CONSTITUIÇÃO DE 1946
A técnica observada nas constituições contemporâneas para a ordenação do Estado, em aperfeiçoamento de modelos seculares com base nas declarações de direitos humanos, abrange e especifica preceitos fundamentais relativos: 1) à forma de Estado (unitário ou federal); 2) à forma de governo (monárquico ou republicano) e regime representativo (parlamentar ou presidencial); 3) à discriminação de competências do Estado federal e dos Estados-membros; ou do poder central e dos derivados para a administração provincial e local; 4) às atribuições dos poderes e dos respectivos órgãos em cada ordem estatal; 5) à responsabilidade dos altos mandatários; 6) aos direitos e garantias individuais; 7) à disciplina da ordem econômica e social; 8) à complementação de princípios ou mandamentos constitucionais mediante leis orgânicas, aprovadas pela legislatura com observância de quorum especial; 9) à presumida estabilidade do texto originário e ao processo de sua emenda ou revisão, salvo reserva explícita, e 10) ao primado das regras constitucionais sobre as regras elaboradas pelos órgãos legislativos ou, no exercício de função normativa, pelos órgãos executivos e judiciários em sua respectiva esfera; e, em conseqüência, à instituição do juízo de legitimidade constitucional.
É bem de ver que, em se tratando de “pactos sociais” com iniciativa, aceitação ou consenso da coletividade, a enunciação desses princípios corresponde às exigências e aos propósitos de certa situação em certa época — tanto vale dizer, ao “momento histórico” no qual se tenham condensado as aspirações da sociedade política. Qualquer estudo comparativo de constituições que hajam regido, por alguns períodos, determinado país, se deve tentar, com possível verossimilhança, partindo de dados factuais para conceitos doutrinários e desses últimos para a finalidade que se visou alcançar através de “variantes” só explicáveis pelas contingências ou imposições da realidade.
Para definir as peculiaridades da Constituição de 1946, em confronto com as constituições antecedentes, parece de bom alvitre seguir o roteiro esboçado anteriormente, desde o primeiro até o último item — como síntese do progresso operado em nossas instituições basilares no curso de 122 anos. Tal é o método a que obedecemos, destacando cada uma das características arroladas para fácil compreensão da causa e alcance da evolução processada em tão largo período.
Forma de Estado
Tanto no projeto de 1823 quanto na Carta de 1824 se enfatizava o “Estado unitário”, em seqüência à política de colonização desenvolvida pelos portugueses nos séculos pretéritos e cuja constante fora submeter à Coroa e aos seus agentes (donatários de capitanias, governadores etc.) toda a jurisdição do vastíssimo território, de modo a lhe assegurar a integridade, defendê-lo de incursões estranhas e, quando possível, dilatá-lo com mira predileta nas riquezas minerais de um promissor Eldorado.
De uma vez por todas se desataram, com a proclamação da Independência, os laços que ainda nos prendiam às cortes de Lisboa, suspeitosas do príncipe regente, e deslocou-se automaticamente para o Rio de Janeiro o eixo de rotação do novo Império, embora a autoridade suprema se houvesse transferido a um soberano da dinastia dos Braganças. Minorou-se o rigor da antiga concentração com a instituição das “províncias”, as quais, embora subdivididas como pedia o bem do Estado (Carta, art. 2º), ganharam autonomia em seus interesses peculiares (art. 71) mediante deliberações das câmaras dos distritos e dos “conselhos gerais” (art. 81 e segs.), eleitos por prazo igual ao dos representantes da nação, ou seja, “pelo tempo de cada legislatura” (art. 74). Porém, as “resoluções”, para serem executadas, dependeriam de aprovação por parte da Assembléia Geral do país e, não estando ela reunida, por parte do imperador, em caráter provisório (art. 86).
O sistema assim delineado exigia desde a sua implantação reformas substanciais, como as conquistadas pela corrente liberal com a iniciativa, em 1832, de propor e obter que se autorizasse a legislatura vindoura a reformar cláusulas constitucionais. Destarte, em 1834, promulgou-se o Ato Adicional que, entre outras medidas, criou as assembléias legislativas provinciais, embrião do self-government a que aspiravam as coletividades regionais. A reação conservadora logrou que a Lei de Interpretação de 1840 restringisse algumas inovações autonomistas daquele avançado texto.
