CONSTITUIÇÃO DE 1988

CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

Antecedentes:o ocaso do regime militar

A posse do general Ernesto Geisel na presidência da República, em 1974, marcou o início do processo “lento e gradual” de refluxo do poder ditatorial no Brasil. Não obstante a utilização de instrumentos discricionários — que ensejavam a cassação de mandatos parlamentares e a decretação do recesso do Congresso Nacional —, coube historicamente a Geisel a reação à violência física perpetrada pelo Estado brasileiro contra os adversários políticos. Ao término de seu governo, a Emenda Constitucional nº 11, de 13 de agosto de 1978, revogou os atos institucionais e os atos complementares, símbolos do regime de exceção instaurado em 1964.

Indicado por Geisel como candidato do regime à sua sucessão, o general João Batista de Oliveira Figueiredo foi eleito indiretamente pelo Congresso — derrotando o general Euler Bentes Monteiro, lançado pela oposição. Figueiredo tomou posse em 15 de março de 1979 reafirmando o compromisso de restauração da legalidade democrática. Ainda no segundo semestre de 1979 foi aprovada a Lei da Anistia, permitindo a volta dos brasileiros que estavam no exílio e a libertação da maioria dos presos políticos. No mesmo ano foi votada a nova lei dos partidos políticos, rompendo com o bipartidarismo artificial e dando ensejo ao pluripartidarismo. Atentados terroristas cuja origem estava na própria base de sustentação militar do governo — contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1980; e no Riocentro, em 1981 —, embora impunes, não comprometeram a lenta marcha em direção ao Estado democrático.

A crescente e generalizada insatisfação com o regime militar desaguou num amplo movimento suprapartidário pelo restabelecimento das eleições diretas para presidente da República. Nas principais capitais do país, centenas de milhares de pessoas acorreram às ruas em manifestações de oposição ao governo sob a palavra de ordem “diretas já”. Em 25 de abril de 1984, sob estado de emergência decretado na capital federal, foi votada a proposta de emenda constitucional que restauraria o pleito direto. Embora tivesse obtido a maioria dos votos dos parlamentares, a emenda não teve o apoio de dois terços dos deputados, necessários para que ela fosse encaminhada ao Senado. Caso ela tivesse sido aprovada, com maioria qualificada, nas duas Casas do Congresso a Constituição seria, então, modificada. Apesar da frustração trazida pelo desfecho do movimento, a verdade é que o regime militar já não apresentava unidade interna nem contava com apoio político suficiente para prolongar-lhe a duração.

Após intensa disputa interna, o Partido Democrático Social (PDS), de sustentação do regime militar, indica como candidato à presidência o ex-governador de São Paulo Paulo Maluf. Forma-se, no entanto, uma dissidência no PDS, que vai unir-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), a principal agremiação de oposição, formando a Aliança Democrática. Tancredo Neves, um dos principais líderes da oposição moderada ao longo de todo o regime militar, é lançado candidato à presidência, tendo como vice-presidente, na mesma chapa, José Sarney, que fora um dos principais articuladores civis do regime militar. Tancredo derrota Maluf na eleição indireta pelo Colégio Eleitoral realizada em 15 de janeiro de 1985. No entanto, adoece antes de tomar posse e morre em 21 de abril de 1985.

José Sarney assumiu a presidência num momento difícil. Salvo o breve período de sucesso do plano econômico de combate à inflação, denominado Plano Cruzado, seu governo foi marcado por uma crescente insatisfação política e social, para a qual não deixaram de contribuir a personalidade do presidente, os desacertos econômicos e as denúncias persistentes de corrupção e favorecimentos. Ao longo dos cinco anos do governo Sarney, que se estende até 15 de março de 1995, afirmou-se política e eleitoralmente o Partido dos Trabalhadores (PT).

Em cumprimento ao compromisso de campanha assumido por Tancredo Neves, foi convocada, pela Emenda Constitucional nº 26, de 15 de maio de 1985, uma assembléia nacional constituinte para elaborar a nova Constituição brasileira.

