ESTADO NOVO

 

Nome com que é tradicionalmente designado na historiografia brasileira o período ditatorial que, sob a égide de Getúlio Vargas, teve início com o golpe de estado de 10 de novembro de 1937 e se estendeu até a deposição de Vargas, em 29 de outubro de 1945. Duas linhas básicas de interpretação têm prevalecido na maneira de situar essa fase abertamente ditatorial no curso do processo político inaugurado pela Revolução de 1930. Uma primeira interpretação tende a situar o Estado Novo como um parêntese ditatorial, provocado por causas conjunturais internas e externas, no processo de democratização das instituições políticas brasileiras iniciado em 1930 e retomado em 1945. A outra interpretação, ao contrário, vê o Estado Novo como resultante do prevalecimento da vertente autoritária contida na própria Revolução de 1930, vertente essa que expressaria uma tendência estrutural nos países de capitalismo retardatário e dependente. Não serão discutidos aqui os argumentos que fundamentam cada uma dessas interpretações, mas convém telas em mente quando da leitura dos tópicos seguintes e através dos quais será examinado o Estado Novo.

 

Dinâmica política

Com a promulgação da Constituição de 1934, a 16 de julho daquele ano, pela Assembléia Nacional Constituinte eleita no ano anterior, e com a eleição, pela mesma Assembléia, de Getúlio Vargas (até então no exercício provisório do poder como chefe da Revolução de 1930) para presidente constitucional do Brasil, com mandato de quatro anos, vedada a reeleição, o país entrava na nova ordem jurídico-política cuja implantação constituía o ideário justificativo da Revolução de 1930.

É essa nova ordem jurídico-política — que estabelecia o princípio da alternação no poder com base no voto direto e secreto, que consagrava o respeito aos direitos civis e que garantia a liberdade de organização e de expressão políticas — que seria posta à prova pela dinâmica do processo político que iria culminar, pouco mais de três anos depois, no golpe que instaurou a ditadura de Vargas e impôs as instituições autoritárias codificadas na Constituição outorgada ao país em 1937.

Para entender as condicionantes desse processo político é necessário remontar ao período de transição que medeia a vitória da Revolução de 1930 e a promulgação da Constituição de 1934. Essa fase de transição foi toda ela marcada por diferentes e simultâneos movimentos de “acomodação política”, através dos quais os impulsos renovadores já presentes na década de 1920, mas agora liberados pela Revolução de 1930, iriam chocar-se com as realidades sociais e políticas do país — para transformá-las parcialmente ou para serem por elas neutralizados. Tais movimentos, que assumiram no caso específico da Revolução Paulista de 1932 o caráter de conflito aberto, manifestaram-se principalmente nos três planos seguintes: o da redefinição parcial dos esquemas político-oligárquicos de dominação regional, o da cooptação do movimento tenentista (através do qual se expressava a corrente “radical” da Revolução de 1930) por Vargas em aliança com a hierarquia militar e o do início da modernização do aparelho do Estado.

Constituído e empossado o Governo Provisório em novembro de 1930, procurou ele imediatamente dotar-se dos instrumentos de poder necessários tanto à satisfação quanto ao controle dos interesses das forças heteróclitas que se haviam aliado para fazer a Revolução de 1930. Por decreto com data de 11 de novembro, o Governo Provisório se atribuiu a competência para exercer o Poder Executivo e, simultaneamente, a autoridade legislativa, e se capacitou também para nomear interventores federais que iriam exercer poderes similares em todas as unidades da Federação. Ficavam abolidos, assim, todos os órgãos legislativos do país, do Congresso Nacional às câmaras municipais, até que se realizasse a reclamada reforma eleitoral e fosse eleita uma assembléia constituinte para dar novo ordenamento jurídico ao país. Dessas medidas iniciais decorreram três conseqüências políticas que iriam marcar toda a fase de transição e que iriam se colocar também na raiz do desenvolvimento político subseqüente: a) as forças oligárquicas até então na oposição procuraram substituir, no âmbito de seus respectivos estados, as suas rivais deslocadas do poder pela Revolução; b) os “tenentes” viram abrir-se as portas para a ocupação de algumas posições de mando, seja em plano federal, pela sua inserção no aparelho do Estado, seja enquanto interventores em alguns estados da Federação (notadamente no Nordeste); c) graças aos poderes excepcionais que enfeixava em suas mãos, Vargas se impôs como árbitro das disputas intra-regionais, ao mesmo tempo em que tendeu, quase que naturalmente, a personificar o poder central.

No que se refere ao primeiro ponto, e como regra geral, foram fortalecidas as forças políticas situacionistas nos estados que haviam apoiado a revolução, houve ascensão de forças oligárquicas até então minoritárias naqueles estados nos quais as “situações” haviam permanecido fiéis a Washington Luís e, em alguns estados, realizaram-se complicadas soluções de compromisso, mediadas ou não pelos interventores, alguns dos quais começaram a criar em torno de si próprios novos pólos de arregimentação política. Esses movimentos de ascenso e descenso de grupos no interior de um sistema oligárquico que era politicamente contestado, mas que não chegava a ser econômica ou socialmente ameaçado, até porque permaneceria intocada a estrutura da propriedade da terra, tenderam a esgotar seu significado em seus respectivos planos regionais. Mas nem por isso deixaram de produzir efeitos para além das fronteiras estaduais, pois afetaram as coligações interestaduais e foram estas que determinaram os sistemas de apoio ou de oposição ao governo federal. O “ator político” continuou sendo ainda em larga medida o sistema local de dominação, o que se traduzia, por exemplo, na dificuldade de se formarem partidos políticos nacionais.