Com o correr dos anos e principalmente nos derradeiros decênios do Segundo Reinado, ganhou corpo e vigor a campanha em prol da Federação, alvo tão cobiçado quanto a abolição da escravatura e a queda da monarquia. A tais ditames da opinião responsável (exceto o da libertação do “elemento servil”, consumada no débil ocaso da realeza) teriam de corresponder primariamente os chefes militares e os líderes civis que proclamaram a República. Não foi outro o significado do primeiro decreto do Governo Provisório.
No que concerne à idéia federativa (antes mesmo da estruturação que incumbiu à Constituinte) tornaram-se veementes, senão categóricas, estas afirmações, logo operantes: l) a decretação “como forma de governo” da República Federativa (art. 1º); 2) a integração das províncias (“reunidas pelos laços da Federação”) nos Estados Unidos do Brasil (art. 2º); 3) a atribuição conferida às unidades federadas de promulgarem suas próprias constituições (art. 3º). Acrescentou-se uma disposição transitória: antes da eleição da assembléia geral e das legislaturas estaduais, a nação seria regida pelo Governo Provisório, e os novos estados, pelos governos que houvessem proclamado e, na falta destes, por agentes ou delegados do órgão central já em pleno exercício legiferante e executivo.
A 24 de fevereiro de 1891, o Congresso Constituinte realizava — um século mais tarde — a aspiração dos inconfidentes mineiros: a adoção, nesse particular, de um Estado federal semelhante ao que instauraram, àquele tempo, as colônias inglesas da América. A diferença originária daquele padrão, acentuada pelos doutos, consistiu no fato de que a evolução do federalismo nos Estados Unidos (e também na Suíça) se efetuara em sentido oposto à do brasileiro: no dizer de Carlos Maximiliano, em seus Comentários à Constituição brasileira, de 1918, “aquele veio da periferia para o centro; esta, do centro para a periferia”.
Talvez dessa distinção, mas principalmente de hábitos políticos inveterados, sob anteriores sistemas (latentes ainda no subconsciente coletivo), se tenham originado diversidades flagrantes no modo de interpretar os fins presumidos nas novas fórmulas legais, como seria em primeiro plano a permissão excepcionalíssima de intervir a União nos estados-membros, com o intuito prevalente de lhes garantir uma forma republicana de governo e proteger cada um deles contra a invasão e contra a violência interna, à requisição da Legislatura ou do Executivo (quando aquela não se pudesse reunir), segundo o modelo norte-americano (Const., art. 4º, seção 4ª), perfilhado, senão aperfeiçoado, pelo modelo argentino (Const., art. 6º). Tanto na Argentina como no Brasil, o artigo 6º de uma e outra Constituição foi provavelmente o mais discutido, o mais esmerilhado, o mais criticado em ambos os países pelos efeitos maléficos de sua viciosa e deturpada aplicação a casos concretos, dos quais emanaram a censura, o repúdio, o fastio da opinião nacional.
Desde os primeiros anos da nova Lei Magna (1892-1899) travaram-se a respeito agitadas discussões no Congresso, como registram o primeiro e o segundo volumes dos Documentos parlamentares, editados em 1913. O quadro da primeira década, debuxou-o Alcindo Guanabara em A presidência Campos Sales, de 1902, partícipe e testemunha dos acontecimentos: “Até então, o regime federal e presidencial havia sido praticado de modo tão imperfeito, tão eivado de usos e costumes derivados do anterior regime unitário e parlamentar que, em verdade, se poderia dizer que dele não tivéramos senão uma burlesca caricatura. A geração atual, educada nos últimos 30 anos do regime imperial, afeiçoara-se a formar do governo central a idéia de que ele devera ser uma coletividade, cuja ação seria a resultante das deliberações tomadas em conjunto; e que, se por um lado esse corpo governativo deveria ter uma existência precária por estar continuamente dependente da vontade e dos caprichos da Câmara dos Deputados, por outro representaria tamanha soma de poder e tão extensa autoridade que nenhuma parcela do território nacional escapasse à sua ação e influência. Embalde a Constituição de 24 de fevereiro arrasou pela base essa construção política e em seu lugar erigiu um governo federal de natureza, ação e temperamento profundamente diferentes: pode-se dizer, sem risco de exagero, que muitos dos mesmos que a votaram continuaram instintivamente a ver nesse ‘governo federal’ o antigo governo central do Império e a reclamar dos incumbidos de exercê-lo a prática de atos e a observância de normas que totalmente desnaturavam. Os dez anos de vida da República foram, aliás, inúteis para modificar esse temperamento dos homens políticos, que reagiu sempre quer sobre o Congresso, quer sobre o governo, determinando praticamente a existência de uma relação de dependência deste para aquele e anulando de fato a órbita de autonomia política dos estados, efetivamente subordinados à vontade onipotente do centro.”