 

Instalação, ambiente político e métodos de trabalho da Assembléia Nacional Constituinte: o preâmbulo do texto final aprovado

Previu a Emenda Constitucional nº 26/85 que os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-iam, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987. Não prevaleceu a idéia, lançada por segmentos da sociedade civil, de eleição de uma assembléia constituinte exclusiva, que se dissolveria quando da conclusão de seus trabalhos. Optou-se pela outorga de poderes constituintes ao Congresso Nacional, tendo sido admitida, inclusive, a participação dos senadores alcunhados de biônicos — resíduo autoritário do governo Geisel, que outorgara a Emenda Constitucional nº 8, de 1977, na qual se previa que um terço das vagas do Senado seria preenchido por eleição indireta.

Instalada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro José Carlos Moreira Alves, a Assembléia Constituinte elegeu, em seguida, como seu presidente, o deputado Ulisses Guimarães (PMDB-SP), que fora o principal líder parlamentar de oposição aos governos militares. Os trabalhos, a exemplo do que já ocorrera em 1946, desenvolveram-se sem a apresentação de um anteprojeto prévio. É de interesse assinalar que o próprio Poder Executivo havia instituído, em julho de 1985, a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais — conhecida, em razão do nome de seu presidente, como Comissão Afonso Arinos —, que veio a apresentar um anteprojeto. Tal texto, todavia, a despeito de suas virtudes, não foi encaminhado à Constituinte pelo presidente Sarney, inconformado, entre outras coisas, com a opção parlamentarista nele veiculada.

A ausência de um texto base e a ânsia de participação de todos os segmentos da sociedade civil, arbitrariamente alijados do processo político por mais de 25 anos, dificultaram significativamente a racionalização e a sistematização dos trabalhos constituintes. Dividida, inicialmente, em 24 subcomissões, oito comissões temáticas e a Comissão de Sistematização, o processo constituinte padeceu das vicissitudes inevitáveis a um empreendimento do seu porte naquele contexto, assim como de ingerências excessivas do Executivo e da dificuldade de formação de maiorias consistentes, mesmo em questões meramente regimentais.

Após uma fase de conclusão penosa e desgastante, a Constituição foi finalmente promulgada em 5 de outubro de 1988, tendo sido aclamada como a “Constituição Cidadã”, na expressão do presidente da Assembléia, Ulisses Guimarães. No texto de seu preâmbulo, está uma fotografia, retocada pela retórica e pelo excesso de boas intenções, do momento histórico de seu nascimento e das aspirações de que deveria ser instrumento:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”

 

Características gerais da Constituição de 1988:a estrutura do texto(virtudes e defeitos)

A Constituição brasileira de 1988 teve, antes e acima de tudo, um valor simbólico: foi ela o ponto culminante do processo de restauração do Estado democrático de direito e da superação de uma perspectiva autoritária, onisciente e não pluralista de exercício do poder, timbrada na intolerância e na violência. Ao reentronizar o direito e a negociação política na vida do Estado e da sociedade, removeu o discurso e a prática da burocracia tecnocrático-militar que conduzira a coisa pública no Brasil por mais de 20 anos.

À medida que se distanciou no tempo, foi-se tornando possível o exame do ciclo que se encerrou em outubro de 1988 sem a distorção das paixões políticas. O que se constatou foi que o período ditatorial exibiu indicadores econômicos positivos e indicadores sociais dramáticos. Inserido na economia mundial como um dos dez grandes produtores de riquezas, o Brasil ainda convivia com índices sofríveis em áreas como educação, habitação e saúde. A inapetência política para o enfrentamento da questão agrária agravou os problemas urbanos, que em sua ponta mais visível manifestava-se no aumento da criminalidade e da violência em geral.