Foi contra esse estado de coisas, à época difusamente percebido e confusamente explicitado através de denúncias de “traição da revolução”, que o movimento tenentista procurou reativar-se, seja através do Clube 3 de Outubro, seja através da ação de alguns de seus representantes, quando no exercício de postos-chave de alguns estados da Federação (como foi o caso da passagem dos “tenentes” João Alberto e Miguel Costa por São Paulo). Enquanto os “tenentes” pressionavam para que se prolongasse a “fase revolucionária” (que lhes permitiria ampliar e consolidar suas posições de poder) em nome da necessidade de realização de “reformas” que eles próprios não conseguiam definir com clareza, as forças políticas tradicionais pressionavam para que se encerrasse rapidamente a fase de exceção e, uma vez reformulado o Código Eleitoral, se convocasse a Assembléia Constituinte. Vargas se situava no centro dessas pressões e, ao mesmo tempo, tornou-se o árbitro delas, procurando para tanto consolidar sua aliança com a nova hierarquia militar que despontava sob a liderança do general Góis Monteiro, aliança essa que seria sempre contraditória e ambígua na medida em que ambos partilhavam da mesma visão autoritária da organização da sociedade e, ao mesmo tempo, ambos aspiravam ao exercício pessoal do poder (o general Góis, chefe militar da Revolução de 1930, teria seu nome indicado para concorrer contra Vargas nas eleições para presidente realizadas no âmbito da Assembléia Constituinte, seria o garante do golpe de 37 e seria peça-mestra também na deposição de Vargas em 1945). Na fase que analisamos, entretanto, era a maximização das afinidades que prevalecia no relacionamento político entre ambos, inclusive enquanto expressões do poder civil e do poder militar. Isto se manifestava na ação conjunta que empreenderam para cooptar o movimento tenentista (que culminou com a liquidação do Clube 3 de Outubro), para debelar a Revolução Paulista de 1932 (expressão do conflito entre os que queriam prorrogar a fase revolucionária e os que queriam encerrá-la) e para “modernizar” o aparelho do Estado e a economia do país.

A reorganização do aparelho de Estado se processou em três planos simultâneos, todos três concorrendo para a progressiva e crescente proeminência do Executivo federal no processo decisório e no controle do processo político. O primeiro desses planos foi o da criação de comissões ad hoc (integradas por “técnicos” civis e por militares), para o equacionamento de problemas econômicos relacionados ao aproveitamento dos recursos minerais e sua industrialização. O segundo diz respeito ao reequipamento das forças armadas, que foi insistentemente solicitado por Góis Monteiro em seus sucessivos relatórios enviados a Vargas do front paulista. O terceiro, finalmente, e que antecedeu cronologicamente aos demais, foi o do enquadramento, através da criação do Ministério do Trabalho e através da legislação sindical, dos canais de representação de interesses nas zonas urbanas já expostas aos primeiros impactos do processo de industrialização. Se adicionarmos a isto as novas formas de intervenção do Estado na gestão do sistema econômico sob a pressão dos acontecimentos decorrentes da crise mundial de 1929, temos que, quando se encerrou a fase de transição, através da convocação da Assembléia Constituinte, convocação para a qual contribuiu, ainda que derrotada, a Revolução Paulista de 1932, já estavam estabelecidas as bases para um conflito de novo tipo no país e que seria politicamente resolvido através da implantação do Estado Novo: o conflito entre, de um lado, um executivo federal dotado de novos recursos de poder e cada vez mais orientado, seja pelos novos “quadros técnicos” que incorporava ao aparelho de Estado, seja pela própria natureza das questões econômicas e sociais que tinha que resolver, por uma vontade “modernizadora” e por uma “visão nacional” dos problemas brasileiros; e, de outro lado, por um lesgislativo ainda preponderantemente voltado para a representação de interesses regionais, perante os quais respondia politicamente e que, por isso, tendia a conceber o poder central como uma simples emanação (e um instrumento) do jogo político que se processava no seio da “confederação oligárquica”. Esta, como se disse, embora enfraquecida por processos internos de acomodação política após 1930, processos aos quais se deve adicionar a inquietação urbana e o impacto da crescente diferenciação econômica em curso no país, mal ou bem continuou sendo a única teia capaz de articular politicamente os diferentes subsistemas regionais no âmbito da nação.

Mas esse conflito de novo tipo era latente e raramente aflorava nesses termos, no debate político de então. Em parte, porque a controvérsia política tendia a se centralizar em torno da pessoa de Vargas e de suas intenções, o que se explica pelas formas caudilhescas (próprias à sua cultura política) através das quais ele exercia o poder; em parte porque tal conflito era como que abafado pela estridência dos movimentos de caráter ideológico (comunista e integralista) que passaram, no ato de trazer a política para as ruas, a povoar a imaginação das lideranças políticas, despreparadas para lidar com o fenômeno urbano. Frente a tais movimentos, as inovações introduzidas pela Revolução de 1930 para estruturar e controlar a representação de interesses em plano urbano (controle dos sindicatos, representação corporativa na Assembléia Constituinte) revelaram sua precariedade. Seria em nome da necessidade de combater os “extremismos ideológicos” que Vargas iria obter do Congresso, com amplo respaldo militar, sucessivas concessões ao Executivo de poderes excepcionais. Começou a ser minada, assim, a nova ordem constitucional que acabara de ser instituída, pavimentando a via que conduziria à implantação do Estado Novo. A seguinte seqüência de fatos é ilustrativa do que se afirma.

Em março de 1935 o Congresso armou o Executivo com os poderes excepcionais de uma severa Lei de Segurança, que logo seria utilizada. Com efeito, em julho, comemorando o aniversário do levante do forte de Copacabana, em sessão patrocinada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), através da qual as lideranças de esquerda procuravam reproduzir no Brasil as experiências dos fronts populaires, Luís Carlos Prestes, em nome do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acusou Vargas de trair os ideais de 1922 e lançou a palavra de ordem de “todo o poder à ANL”. Oito dias depois, com base na Lei de Segurança, Vargas fechou por seis meses a ANL, retirando assim de grupos urbanos de expressão reduzida, mas de grande visibilidade política, um canal legal para a manifestação de seu descontentamento. Em 25 de novembro, sob o clima da emoção produzida pela tentativa fracassada do Putch comunista, o Congresso aprovou o pedido de estado de sítio e introduziu emendas constitucionais que dotaram o Executivo das faculdades de demitir sumariamente funcionários e de intervir a seu juízo, através da remoção ou da promoção na carreira da oficialidade das forças armadas. No rastro da repressão generalizada que se seguiu à aventura comunista de 1935, foi destituído e preso o prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto Batista, detentor então de grande prestígio popular. Em março de 1936, com a captura de Prestes e a apreensão dos documentos em seu poder, foram sumariamente presos um senador e quatro deputados, ferindo-se a inviolabilidade parlamentar. Três meses depois o Congresso legalizou esse ato ao conceder a solicitada licença para processá-los. Em setembro foi aprovada, também pelo Congresso, a criação (manifestamente inconstitucional) do Tribunal de Segurança Nacional. No curso do mesmo ano de 1936 o Congresso prorrogaria por quatro vezes sucessivas, por 90 dias cada vez, a vigência do estado de sítio.