E, em síntese: “Assim, a verdade era que a Constituição de 24 de fevereiro havia apenas coberto o país com uma nova forma política; mas, no fundo, o país continuava a ser regido pelo mesmo espírito do unitarismo e do parlamentarismo, que evidentemente não se podia acomodar dentro das roupagens de que o revestiam.”
A perniciosa situação persistiria em sucessivos decênios, apesar dos esforços de Campos Sales, mal se empossara, de preconizar “uma política que pudesse salvar a República do tremendo desastre moral que a ameaçava” (Da propaganda à presidência, de 1908). O remédio que lhe acudia foi o de fortalecer o Executivo federal com o apoio dos executivos estaduais: “Em que se pese aos centralistas, o verdadeiro público que forma a opinião e imprime direção ao sentimento nacional é o que está nos estados. É de lá que se governa a República por cima das multidões que tumultuam, agitadas, nas ruas da capital da União.” E noutra passagem: “A política dos estados, isto é, a política que fortifica os vínculos de harmonia entre os estados e a União é, pois, na sua essência, a política nacional. É lá, na soma dessas unidades autônomas, que se encontra a verdadeira soberania de opinião. O que pensam os estados pensa a União.”
Mas, ao revés das intenções do presidente —, para quem a intervenção federal tocava “o coração da República” —, a “política dos governadores” (como passou a ser conhecida) marcou um retrocesso temível e duradouro no funcionamento das instituições, ensejando conseqüências inesperadas e contraproducentes na dinâmica do regime. Entre elas incluíram-se: a) o desestímulo e a inorganicidade de “partidos nacionais”; b) o incentivo de “partidos estaduais”, apoiados pelo poder central e beneficiários ou credores da solidariedade ao situacionismo local contra as facções dissidentes ou adversas; c) o enfraquecimento de um e outros governos — o da União e os dos estados — em razão da ajuda por eles convencionada, sempre limitativa da própria autonomia, com imediato e depressivo reflexo quer na administração de cada um deles, quer na sua orientação ou responsabilidade políticas, e d) a possibilidade de ruptura do compromisso e bem assim de incompatibilidades intercorrentes e, nessas hipóteses, o constante risco ao qual estariam expostos os estados-membros: a intervenção federal.
Em verdade, o temido flagelo grassou de 1905 a 1923, como se infere de mais seis volumes da coleção Documentos parlamentares. A última intervenção do período teve lugar no estado do Rio, contra a posse, no governo, de Raul Fernandes, eleito, reconhecido e amparado por habeas-corpus do Supremo Tribunal Federal.
No mesmo quadriênio o Congresso procedeu à revisão do causticado artigo 6º, inflando-o com um rol casuístico de previsões e reforçando a autoridade do presidente.
Com esse instrumental, expirou em 1930 a República Velha. A que lhe seguiu só tomou forma em 1934. E, no ponto de que tratamos, a Constituição de 16 de julho disciplinou cautelosamente o perigoso instituto, a ponto de servir de base à feliz formulação da matéria na Constituição de 1946. Uns e outros dispositivos evitaram a recrudescência, esporádica ou intermitente, dos malsinados abusos da tradição política.
Forma de governo e regime representativo
As conjuras e levantes regionais ao final do século XVIII e ao começo do século XIX tinham por meta a emancipação e a República. Se vitoriosos, talvez incorressem, por desvios inevitáveis, no erro de subdividir a América Portuguesa como os libertadores contemporâneos entravam a fragmentar a América Espanhola, em nome e em conseqüência dos ideais que afagavam. Porém a unidade do Brasil foi preservada providencialmente, com outra e insuspeitável direção dos fatos que, agravando ao máximo o conflito entre o Reino e o príncipe regente, apressaram a Independência e tornaram vital para ela (como condição de êxito e segurança) a permanência no poder do seu “defensor perpétuo”, em cuja fronte passou a luzir a coroa imperial, signo — em dias sombrios e incertos — de ordem, autoridade e paz.