No plano institucional, o exercício autoritário do poder desprestigiou e enfraqueceu os órgãos de representação política e afastou da vida pública as vocações de toda uma geração. O processo de amadurecimento democrático, de consciência política e de prática da cidadania ficou truncado. Agravou-se, ainda, pelo fisiologismo e pelo clientelismo — que não podiam ser denunciados nem combatidos à luz do dia — a atávica superposição entre o público e o privado, com as perversões que a acompanharam: favorecimentos, nepotismo, corrupção e descompromisso com a eficiência.

O processo constituinte que resultou na nova Carta teve como protagonistas, portanto, uma sociedade civil marcada por muitos anos de marginalização, e um Estado apropriado pelos interesses privados que ditavam a ordem política e econômica até então. Na euforia — saudável — de recuperação das liberdades públicas, a Constituinte foi um amplo exercício de participação popular. Neste sentido, foi inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, foi precisamente este caráter democrático que fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de interesses legítimos de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, corporativos, ambições pessoais etc. O produto final foi heterogêneo, com qualidade técnica e nível de prevalecimento do interesse público oscilantes entre extremos.

A doutrina constitucional caracteriza a Carta de 1988 como sendo compromissória, analítica e dirigente. Compromissória por ser um texto dialético, sem predomínio absoluto de uma única tendência política. Em um mundo ainda marcadamente dividido em dois blocos ideológicos antagônicos, o texto buscou um equilíbrio entre os interesses do capital e do trabalho. Ao lado da livre iniciativa, alçada à condição de princípio fundamental da ordem institucional brasileira, consagraram-se regras de intervenção do Estado no domínio econômico, inclusive com a reserva de determinados setores econômicos à exploração por empresas estatais, alguns deles sob regime de monopólio. O texto contemplou, ademais, um amplo elenco de direitos sociais para os trabalhadores e impôs restrições ao capital estrangeiro.

Os constituintes de 1988 optaram, igualmente, por uma Carta analítica, na tradição do constitucionalismo contemporâneo, materializado nas constituições portuguesa e espanhola, respectivamente de 1976 e 1978. Os dois países, a exemplo do Brasil, procuravam superar experiências autoritárias. O modelo oposto é o que tem como paradigma a Constituição dos Estados Unidos, exemplo típico do constitucionalismo sintético, cujo texto contém apenas sete artigos e 27 emendas (em sua maior parte, aditamentos e não modificações à versão original). A tradição brasileira, a complexidade do contexto em que se desenvolveu a reconstitucionalização do país e as características de nosso sistema judicial inviabilizaram a opção pela fórmula do texto mínimo, cuja importação seria um equívoco caricatural. É inevitável a constatação, todavia, de que os constituintes de 1988 caíram no extremo oposto, produzindo um texto que, menos que analítico, é casuístico e prolixo.

Por fim, a Carta brasileira de 1988 é dirigente. O termo, trazido do constitucionalismo português, identifica uma opção pela inclusão no texto constitucional de grandes linhas programáticas, que procuram sinalizar caminhos a serem percorridos pelos legisladores e pela administração pública. Estabelecem-se fins, tarefas e objetivos para o Estado e para a sociedade. Este tipo de constitucionalismo diminui, de certa forma, a densidade jurídica do texto, embora represente um esforço para condicionar a atuação dos poderes e impulsioná-los na direção eleita pelos constituintes, notadamente em domínios como os da educação, da cultura, da saúde e da realização de valores como a justiça social e os direitos a ela inerentes. O constitucionalismo dirigente é extremamente dependente da atuação do Congresso Nacional na edição das leis ordinárias necessárias ao desenvolvimento dos programas meramente alinhavados na Constituição.