Foi nesse ambiente de sucessivas concessões do Congresso ao Executivo, de julgamento do Tribunal de Segurança, de inquietação militar e de conflitos de rua inéditos no país entre comunistas e integralistas (tiroteio no centro de São Paulo, 13 mortos na cidade fluminense de Campos) que se abriram no início de 1937 as articulações políticas para a sucessão de Vargas e que se iria realizar a campanha eleitoral. Esta deveria culminar, em janeiro de 1938, na primeira eleição direta para a presidência da República sob as novas regras do jogo instituídas pelo Código Eleitoral de 1932 — a grande conquista política da Revolução de 1930.

Estabeleceram-se, assim, como que três cenários políticos superpostos, cada um deles regido por “lógicas” e dinâmicas específicas. Num primeiro cenário se realizou a arregimentação de forças políticas regionais, na sua forma tradicional, em torno de duas candidaturas: de um lado, a do paulista Armando de Sales Oliveira (apoiado pelo Partido Constitucionalista de São Paulo; pelo Rio Grande do Sul do governador José Antônio Flores da Cunha; e pelas facções oposicionistas da Bahia e de Pernambuco, formando a União Democrática Brasileira); de outro, a do paraibano José Américo de Almeida — reunindo o situacionismo de Minas, Paraíba, Pernambuco e Bahia, e as facções oposicionistas do Partido Republicano Paulista (PRP) e do Partido Libertador (PL) rio-grandense. O segundo cenário foi constituído pelo palco no qual facções das camadas médias urbanas manifestavam nas ruas suas frustrações em face de uma configuração eleitoral que reduzia sua importância política, dado o avassalador predomínio do voto rural, relegando suas lideranças a uma mera mímica dos movimentos políticos internacionais dos quais se nutriam ideologicamente. Finalmente, o terceiro cenário foi o que se situou no interior do aparelho do Estado e através do qual foram edificadas as bases de um novo e centralizado sistema de decisões: pela reestruturação do serviço público através da introdução do concurso e da carreira (Lei do Reajustamento, 1936), pela criação dos órgãos técnicos e conselhos que reuniam quadros da burocracia e empresários para elaboração das grandes decisões econômicas (como o Conselho Federal de Comércio Exterior) e pelo progressivo avanço da hierarquia militar no controle das forças públicas dos estados, na busca do controle exclusivo para si dos meios de violência.

Vargas manobrou nos três cenários: estimulou o lançamento da candidatura José Américo, mas recusou-se a apoiar oficialmente qualquer um dos candidatos; advertiu para os perigos de a campanha eleitoral reacender as agitações de rua, mas cultivou o apoio dos integralistas; e, sobretudo, consolidou lealdades pessoais em plano regional e no interior do aparelho de Estado. Na verdade, antes mesmo do lançamento da candidatura José Américo já estava redigida (por Francisco Campos) a futura Constituição de 1937. A etapa seguinte foi a da articulação do golpe no nível dos governadores (missão Negrão de Lima), da consolidação do esquema militar (Góis foi nomeado para a chefia do Estado-Maior e o general Dutra para o Ministério da Guerra) e da espera do momento oportuno para a ação. Este surgiu sob a forma da “descoberta” do Plano Cohen, solenemente anunciada pelo general Dutra à nação a 30 de setembro. No dia seguinte o Congresso votou a suspensão das garantias constitucionais e, duas semanas depois, o controle pelo Exército da milícia do Rio Grande do Sul e a fuga do governador Flores da Cunha para o Uruguai liquidaram a última base de sustentação da candidatura Armando Sales. Benedito Valadares (então governador de Minas e articulador político de Vargas) diria mais tarde em suas memórias, resumindo uma certa concepção política, típica de toda uma época: “É interessante observar o ser possível fazer-se uma revolução (sic) às claras, sem o povo desconfiar.” Sem provocar maiores resistências, a 10 de novembro foi fechado o Congresso, outorgada a nova Constituição e proclamado o Estado Novo. Apenas dois governadores (Juraci Magalhães, da Bahia, e Lima Cavalcanti, de Pernambuco) protestaram e renunciaram a seus cargos. Com o fechamento de todos os partidos (2 de dezembro) e a liquidação, após o Putch fracassado de maio do ano seguinte, do movimento integralista, o exercício da atividade política ficou condenado à clandestinidade — ou se restringiu ao âmbito do aparelho de Estado.

 

Ideologia e representação de interesses

A expressão Estado Novo foi empregada pela primeira vez por Oliveira Salazar, no início da década de 1930, para justificar o regime autoritário português. Sua utilização alguns anos depois no Brasil, assim como a incorporação à Carta de 1937 de dispositivos das constituições de regimes totalitários da época, chegou a ser apontada como evidência da subordinação ideológica da ditadura de Vargas ao fascismo europeu. Se a matriz ideológica era a mesma, no sentido de que ambos os regimes se fundamentaram a partir de uma visão autoritária de governo e de organização de sociedade, distintas eram as dinâmicas históricas que os engendraram e as práticas políticas adotadas na Europa e no Brasil. O Estado Novo tinha em comum com o fascismo a mesma crítica à democracia parlamentar, à pluralidade de partidos e à representação autônoma de interesses, assim como tinha em comum com ele a mesma valorização do “Estado forte”, tutor da sociedade civil. Mas o Estado Novo diferia substancialmente do fascismo europeu no plano das práticas políticas concretas, como, por exemplo, na inexistência de partido único, na ausência de intensa mobilização política de massas e na não-uniformização da elite dirigente. Além disso, o Estado Novo prescindiu de qualquer mecanismo, ainda que formal, de legitimação (o plebiscito previsto na Carta de 1937 nunca chegou a ser realizado), só procurou criar sua máquina de propaganda dois anos depois de implantado — a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) é de dezembro de 1939 e a glorificação da pessoa de Vargas (“pai dos pobres’), mais folclórica do que mítica, só se iniciou três anos e meio depois de instaurada sua ditadura pessoal. Essas diferenças não foram acidentais: elas indicam fenômenos políticos e realidades sociais distintas.