A Carta de 1824 cedeu — apenas na aparência (art. 9º ao 12) — ao dogma da “soberania popular”, consignando que os poderes políticos (Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial) eram “delegações da nação”, mas desta só seriam “representantes” o imperador e a Assembléia Geral (art. 11). Com efeito, o monarca, além de chefiar o Executivo, integrado em segundo grau por “seus ministros de Estado” (art. 102), e de contrariar, com os próprios atos, a regra tradicional de que “o rei reina mas não governa”, cumulou com aquelas atribuições outras mais vastas do Poder Moderador (art. 101, itens I a IX), “chave de toda a organização política”, que velaria incessantemente “sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos”.
A inovação se inspirara em escritos de Benjamim Constant que, por sua vez, se havia inspirado em concepção de Clermont Tonnerre. Tanto o achado serviu aos interesses de Pedro I que mais tarde o incluiria — como observou o visconde de Uruguai em seu Ensaio sobre o direito administrativo, de 1862 — no artigo 71 da Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa.
A despeito da atipicidade do regime, disfarce de uma realidade autocrática, a Assembléia Geral insistia em mirar-se no mecanismo parlamentar à inglesa e aproximava-se quanto possível dos estilos da monarquia constitucional representativa. Tais modelos eram sempre invocados nos debates e pouco a pouco se tornavam reivindicação contínua de prerrogativas, não reconhecidas ainda para o cabal desempenho da função legislativa. Sem apoio no rígido texto da Carta, deu-se no Segundo Reinado largo passo para a normalidade da instituição — o Decreto nº 523, de 20 de julho de 1847, que criou o cargo de presidente do Conselho, de modo “a dar ao Ministério uma organização mais adaptada às condições do sistema representativo”. Salvava-se a face, porém no mesmo longo reinado se dilataria o “poder pessoal” do imperador, sob críticas acerbas dos contemporâneos, como as de Teófilo Otoni, Ferreira Viana, Sales Torres Homem e José de Alencar.
A República seria no principal a antítese daquele sistema. Tanto quanto em relação à Federação, a Constituição de 1891 se amoldou, nas linhas gerais, ao protótipo norte-americano, matriz de outras constituições do continente sul. Adotando o “regime representativo” (art. 19), limitou-se a qualificar de “órgãos da soberania nacional” os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, “harmônicos e independentes entre si” (art. 15). Mas ao estatuto de 1934 se deveu a formulação do “princípio de legitimidade” (art. 29), expresso em melhor redação no estatuto de 1946. “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.” A artificialidade do regime presidencial e suas distorções explicam-se pela carência de efetiva base popular, como “poder primário” do qual derivam os órgãos eletivos.
A Primeira República não podia se estear em partidos nacionais “institucionalizados”, pois jamais existiram como categorias imprescindíveis ao processo político. A redução do eleitorado, os defeitos notórios da legislação e o império da fraude (desde o alistamento até a apuração dos sufrágios) falsearam em todas as circunscrições a realidade do voto, transferindo da base popular para os grupos dominantes o exercício da decantada “soberania popular”. A evolução desse estado mórbido foi exposta em cores vivas na célebre contestação de Rui Barbosa à eleição do marechal Hermes da Fonseca. O menos que, daí por diante, se pôde argüir em defesa, foi salientar que, na União ou nos estados, os ocupantes dos postos de comando não tinham, a bem dizer, “representação” e sim “representatividade”, como participantes de “elites regionais” que, congregadas, se responsabilizavam pelos destinos do país.
À semelhança do famoso sorites de Nabuco de Araújo no Segundo Reinado, podia-se armar, na Velha República, esta série de proposições, das quais a seguinte explica o atributo da precedente: o presidente faz os governadores; os governadores elegem as bancadas de Câmara e Senado; esses congressistas indicam, elegem, reconhecem e proclamam o presidente.
O Código Eleitoral de 1932 pôs termo ao quadro patológico daqueles tempos. Dois anos mais tarde, a Constituição de 16 de julho criou condições para a ampliação do eleitorado, obrigando ao alistamento e ao voto dos alfabetizados maiores de 18 anos (arts. 108 e 109). Obrigou igualmente ao voto secreto e impôs o sistema da representação proporcional no pleito para a composição da Câmara dos Deputados, das assembléias legislativas estaduais e das câmaras municipais (arts. 63, d, 82 e 83). A seriedade da experiência resguardou e valorizou a participação real dos cidadãos na vida pública do Brasil e, pelas condições exigidas, forçou a existência de partidos com registro na forma da lei civil e mediante comunicação ao Superior Tribunal e aos tribunais das regiões onde viriam a atuar (art. 99, parágrafo único).