A Constituição de 1988 convive com o estigma, já assinalado antes, de ser um texto excessivamente detalhista, que em diversos temas perdeu-se no varejo das miudezas — seja no capítulo da administração pública, como no título da ordem tributária ou no elenco de mais de 70 artigos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para citar apenas alguns exemplos. Não escapou, tampouco, ao ranço do corporativismo exacerbado, que inseriu no seu texto regras específicas de interesse das mais diversas categorias, inclusive magistrados, membros do Ministério Público, advogados públicos e privados, polícias federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar, corpo de bombeiros, cartórios de notas e de registros, que bem servem como eloqüente ilustração. O texto foi marcado, em sua versão originária, pela densificação da intervenção do Estado na ordem econômica, em um mundo que caminhava na direção oposta, e por uma recaída nacionalista que impôs restrições ao ingresso de capital estrangeiro de risco, em domínios como os da mineração, das telecomunicações, do petróleo, do gás etc.

A nova Carta não foi capaz de conter a crônica voracidade fiscal do Estado brasileiro, nem de impedir um sistema tributário que, na prática, constitui um cipoal de tributos que se superpõem, criando uma onerosa e ineficiente burocracia nos diferentes níveis de poder. O sistema de seguridade social, notadamente no campo previdenciário, integra uma estrutura que se tornou economicamente inviável e incapaz de conter a sangria de recursos imposta pelas fraudes e pela corrupção. É preciso, todavia, conservar a capacidade de identificar as vicissitudes que podem e devem ser associadas ao texto constitucional de 1988 com outras tantas que fazem parte da crônica patologia institucional, social e cultural brasileira, e que não podem ser imputadas ao trabalho dos constituintes, mas, sim, a um país fragilizado por sucessivas rupturas políticas e pelo desequilíbrio de suas relações sociais.

Nesta linha de raciocínio, é preciso evitar que a crítica, cabível e necessária, venha a encobrir as virtudes e as inovações criativas e valiosas trazidas pela Carta de 1988. Os direitos fundamentais, por exemplo, transplantados para o início do texto constitucional, antes da disciplina da organização do Estado e dos poderes, configuram, a despeito da enunciação prolixa e desarrumada, uma valiosa carta de proteção dos cidadãos brasileiros, tanto contra os abusos estatais como contra os privados. Novas ações judiciais, como o mandado de segurança coletivo e a constitucionalização da ação civil pública, ampliaram os mecanismos de proteção dos direitos, inclusive os de última geração, intitulados direitos difusos, que abrigam áreas importantes como a tutela do meio ambiente e do consumidor.

A nova Constituição, além disso, reduziu o desequilíbrio entre os poderes da República, que no período militar haviam sofrido o abalo da hipertrofia do Poder Executivo, inclusive com a retirada de garantias e de atribuições do Legislativo e do Judiciário. A nova ordem restabelecia e, em verdade, fortalecia a autonomia e a independência do Judiciário, assim como ampliava as competências do Legislativo. Não obstante, a Carta de 1988 manteve a capacidade legislativa do Executivo, não mais através do estigmatizado decreto-lei, mas por meio das medidas provisórias, importadas do regime italiano, onde o sistema parlamentar de governo dava maior lastro de legitimidade ao instituto. Embora em todo o mundo se tivesse operado, em maior ou menor intensidade, o esvaziamento da capacidade legislativa originária do Parlamento, o fato é que a redação do texto constitucional e a timidez do Legislativo e do Judiciário deram ensejo ao abuso da utilização de um instrumento que, nascido para acudir a situações excepcionais — de “relevância e urgência”, como prevê o artigo 62 —, passou a integrar a rotina no processo de edição de normas jurídicas.

A Federação, mecanismo de repartição do poder político entre a União, os estados e os municípios, foi amplamente reorganizada, superando a fase do regime de 1967-1969, de forte concentração de atribuições e receitas no governo federal. Embora a União tenha conservado, ainda, a parcela mais substantiva das competências legislativas, ampliaram-se as competências político-administrativas de estados e municípios, inclusive com a previsão de um domínio relativamente amplo de atuação comum dos entes estatais. A partilha das receitas tributárias foi feita de forma mais equânime, sem a prevalência quase absoluta da União, como no regime anterior. A prática revelou, no entanto, que os principais beneficiários do sistema de distribuição de receitas foram os grandes municípios. Os estados brasileiros, dez anos depois de promulgada a Constituição, a despeito da recuperação da plena autonomia política, não tinham conseguido, em sua grande maioria, encontrar o equilíbrio financeiro desejável.