A distância entre a inspiração ideológica e a prática política talvez tenha tido seu exemplo mais ilustrativo na consagração do corporativismo como doutrina oficial do Estado Novo. Com efeito, o artigo 140 da Carta de 1937 estabelecia que “a economia da produção será organizada em corporações e estas, como entidades representativas das forças do trabalho nacional colocadas sob assistência e proteção do Estado, são órgãos deste e exercem funções delegadas do poder público”. Tal preceito, sobre ser incompatível com o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e os interesses estrangeiros a ele associados, por mais incipientes que eles fossem à época, nunca teve sua implantação de fato cogitada. Assim, sua inclusão na Carta de 1937, com foros de doutrina oficial do Estado, é significativa pelo que ela sugere: a incorporação de idéias fascistas pelo Estado Novo parece dever-se menos a uma estruturada convicção ideológica do que à percepção de sua “utilidade”, de um lado, para dar uma justificativa “moderna” às tradicionais práticas autoritárias de extração caudilhesca, e, de outro, para fornecer, por analogia, o quadro de referências políticas ao equacionamento de alguns dos problemas centrais de organização da nação que cabia ao Estado Novo resolver, inclusive como condição para a própria expansão do capitalismo no país. Dentre esses problemas, dois se revestiram de particular significação.

O primeiro deles diz respeito à maneira de rearticular política e economicamente os subsistemas regionais no âmbito da nação. Como se disse, essa articulação se fizera até então, e a partir da descentralização republicana, através do jogo de equilíbrios que se processava no âmbito da “confederação oligárquica”; suas peças fundamentais eram a “política dos governadores” e a ação das “bancadas” — de cada estado no Congresso Nacional. Parte integrante das regras desse jogo era o respeito à autonomia política dos estados e a relativa autarquização econômica de cada um deles. O novo Código Eleitoral de 1932 e a criação da Justiça Eleitoral, assim como os processos de acomodação política que se seguiram à Revolução de 1930 (entre novembro de 1930 e novembro de 1935, os 20 estados tiveram 60 interventores ou governadores), já haviam abalado os fundamentos desse jogo. A partir de 1937, a supressão dos órgãos legislativos e a submissão dos interventores ao Executivo federal, se não foram bastantes para liquidar localmente a dominação oligárquica, tornaram inviável a função, por ela antes exercida, de promover também a articulação política dos subsistemas regionais em plano nacional. Essa integração teria que ser promovida, portanto, através de outros meios e da quebra dos valores que até então haviam dado consistência política à organização federativa. As noções de “Estado centralizado e forte” e de “reconstrução nacional”, apropriadas na vaga ideológica que cobria parte da Europa, e que encontravam larga ressonância nas forças “modernizadoras”, seriam os novos valores a serem contrapostos à concepção tradicional de federação. Foi em nome de ambos, por exemplo, que se procedeu solenemente à queima das bandeiras dos estados (símbolo de sua autonomia política), e que a Carta de 1937 vedou a criação de impostos interestaduais, instrumento de sua autarquização econômica, duas disposições que, para além de suas finalidades políticas imediatas, teriam significativa importância para a expansão do capitalismo no país. Com efeito, a liquidação da autonomia dos estados enfraqueceu aqueles grupos locais que logravam identificar seus interesses particulares com a defesa da “economia da região”, o que abriria o caminho para que se realizasse, sem maiores resistências políticas estaduais, a transferência de renda do setor agroexportador para o setor industrial; da mesma forma, a abolição das barreiras tarifárias inter-regionais eliminariam um dos obstáculos à unificação do mercado interno.

A ação desse “Estado centralizado e forte” em plano nacional, entretanto, iria prescindir no Brasil da edificação dos complicados mecanismos de controle que a extensão territorial do país faria prever. É exato que a presença nos estados dos destacamentos do Exército, sobretudo a partir do controle que ele passou a exercer sobre as forças públicas estaduais, projetou a presença do poder central nas diferentes regiões do país. Mas não menos importantes parecem ter sido os mecanismos de lealdades pessoais que vinculavam os interventores a Vargas. Tanto é assim que ficou praticamente no papel a instituição dos departamentos administrativos (criados em abril de 1939), que teriam por função aprovar atos do interventor e fiscalizar a execução dos orçamentos estaduais. Tudo se passou, em síntese, como se a fidelidade política a Vargas em plano nacional tivesse por prêmio a autonomia administrativa em plano estadual. Não eram muito diferentes as práticas políticas, vigentes durante a República Velha.

O segundo problema para cuja solução as elites dirigentes da época foram buscar no fascismo europeu sua fonte de inspiração foi o relativo à organização da representação de interesses, notadamente de setores urbanos e no plano sindical. Foi nesse plano que efetivamente se criaram formas imperfeitas (mas nem por isso menos eficazes, para aquilo a que se destinavam) de organização de tipo corporativista. Mas também aqui a fonte de inspiração (que era a Carta del lavoro, de Mussolini) foi como que submetida a uma apropriação seletiva e pragmática.