A Constituição de 18 de setembro coroou o sistema com alvissareira e exclusiva instituição dos partidos nacionais, que competiriam, como tais, na União, nos estados e nos municípios, sob esta única restrição: “É vedada a organização, o registro e o funcionamento de qualquer partido político ou associação cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.”
Discriminação de competência do Estado federal e dos estados-membros
A Carta de 1824 proveu em título distinto (VI) à administração e economia das províncias, e introduziu no título IV (Do Poder Legislativo) o capítulo V (Dos conselhos gerais de província e suas atribuições), cujos primeiros artigos (71 e 72) consignam afirmações fundamentais: 1) “A Constituição reconhece e garante o direito de intervir todo cidadão nos negócios de sua província e que são imediatamente relativos a seus interesses peculiares”, e 2) “Este direito será exercitado pelas câmaras dos distritos e pelos conselhos, que com o título de Conselho Geral da Província se devem estabelecer em cada província, onde não estiver colocada a capital do Império”.
Todavia, às afirmações não correspondiam os atos, dado o preceito que submetia as resoluções do Conselho à Assembléia Geral do Império, que as consideraria “como projetos de leis”, aprovando-os ou não, em discussão única numa e noutra câmaras. Para corrigir o descompasso, sobreveio, dez anos depois, o Ato Adicional que, entre outras normas, criou as assembléias legislativas provinciais em substituição aos conselhos gerais. A Lei de Interpretação cerceou de algum modo a autonomia conferida àqueles órgãos. Mas argutamente pondera Osvaldo Trigueiro em Direito constitucional estadual, de 1980: “Bem apreciados os fatos, parece certo que nem as assembléias fizeram um uso abusivo da autonomia conquistada nem o exercício dessa autonomia suscitou conflito institucional de que resultassem malefícios irreparáveis. É que a autonomia das províncias era muito mais teórica do que prática. Os presidentes, sucessores dos poderes secularmente exercidos pelos governadores das capitanias, eram delegados do governo central e agentes do partido no poder.”
Em contraste com o “sistema unitário”, a noção jurídica do Estado federal firmou-a C. Durand em Les États fédéraux, de 1930, através de três postulados: a) é um Estado descentralizado, isto é, no qual certas coletividades públicas inferiores possuem órgãos próprios; b) essa descentralização é estabelecida, ao menos para certas coletividades inferiores pela constituição formal do Estado e não pela lei formal ordinária; c) entre as competências assim garantidas aos órgãos próprios de certas coletividades públicas inferiores figuram competências exclusivas, isto é, excludentes da competência concorrente facultativa e do controle de oportunidade de qualquer órgão estatal não-constituinte.
A essas características atenderam com acerto nossas constituições republicanas. A de 1891 reconheceu que cada estado se regeria pela Constituição e pelas leis que adotassem, “respeitados os princípios constitucionais da União” (art. 63). E a todos facultou celebrarem entre si ajustes e convenções sem caráter político (art. 65, 1º) e, em geral, exercerem todo e qualquer poder ou direito que não lhes fosse negado por “cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição” (art. 65, 2º). Essa reserva ou quintão residual tinha por origem a emenda X do estatuto norte-americano: “Os poderes não delegados pela Constituição aos Estados Unidos nem proibidos por ela aos estados ficam reservados aos estados, respectivamente, ou ao povo.” Na mesma chave (competência legiferante) incluiu-se também, entre nós, a concessão aos estados de organizarem os seus municípios, desde que ficasse assegurada a autonomia deles em tudo quanto respeitassem ao seu peculiar interesse (art. 68).
Entretanto, no que toca ao município, as normas de 1934 e de 1946 superaram as normas correspectivas dos diplomas antecedentes. Sobre o de 1891, as primeiras tiveram o mérito de estabelecer determinados princípios a que se subordinava a organização daquelas coletividades. Deram corpo ao conteúdo (genérico e ainda vago ou discutível) do “peculiar interesse”, consubstancial à “autonomia”, exemplificando (art. 13) com a eletividade dos prefeitos e vereadores, embora pudessem aqueles ser eleitos por estes (alínea I), com “a decretação dos seus impostos e taxas, arrecadação e aplicação das suas rendas” (alínea II) e com “a organização dos serviços de sua competência”. Mantendo esse critério, a Constituição de 1946 complementou-o com a ampliação dos seus recursos financeiros. Acentuou Osvaldo Trigueiro: “No campo financeiro, além dos impostos tradicionais de licença predial, territorial urbano e de diversões, atribuiu-lhes a totalidade do imposto de indústrias e profissões. Contemplou-os com uma participação variável no imposto de combustíveis líquidos e outra de dez por cento sobre o imposto de renda, a ser distribuído por todos os municípios em partes iguais.”