Em matéria eleitoral, a Constituição de 1988 reintroduziu o voto direto para a presidência da República, transformado em cláusula pétrea (artigo 60, §4º, II), e estabeleceu a eleição em dois turnos na hipótese de nenhum candidato alcançar a maioria absoluta na primeira votação (artigo 77, §2º e §3º).

 

Vigência da Constituição de 1988; as eleições de 1989; os governos Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso;as reformas constitucionais

Em 15 de novembro de 1989 realizou-se a primeira eleição de um presidente da República, por via direta, desde a sagração de Jânio Quadros, em 1960. O Partido dos Trabalhadores (PT), o principal partido de oposição, e que ganhou densidade política e eleitoral no rastro do desgaste do governo Sarney, lançou como candidato Luís Inácio Lula da Silva, seu principal líder desde a fundação, uma década antes. No setor liberal-conservador, também beneficiado pelo descrédito das principais figuras políticas do país, o candidato que se destacou foi Fernando Collor de Melo, lançado pelo inexpressivo Partido da Reconstrução Nacional (PRN) e que acabou obtendo o apoio dos setores empresariais e dos principais meios de comunicação. No primeiro turno das eleições Collor obteve 28% dos votos, seguido de Lula, com 16%. Não se habilitaram para o segundo turno concorrentes de expressão e tradição política no país, como Leonel Brizola (PDT), Ulisses Guimarães (PMDB) e Mário Covas (PSDB).

Collor derrotou Lula no segundo turno, realizado em dezembro, com 42,75% dos votos, contra 37,86%. Empossado, o novo presidente deflagrou um ambicioso plano econômico, que, em medida de questionável constitucionalidade, promoveu a retenção da quase totalidade dos ativos depositados em instituições financeiras, inclusive nas cadernetas de poupança. O Plano Brasil Novo foi instituído mediante utilização abusiva das recém-criadas medidas provisórias, e, em pouco mais de um ano, já havia se tornado uma nova aventura monetária fracassada.

A despeito do choque inicial, o discurso neoliberal e privatizante de Collor contou com amplo apoio da mídia e da opinião pública. Sua credibilidade, todavia, começou a desmoronar no início do segundo ano de governo. Um provinciano desentendimento entre o presidente e seu irmão Pedro Collor de Melo trouxe à tona uma enorme rede de extorsão e corrupção que comprometia o chefe de Estado e o tesoureiro de sua campanha presidencial, Paulo César Farias.

A crise que se seguiu às denúncias de Pedro Collor levou à instauração de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) que, contrariando uma tradição de inconseqüência, revelou, para um país atônito, que o poder público fora tomado de assalto por personagens envolvidos em variados ilícitos penais. Ao final de agosto de 1992, quando a CPI deliberou pela responsabilização do presidente, por 16 votos contra cinco, o país já sofria o impacto das multidões que, em movimento espontâneo, exigiam o impeachment de Collor.

Em 29 de setembro de 1992, a Câmara dos Deputados, ao apreciar o requerimento apresentado pelos presidentes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação Brasileira da Imprensa (ABI), aprovou a abertura de processo por crime de responsabilidade contra Collor, com a expressiva margem de 441 votos a favor. O presidente foi, então, afastado do cargo. Quando de seu julgamento pelo Senado, já iniciada a sessão, Collor enviou uma carta-renúncia, mas viu frustrado o artifício para livrar-se da cassação de seus direitos políticos pelo prazo de oito anos. Perdeu o mandato e teve seus direitos políticos cassados por oito anos.

O desfecho exemplar do episódio revigorou as instituições e desfez o mito do golpismo. O país mostrou-se capaz de administrar suas crises políticas sem violentar a Constituição.