A tutela do Estado sobre a organização sindical era exercida, basicamente, para impedir a livre expressão de interesses, para restringir ou suprimir a utilização de certos recursos políticos (sobretudo a greve) na defesa desses interesses e para cercear alianças intersindicais que propiciassem a criação de centrais operárias autônomas. Se foi sob o Estado Novo que o edifício da organização sindical foi sendo aos poucos construído, suas fundações já haviam sido lançadas imediatamente após a Revolução de 1930, quando da criação do Ministério do Trabalho. O cerceamento da representação de interesses através da tutela exercida pelo Estado sobre a organização sindical iria ser construído a partir de três instituições: o monopólio da representação através da criação do sindicato único para cada categoria profissional, a Justiça do Trabalho e o imposto sindical. A seqüência através da qual tais controles foram instituídos revela o caráter pragmático que revestia tal construção.

A pluralidade sindical deixou de existir por decreto de agosto de 1931, foi restaurada pela Constituição de 1934 e foi novamente abolida pela Carta de 1937. Neste último caso, entretanto, isto se fez através de fórmula sui generis: afirmou-se a “associação profissional ou sindical é livre”, mas que só o sindicato “regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal”. Só dois anos após a implantação do Estado Novo é que se estipulou de forma taxativa que “não será reconhecido mais de um sindicato para cada profissão” (Decreto nº 1.402, de 5 de julho de 1939). Também a Justiça do Trabalho, cujas bases haviam sido lançadas em 1932, através das juntas de conciliação e julgamento, embora tivesse seu princípio reafirmado pela Carta de 1937, só seria efetivamente instituída em maio de 1939. Finalmente, o imposto sindical, que tem função desmobilizadora e contribui para falsificar a representação sindical (por ser compulsório e descontado em folha garante recursos à direção sindical independentemente do número de filiados e da participação destes nas atividades sindicais), só seria criado em julho de 1940.

Dois traços são significativos. De um lado, a natureza progressiva da instituição desses controles (que acabou gerando tal profusão de leis, decretos-leis e portarias que se impôs sua codificação geral através da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943) parece sugerir que o que se buscava não era a implementação de um postulado ideológico, mas a utilização pragmática das vantagens que a partir dele podiam ser extraídas; de outro lado, o fato de que a instituição de tais controles, não apenas precedeu o Estado Novo como seria mantida após sua derrocada, pois passou a constituir uma das bases do populismo, indica claramente que a solução autoritária, dada à organização da representação de interesses de empregados e operários, era menos uma característica específica do Estado Novo do que parte integrante da cultura política das elites dirigentes. Nesse sentido, a função do Estado Novo parece ter sido menos a de introduzir uma inovação do que a de garantir, através da eliminação de resistências políticas, a consolidação de algo já existente e que havia sido introduzido pela Revolução de 1930.

No que se refere à representação de interesses no plano das associações patronais, e embora também elas fossem submetidas aos controles da legislação sindical, o problema se colocava em termos formalmente semelhantes porém substancialmente distintos. Em grande parte porque a representação de interesses e, além disso, a participação dos empresários no processo decisório realizavam-se menos através da ação de suas associações de classe, enquanto tais, do que da participação individual e direta de seus representantes naqueles organismos criados no interior do aparelho do Estado e onde eram discutidas e elaboradas as principais decisões econômicas. Esses “órgãos técnicos” (Conselho Federal do Comércio Exterior, Conselho Técnico de Economia e Finanças etc.), oficialmente criados com a função de assessorar a Presidência, logo se transformaram numa arena específica, integrada por representantes do empresariado e da burocracia civil e militar. Foi em seu âmbito que se realizou a composição de interesses entre as facções da elite dirigente, quando da formulação de políticas públicas. Foi desses órgãos que saíram as sugestões inovadoras e as diretrizes (criação de Volta Redonda, Lei do Petróleo) para as principais realizações do Estado Novo no campo da promoção do desenvolvimento econômico. Se esta foi uma prática introduzida no início da década de 1930 (através das “comissões mistas”), foi sob o Estado Novo que ela foi consolidade e expandida para cobrir também atividades econômicas setoriais (criação do Instituto do Açúcar e do Álcool, do Cacau, do Pinho, do Sal etc.).

Em paralelo a essas inovações, que acabaram por reestruturar todo o sistema de decisões, processou-se, agora de forma sistemática, a profissionalização e modernização dos quadros do aparelho do Estado, notadamente através da criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Nesse sentido, é possível localizar no Estado Novo a gênese da moderna tecnocracia brasileira e do seu padrão de relacionamento com os grupos empresariais.

Cabe notar que a conexão entre a prática corrente da representação de interesses do empresariado e a tutela estatal exercida sobre a organização de suas associações de classe foi estabelecida através da exigência legal de que as indicações dos “representantes de classe” que iriam integrar os órgãos técnicos (e, portanto, participar do processo decisório) só poderiam partir das associações de classe reconhecidas pelo Estado. Que o empresariado brasileiro se adaptou com facilidade tanto às vantagens quanto às restrições dessas regras para a representação de seus interesses, parece demonstrado pelo número das associações de classe que foram criadas (ou que sobreviveram) sob o Estado Novo. Com efeito, quando se realizou em 1945 a I Conferência das Classes Produtoras (Conferência de Teresópolis), dela participaram representantes de quase seiscentas associações rurais, comerciais e industriais de todo o país.

A conseqüência importante da instituição dessas regras e canais para a representação de interesses — que iriam construir um padrão que, com maior ou menor nitidez, sobreviveria ao Estado Novo — foi que os processos de articulação e de agregação de interesses (e, através deles, a política) deslocaram-se da “sociedade civil” para o âmbito (e a tutela) do Estado.

 

O Estado Novo e o contexto internacional

O Estado Novo não se explica apenas à luz dos processos internos de transformação por que passou o país a partir da Revolução de 1930. Tanto o seu advento quando a sua derrocada foram também marcados por processos que se originaram fora das fronteiras do país. Não se tratou apenas da tradicional exposição das camadas dirigentes brasileiras àquelas influências culturais externas que elas metabolizaram de acordo com suas conveniências locais, ou de condicionamentos externos de natureza estritamente econômica; tratou-se, no caso, das mudanças bem mais complexas e amplas provocadas pela conjuntura histórica da Segunda Guerra Mundial.