Mal se fundara a República, a discriminação das rendas alçou-se a punctum saliens da ordem federativa. “Foi certamente esse o assunto mais amplamente debatido na Constituinte de 1890-91”, atestou Agenor de Roure em A Constituinte republicana, de 1920.
Na Assembléia Geral de 1933 invocamos um princípio realçado na moderna ciência econômica e assim resumido por Van Der Borght: “A utilização simultânea de diversas classes de impostos não deve dar lugar a um agrupamento arbitrário, mas sim a uma organização bem meditada e sistemática aquelas formas tributárias, que, segundo as lições da história, são adequadas por seu caráter mutuamente complementar para efetuar a distribuição mais equitativa dos encargos tributários, segundo a aptidão das distintas fontes de impostos.” Disciplina teórica racional só haveria (como propusemos em 19 de dezembro de 1933 e insistimos em 24 de março de 1934), fundando a discriminação de competências entre a União, os estados e os municípios — não arbitrariamente na partilha de impostos já classificados, mas “nas fontes mesmas dos tributos, isto é, atividade e bens patrimoniais, subdividindo-se este em móveis e imóveis”. Não prosperou a emenda; mas o anteprojeto tivera, de certa maneira, a intuição da gravidade do problema, ao pretender que o Conselho Supremo elaborasse, de cinco em cinco anos, um projeto de lei para “harmonizar os interesses econômicos e tributários federais e estaduais, coordenando-os e evitando, de qualquer modo, mesmo sob denominações diversas, a dupla tributação”.
O critério empírico vingou nas três assembléias (inclusive a de 1946), sobrepondo-se à tendência doutrinária razões práticas. Eduardo Espínola, em A nova Constituição do Brasil, de 1946, admitiu “que não é possível estabelecer um critério rigoroso baseado na incidência direta ou indireta da tributação”, conforme assentara Rui Barbosa, referindo-se “ao conceito do economista Flora para criticar-lhe a exatidão”.
Atribuições dos poderes e dos respectivos órgãos em cada ordem estatal
A República rendeu-se ao “axioma” (como o apelidou Summer Maine) que Montesquieu tomara a Locke e que Kant assemelhava ao mistério da Santíssima Trindade (três pessoas divinas e uma só divindade; três órgãos soberanos e uma e indivisível soberania). Assim o declarou no estatuto de 1891 em obséquio ao paradigma escolhido — a concepção norte-americana que Sampaio Dória condensaria nestas proposições em Os direitos do homem, de 1942: “Primeira, e condição das outras, a democracia, e jamais formas autoritárias. Segunda, a representação política, em vez do governo direto, apesar da prática regional de alguns institutos da democracia direta. Terceira, a separação dos poderes, cada um independente em sua esfera e harmônicos todos na cooperação dos mesmos fins, em vez da hierarquização a um deles. Quarta, a limitação constitucional da competência dos poderes pelos direitos individuais. Quinta, a instituição judiciária das garantias dos direitos individuais, contra abusos de poder. E sexta, a irrevogabilidade por lei ordinária das leis constitucionais, sobre as providências acima, em lugar da soberania popular, a que o povo se tivesse alienado, após cada eleição.”
Aplicadas à risca tais providências, o “estado de direito” teria se consolidado triunfalmente no largo período da Primeira República (1889-1930). Contudo, o que se nos deparou foi a superposição de hábitos deformantes e persistentes à letra e ao espírito de leis generosas. Não há o menor exagero em repetir que vivemos aqueles decênios sob ostentosa e jamais cumprida “ficção constitucional”. Por via de conseqüência se deterioraram as próprias instituições, como se elas — sempre vulneradas ou esquecidas — fossem responsáveis pelos erros e artifícios que lentamente minaram o arcabouço do regime. Sinal do descrédito que contaminara o sistema, sentimo-lo fortemente nas vacilações, nas desconfianças e até nas contradições do corpo deliberante.
