida analisando-se o verdadeiro conflito distributivo entre vários grupos das sociedades latino-americanas, que procuram usar o Estado para apropriar-se de renda de outros grupos da sociedade. A redução do déficit poderia ser efetuada através de aumento dos impostos ou de diminuição dos gastos, ou por uma combinação dos dois. Todavia, os contribuintes alegam que estão pagando impostos demais, enquanto aqueles que se beneficiam dos gastos do governo argumentam que estão recebendo menos do que deveriam. Como diz o ditado popular, a corda termina rebentando do lado mais fraco, pois o imposto inflacionário, que é a contrapartida da emissão de moeda, termina sendo pago pelas classes menos favorecidas, que não estão devidamente representadas nos órgãos de decisão política nem tampouco dispõem de recursos para se organizarem na reivindicação de seus interesses. Usando-se o jargão do economista, a razão para a solução do conflito distributivo através da emissão de moeda é uma falha no mercado político, que não está devidamente organizado para impedir que grupos com maior poder de influência no processo decisório explorem os grupos menos favorecidos da sociedade. As instituições de um país, como o Banco Central, são produto de escolhas e decisões da sociedade. Elas não existem num vazio, mas suas funções e atribuições dependem do contrato implícito entre os diversos grupos que influenciam as decisões políticas da sociedade.

O fracasso do Plano Cruzado deve-se única e exclusivamente ao fato de que ele não atacou a causa básica da inflação no Brasil, o financiamento do déficit público através de emissão de moeda pelo Banco Central, mas tão-somente procurou estancar a inflação congelando os preços. Confundiu-se inércia inflacionária com inflação inercial. Apesar da causa básica da inflação no caso brasileiro ser o financiamento do déficit público através de emissão de moeda, a propagação da inflação não é instantânea em virtude de rigidez no sistema de preços. Esta rigidez existe devido a contratos previamente acordados entre as partes, estabelecendo regras de reajustes que dependem de preços passados, ou porque previsões do futuro são feitas com base em dados do passado, ou ainda em virtude de cláusulas de correção monetária que reajustam preços hoje em função da inflação de ontem. Portanto, a inflação tinha uma componente inercial, mas isto não significa dizer que esta componente era a origem da inflação, como queriam os economistas responsáveis pelo Plano Cruzado. A principal lição que se pode extrair do Plano Cruzado está consagrado no ditado popular: o que começa errado não pode dá certo.

Fernando de Holanda Barbosa colaboração especial

 

FONTES: ARIDA, P. & RESENDE, A. Inflação; ARIDA, P. & RESENDE, A. Inertial; BACHA, E. Moeda; BARBOSA, F. & SIMONSEN, M. Plano Cruzado; LOPES, F. Choque; MODIANO, E. Da inflação; MODIANO, E. Inflação; PEREIRA, L. & NAKANO, Y. Inflação.