Já na etapa que precedeu a guerra, acontecimentos que eram habitualmente assistidos de longe — o entrechoque violento de ideologias, o confronto entre regimes políticos e formas de organização da sociedade, os realinhamentos políticos provocados pela disputa entre os poderes mundiais de então — começaram a ser percebidos como anunciadores de transformações que cedo ou tarde afetariam também o Brasil. Nesse sentido, o movimento integralista, ao transpor para as ruas das cidades brasileiras as cenas que até então desfilavam apenas nas telas dos jornais cinematográficos, contribuiu, a seu modo, para tornar mais real — e mais generalizado — o sentimento de que os eventos que ocorriam do outro lado do Atlântico já invadiam, de alguma forma, a arena política do país. Não só isso. As próprias dimensões com que se anunciava o conflito faziam prever que, qualquer que fosse o vencedor, uma nova geometria de poder se estabeleceria no mundo. Não se tratava mais, agora, de aguardar o desfecho do conflito europeu como mero e curioso espectador, mas de procurar antecipá-lo para dele retirar as vantagens possíveis. Assim, a adoção por facções das camadas dirigentes, inclusive Vargas, quando do advento do Estado Novo, de um discurso de fundo fascista, não se explica apenas pelas afinidades que nele elas encontravam ou pela utilidade interna que para elas tal discurso pudesse ter. Também é parte da explicação a existência de uma percepção, à época mais ou menos generalizada, de que, em caso de conflito, a vitória caberia às potências fascistas. Existem na documentação disponível indicações razoavelmente convincentes de que este era, por exemplo, o prognóstico oficial da hierarquia militar. A acuidade instintiva de Vargas iria levá-lo a detectar, e com acerto, já em pleno conflito mundial, a provável mudança no curso da guerra — e a agir em conseqüência; o que Vargas seria incapaz de perceber, então, é que a confirmação de sua previsão selaria também a sorte do Estado Novo. Cabe aqui um breve relato factual.

Embora Vargas tivesse endossado plenamente a proposta norte-americana de fortalecimento da unidade política continental (criação de um mecanismo permanente de consulta, estabelecimento do princípio de que uma ameaça à segurança de qualquer Estado americano seria considerada uma ameaça à segurança de todos os demais), proposta essa apresentada pelos Estados Unidos na Conferência Interamericana realizada em Buenos Aires em 1936, as relações do Brasil com a Alemanha, nos anos que precederam a Segunda Guerra, eram menos problemáticas do que as existentes com os Estados Unidos à época. A participação da Alemanha no total das importações brasileiras, por exemplo, crescera de 11,4% para 24% entre 1930 e 1937 tornando-a o maior comprador de algodão e o segundo mercado para o café e o cacau brasileiros. Além disso, a dependência dos militares brasileiros da Alemanha, em matéria de doutrina e de armamento, era praticamente total. Mesmo o incidente que determinou a retirada do então embaixador alemão no Rio, em setembro de 1938, não impediu que, em janeiro de 1939, o general Góis Monteiro fosse convidado por Hitler, e um grupo de oficiais aviadores o fosse por Goering, para visitar Berlim. No que se refere aos Estados Unidos, ao contrário, o valor das importações brasileiras se havia reduzido à metade no mesmo período, em parte como conseqüência de crise de 1929, e as decisões de suspender o pagamento da dívida externa e de estabelecer o controle cambial, tomadas logo após o golpe de 1937, haviam criado séria área de atrito com os credores americanos. O mesmo general Góis, por outro lado, manifestava claramente a Vargas sua hostilidade ao convite que também lhe havia sido feito pelo chefe do Estado-Maior do Exército americano (ainda em janeiro de 1939), para visitar Washington.

Partidários da Alemanha e partidários dos Estados Unidos que integravam o governo Vargas iriam manobrar intensamente, sobretudo a partir da eclosão da guerra, para fortalecer, ou para inverter, conforme o caso, as bases desse cenário e das alianças internacionais nele contidas. Apoiando-se na declaração de neutralidade em face do conflito europeu endossado por todas as nações do continente, em setembro de 1939 (reunião do Paraná), Vargas procurou manter-se eqüidistante da luta entre as duas correntes. E apoiou-se em cada uma delas para negociar, simultaneamente, com os Estados Unidos e com a Alemanha, ajuda econômica para a implantação da grande siderurgia no Brasil, que passara a ser (ou era apresentada como sendo) uma “aspiração nacional”. O compromisso do Export Import Bank (Eximbank) de financiar o que iria ser Volta Redonda seria enfim obtido, no final de setembro de 1940, após longa e acidentada negociação. Essa negociação marcou também o começo da aproximação, ainda que inicialmente reticente e contraditória, da hierarquia militar brasileira com os Estados Unidos. Em outubro de 1941, por exemplo, o chefe da Missão Militar Norte-Americana informou ao Departamento de Defesa que, apesar das negociações em curso para fornecimento de material bélico ao Brasil, os militares brasileiros resistiam fortemente à presença de tropas norte-americanas em bases a serem construídas no Nordeste (na verdade, tal resistência não se prendia apenas a simpatias ideológicas com a Alemanha, mas resultava ainda do receio de uma represália militar alemã). Também Vargas, ainda inseguro dos destinos da guerra, manteve, até meados de 1941, e à revelia de seu ministro do Exterior, Osvaldo Aranha, negociações paralelas com o embaixador alemão, seja para a compra de equipamento militar, seja para obtenção de créditos para a siderurgia.

Foi o ataque a Pearl Harbour, no final de 1941, que não somente marcou o início da reversão do curso da guerra como também o da reversão da atitude brasileira. Sob o impacto da entrada dos Estados Unidos na guerra (11 de dezembro de 1941) realizou-se no mês seguinte, no Rio de Janeiro, a III Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas. Três eram os objetivos dos Estados Unidos: obter o rompimento de todo o continente com os países do Eixo, tornar efetiva a cooperação militar e garantir o suprimento de matérias-primas estratégicas. A Argentina se mostrou francamente hostil à proposição norte-americana, o que aumentou a importância da posição a ser adotada pelo Brasil. Vendo ampliado seu poder de barganha, Vargas negociou então, como condição implícita para aceitar demandas norte-americanas (que incluíam a utilização das bases do Nordeste, estreita colaboração militar e fornecimento de matérias-primas), uma série de garantias militares, a liberação efetiva dos recursos necessários à construção de Volta Redonda e todo um conjunto de medidas de ordem comercial (acordos de Washington).