Com a destituição de Collor, assumiu definitivamente o cargo o vice-presidente Itamar Franco, um tradicional político mineiro, que fora membro histórico do PMDB.

Em 21 de abril de 1993, realizou-se o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo, previsto no artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: por 66% contra 10,2% venceu a república sobre a monarquia; e, por 55,4% contra 24,6%, o povo brasileiro optou pelo modelo presidencialista, derrotando a proposta parlamentarista.

Nas eleições presidenciais de 3 de outubro de 1994 venceu, em primeiro turno, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ex-ministro da Fazenda de Itamar Franco. Em segundo lugar ficou, mais uma vez, Luís Inácio Lula da Silva, do PT. Com Fernando Henrique chegou ao poder, pela primeira vez, um integrante da geração que fora perseguida pelo regime de 1964.

Fernando Henrique Cardoso atravessou seu primeiro mandato com expressivos índices de apoio popular. A oposição, enfraquecida e desarticulada, não foi capaz de dar densidade e repercussão à crítica que fazia ao governo pela fragilidade de sua atuação na área social. A eterna indignação pela existência atávica de uma legião de excluídos continuou a assombrar o país, sem soluções objetivas ou de curto prazo. O governo, no entanto, no período de 1995 a 1998, foi capaz de capitalizar como ganho político a duradoura estabilidade econômica. Em 4 de junho de 1997, foi aprovada, pelo quórum constitucional de 3/5 dos membros de cada casa do Congresso, e em contraste com a tradição republicana brasileira, a Emenda Constitucional nº 16, pela qual passava a ser permitida a reeleição do presidente da República e dos chefes dos executivos estaduais e municipais por um período subseqüente.

Realizaram-se, ainda, neste quadriênio (observe-se que a Emenda Constitucional de Revisão nº 5, de 7 de junho de 1994, reduzira o mandato presidencial de cinco para quatro anos) reformas econômicas substanciais, que importaram na quebra ou na flexibilização de monopólios estatais, na privatização de inúmeras empresas controladas pelo poder público e na significativa redução de restrições ao capital estrangeiro em múltiplas áreas. Em 1988 encontravam-se em curso reformas de natureza tributária, administrativa e previdenciária.

 

Conclusão

Ao longo da história brasileira, sobretudo nos períodos ditatoriais, reservou-se ao direito constitucional um papel menor, marginal. Nele buscou-se não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce. A Constituição de 1988, com suas virtudes e imperfeições, teve o mérito de criar um ambiente propício à superação dessas patologias e à difusão de um sentimento constitucional apto a inspirar uma atitude de acatamento e afeição em relação à Lei Maior. O último decênio é marcado pela preocupação, tanto dos próprios constituintes, como da doutrina e dos tribunais, com a efetividade do texto constitucional, isto é, com o seu real cumprimento, com a concretização da norma no mundo dos fatos e na vida das pessoas.

A patologia do autoritarismo, aliada a certas concepções doutrinárias retrógradas, havia destituído outras constituições de sua força normativa, convertendo-as em um repositório de promessas vagas e exortações ao legislador infra-constitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. A Constituição de 1988 teve o mérito elevado de romper com este imobilismo. Embora tivesse disposições inoperantes, a Constituição, tanto como carta de direitos quanto como instrumento de governo, é uma realidade viva na prática dos cidadãos e dos poderes públicos.

A Constituição de 1988, no entanto, não escapou de uma das crônicas patologias de nosso constitucionalismo: a compulsão incontida de reformar o seu texto, ao sabor de conjunturas passageiras e polêmicas efêmeras. Uma constituição há de ter vocação de permanência para poder mobilizar a adesão sincera, afetiva e efetiva da cidadania. Neste particular, se evidenciou que o ciclo do amadurecimento institucional brasileiro ainda não se tinha completado.

Luís R. Barroso colaboração especial

 

FONTES: BARROSO, L. Interpretação; BASTOS, C. & MARTINS, I. Comentários; HORTA, R. Estudos; SILVA, J. Curso de direito constitucional.