Os acordos de Washington (assinados em março de 1942) constituíram um marco político importante. De um lado, porque eles puseram fim à fase de expectativa quanto ao desfecho da guerra e de hesitação quanto ao engajamento do Brasil lado aos Aliados; de outro porque, vencida essa hesitação, foi o próprio Vargas quem tomou a iniciativa de tentar transformar esse engajamento numa “aliança privilegiada” (em relação aos demais países da América Latina) com os Estados Unidos e de estendê-la aos campos político, militar e econômico. A nova postura internacional se traduziu, no plano político, na demissão das principais figuras do governo que eram simpatizantes do Eixo e, isso, antes mesmo da declaração de guerra do Brasil à Alemanha; no plano militar, no afastamento do general Góis Monteiro da chefia do Estado-Maior, no declínio da corrente militar nacionalista e conseqüente elaboração de uma nova “doutrina militar” de subordinação à estratégia norte-americana, e na iniciativa (de Vargas) de propor a Roosevelt o envio de um corpo expedicionário à Europa e, no plano econômico, na vinda ao Brasil, também por solicitação de Vargas, da primeira missão norte-americana que formulou diretrizes globais para o desenvolvimento econômico do país (Missão Cooke) e nas primeiras pressões da Standard Oil para participar da exploração do petróleo no Brasil. Tudo isso se passou entre março de 1942 e janeiro de 1943. Convém notar que, nesse momento, a invasão do Norte da África pelos Aliados e a derrota alemã em El-Alamein tornavam menos difícil prever o desfecho da guerra.

A reviravolta de Vargas não resultava apenas de considerações imediatas decorrentes da percepção de que o curso da guerra havia mudado e que a Alemanha seria derrotada. Sua atitude também se pautava por uma preocupação quanto ao pós-guerra e à conveniência de o Brasil dispor da proteção e usufruir das vantagens de contar com um aliado forte como os Estados Unidos. Foi isto que ele explicou mais tarde (abril de 1944) em carta a Góis Monteiro, quando afirmava que podia acontecer “que os patrões do momento, aliados pelos interesses comuns da guerra, se desentendam amanhã, na hora da paz”; se tal ocorresse, “é suficiente que os Estados Unidos saibam que eles podem contar conosco e que nós estejamos seguros deles”. Essa aliança, logo transformada em dependência, foi advogada, em termos ainda mais amplos, porque estendida aos domínios político e econômico, por um estudo realizado no Estado-Maior do Exército, já em janeiro de 1943, que figura no arquivo Vargas. E o próprio Roberto Simonsen, que sempre reivindicara ampla proteção para a indústria nacional, escreveria em agosto de 1944: “Nos faltam capitais e mão-de-obra especializada para a indústria, mas nem nossa legislação nem nossa organização econômica favorecem a imigração e os investimentos estrangeiros.” Com o final da guerra, ou a aproximação dela, produziu-se, assim, uma reorientação política importante no âmbito das elites brasileiras. Essa reorientação engendraria também o fim do Estado Novo.

A deposição de Vargas

O torpedeamento pelos alemães do navio brasileiro Cairu, em março de 1942, imediatamente após a assinatura dos acordos de Washington, foi motivo para uma grande manifestação popular de rua que culminou na pilhagem de estabelecimentos alemães na cidade do Rio. No curso dos meses de maio, junho e julho mais oito navios foram afundados. A cada afundamento, estudantes realizavam passeatas de protesto em diferentes cidades do país. Pela primeira vez sob o Estado Novo a ação política ganhava as ruas. Entre 15 e 17 de agosto, mais cinco navios foram atingidos, provocando a morte de seiscentas pessoas. As manifestações se sucediam em todo país, os estudantes do Rio ocuparam o prédio que seria por muitos anos a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), e as faixas e cartazes, inicialmente apenas de condenação à Alemanha, já pediam, embora de forma ainda ambígua, “o fim do fascismo”. A declaração de guerra à Alemanha (agosto de 1942), que era insistentemente pedida nas manifestações de rua, contribuiu para reforçar a confiança dos manifestantes na ação política. Associações foram criadas (Sociedade dos Amigos da América, 1943) ou reativadas (Liga de Defesa Nacional, 1943) em nome da necessidade de mobilizar a população para o esforço de guerra. Essas associações logo se converteriam em centros de debate político e em instrumentos de mobilização popular para a redemocratização do país. O governo se dividia, Vargas hesitava. O Estado Novo estava preso em sua contradição: enviar tropas ao exterior para defender a democracia e, ao mesmo tempo, reprimir os que reclamavam sua restauração no país. O espaço entreaberto pelas manifestações populares seria ampliado pelos pronunciamentos das associações profissionais e das facções políticas que se opunham ao regime autoritário. Pela vez, “eleições, habeas-corpus e garantias constitucionais” eram exigidos claramente (Manifesto dos mineiros, outubro de 1943). No mês seguinte, o presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito de São Paulo, pediu publicamente a destituição de Vargas. A passeata de protesto que se seguiu à sua prisão foi reprimida com violência, fazendo dois mortos e 25 feridos. O ciclo manifestação-repressão-protesto começou a se reproduzir em diferentes estados. Em agosto de 1944, Osvaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, que havia sido o grande artífice do engajamento do Brasil junto aos Aliados, foi eleito vice-presidente da Sociedade dos Amigos da América. Para impedir sua posse e a manifestação política que ela ensejaria, o chefe de polícia do Rio de Janeiro mandou fechar a associação. Aranha protestou junto a Vargas e demitiu-se do ministério. A demissão de Aranha acarretou a de outros membros do governo e acelerou a desagregação política do Estado Novo. Em fevereiro de 1945, o jornal Correio da Manhã publicou entrevista crítica do ex-candidato José Américo, sem submetê-la à censura. O governo foi surpreendido e não reagiu. A partir dessa data os jornais passaram a ignorar a censura e a oposição ao regime ganhou novos meios de expressão.

Vargas pareceu entender que estava diante de um curso novo, que não mais conseguia controlar. E começou a ceder às demandas de redemocratização. Em fevereiro de 1945 foi editado o Ato Adicional nº 9, estipulando que dentro de 90 dias seria fixada a data para a realização de eleições no país (efetivamente marcadas, posteriormente, para 2 de dezembro de 1945). Seguiu-se a decretação da anistia (abril de 1945) e iniciou-se o processo de constituição dos partidos políticos: o Partido Social Democrático (PSD), de abril a junho, a União Democrática Nacional (UDN), de abril a agosto, e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de agosto a setembro. A escolha de um candidato militar pela oposição (brigadeiro Eduardo Gomes) foi a fórmula encontrada pela UDN para precaver-se contra qualquer manobra continuísta de Vargas. Os partidos da situação (PSD-PTB) responderam simetricamente com a candidatura do general Dutra, ainda ministro da Guerra. Embora a escolha de Dutra tivesse contado com o beneplácito de Vargas, a falta de empenho deste, quando teve início a campanha, em prol do candidato oficial, trouxe à memória dos políticos comportamento análogo quando do episódio da candidatura José Américo em 1937. Dutra foi obrigado, no início de agosto, a se desincompatibilizar do Ministério da Guerra e sugeriu a Vargas, que aceitou a sugestão, a nomeação de Góis Monteiro para o posto. Ele transformaria o Exército em árbitro de situação.

Nesse meio tempo, mais exatamente a partir de março de 1945, iniciou-se a mobilização de massas em apoio a Vargas, com total respaldo dos comunistas. Prestes saiu da cadeia para lançar a palavra de ordem de “Constituinte com Getúlio”. Para surpresa da oposição, e receio dos partidários de Dutra, a popularidade de Vargas cresceu seguidamente no país. Vargas realizou comícios de mais de cem mil pessoas e tudo se passava como se ele fosse o verdadeiro candidato. O movimento “queremista” (de “Queremos Getúlio!”) se alastrou e procurou mostrar sua força política realizando sucessivas manifestações de rua, numa demonstração implícita de não-aceitação dos dois nomes consagrados nas convenções partidárias como candidatos à presidência.

Até então a posição norte-americana era de apoio a Vargas e de confiança na promessa deste de garantir a realização das eleições. O embaixador norte-americano no Brasil, Adolf Berle Junior, chegou mesmo a tranqüilizar o Departamento de Estado quanto à agitação política promovida pelos comunistas. Basicamente por duas razões. Primeiro, porque as relações dos Estados Unidos com a União Soviética não haviam ainda entrado na fase da guerra fria (o primeiro ato público de que Prestes participou, ao sair da prisão, foi na embaixada americana, numa cerimônia de homenagem ao presidente Roosevelt, falecido dias antes); segundo, por entender que a mobilização política poderia constituir um elemento de pressão para que as elites dirigentes brasileiras realizassem reformas sociais no país. A posição norte-americana, entretanto, começou a mudar, a partir do segundo semestre de 1945, em face da expansão do movimento popular pró-Vargas e da ampliação das dúvidas quanto às reais intenções deste. Foi nesse contexto que se inseriu o discurso pronunciado pelo embaixador Berle, no final de setembro, louvando a “promessa solene de se realizarem eleições livres” — o que soou como uma advertência americana a Vargas. Embora o discurso tivesse sido previamente submetido a Vargas, que a ele não fizera objeções, este se surpreendeu com a repercussão da fala do embaixador e a considerou como uma intervenção indébita dos Estados Unidos nos negócios internos do Brasil.

No final de outubro, a polícia do Rio de Janeiro, por pressão da hierarquia militar, proibiu a realização de manifestações de rua que pudessem ser interpretadas como de condenação ao quadro eleitoral existente. Tal atitude tinha um endereço certo: o movimento “queremista”. Frente à situação criada, Vargas manobrou para substituir o chefe de polícia de então, João Alberto Lins de Barros, por alguém de sua confiança pessoal: por seu irmão, Benjamim Vargas. Este episódio seria o estopim. Conhecida a intenção de Vargas, ela foi considerada como o primeiro passo para reforçar seu esquema de poder a fim de boicotar as eleições e, utilizando-se de sua forte popularidade junto às massas, permanecer no poder. A informação tornou-se conhecida na manhã do dia 29 de outubro. No mesmo dia, com a aprovação dos dois candidatos à presidência, Góis Monteiro acionou seu dispositivo militar e depôs Vargas, pondo fim ao Estado Novo. A presidência foi entregue provisoriamente ao presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, e das eleições, realizadas na data prevista, saiu vencedor o general Dutra.

Visto de uma perspectiva mais ampla, fazendo-se abstração do que é episódico e, coisa mais difícil, da personalidade de Vargas — o Estado Novo aparece, em síntese, como desempenhando essencialmente duas funções. A primeira foi a de filtro político, destinado a controlar autoritariamente os processos de incorporação de novas camadas sociais à vida econômica e de inclusão de novos grupos à estrutura de poder, de modo a tornar possível a passagem de uma economia agroexportadora para uma economia urbano-industrial, sem que se produzisse a ruptura do esquema básico de dominação. A segunda função parece ter siso a de conter as tendências contraditórias que se manifestavam no âmbito das elites dirigentes, quanto às alianças internacionais a serem estabelecidas em face da conjuntura da guerra mundial, até que a opção correta, ou seja, pelo vencedor, se impusesse a todos.

Luciano Martins

colaboração especial

 

 

FONTES: ARQ. GETÚLIO VARGAS; CAMPOS, F. Estado; CARONE, E. Estado; COUTINHO, L. General; DULLES, J. Vargas; HILTON, S. Brasil e as grandes; MARTINS, L. Pouvoir; MORAIS FILHO, E. Problema; SCHMITTER, P. Interest; SILVA, H. Ciclo; SIMONSEN, R. Planificação; VALADARES, B. Tempos.