Em 1934 a composição, na Constituinte, de cada bancada estadual foi, em geral, heterogênea, pois a opção pelo sufrágio proporcional facilitou a representação de diferentes partidos regionais, inclusive os de menor peso eleitoral. A quase totalidade deles gravitava em torno do Governo Provisório, conquanto desavindos entre si nas respectivas circunscrições. Aquele governo, declarando inelegíveis os adversários da véspera, contava previamente com decisivo apoio para os atos estritamente políticos, como viria a ser a eleição do presidente da República. Em seu prol se mobilizaram também as “bancadas profissionais” (empregados, empregadores, liberais, funcionários públicos), recrutadas em quase tudo por agências administrativas ou por entidades dependentes delas. Porém, em face de temas jurídicos ou técnicos que afloravam, um a um, no debate de cada capítulo do projeto de Constituição (ao qual parecia indiferente o enigmático Vargas), armaram-se a todo pretexto árduas e especiosas controvérsias que só seriam solucionadas pela aprovação ou rejeição das emendas de plenário. À medida que iam progredindo os trabalhos, começavam a se definir as posições e se defrontariam, sem conotações partidárias, duas correntes, ambas numerosas: uma conservadora, na conjunção das bancadas majoritárias de São Paulo, Minas, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e a outra, reformadora e criativa, na aglutinação dos estados de menor influência e das minorias existentes nos grandes estados, bem como parcialidades da “representação classista”.
A primeira corrente inclinava-se à cautelosa revisão do texto de 1891, conservando o quanto possível a estrutura herdada dos convencionais de Filadélfia. A segunda tendia para uma reforma profunda, justificada de uma parte por decepções provindas da desoladora contradição entre os compromissos enfáticos do regime e sua impune desfiguração e, de outra parte, pela crítica de sociólogos e analistas e males crônicos do nosso país e por esperanças nascidas da experiência contemporânea de outros povos, ao reordenarem no pós-guerra os seus códigos políticos. A contribuição nativa trazia, em primeiro plano, idéias e cogitações de um pensador pouco lido — Alberto Torres — cuja obra principal, O problema nacional brasileiro, editado em 1914, despertou a admiração quase sectária da mocidade militar que, vencida nas insurreições de 1922 a 1924, concorrera ativamente para a vitória do movimento de 1930 e passara a se interessar, no Clube 3 de Outubro, por novos temas ou pela correção de excessos, arbitrariedades e artimanhas tão reprovados pela opinião comum quanto enraizados na área dos negócios públicos.
A visão de Torres era tão dilatada como realista: no Brasil o grande problema é o da economia total de uma sociedade cujas bases, instáveis e desorganizadas, não oferecem segurança nem ao próprio futuro nem à própria existência. A seu ver, já reconhecidas as garantias e liberdades individuais, urgia a disciplina e organização social, imprescindível à substância política. No referente ao mecanismo de governo, o antigo magistrado justificava a presença de um Poder Coordenador, segundo tinha esboçado no seu projeto (arts. 57 a 67): “É instituição nova no direito público; não é, porém, um invento de imaginação, como tantas outras. Se se lhe perscrutar a natureza íntima, chegar-se-á à conclusão de que é o órgão necessariamente integrante, nos países de nossa índole, do regime presidencial federativo. Como a estruturaria? Em um conjunto de órgãos centralizadores: o Conselho Nacional; um procurador da União em cada província; um delegado federal em cada município; um representante e um preposto da União em cada distrito e quarteirão, respectivamente.”
A complexidade de tal esquema avultava na composição e na escolha dos membros do Conselho, eleitos por um colégio especializado ou em representação de um instituto do estudo dos problemas nacionais. Sua adoção parecia impraticável. Mas impraticável não seria a transposição à nova Lei Maior de um conselho federal, cúpula da “coordenação dos poderes”, e em cuja competência se alinhariam várias matérias mencionadas no projeto do sociólogo.
O radicalismo da “corrente conservadora”, intérprete oficial do situacionismo, perdurou até a última e definitiva votação do substitutivo da Comissão dos 26 — oportunidade de se considerarem as emendas de plenário por via de “destaques” regimentais. Eis senão quando ocorreu um fato de difícil previsão: a emenda que federalizava leis de processo, removendo-as da órbita dos estados, e assim unificava o direito adjetivo, como unificado estava o direito substantivo, foi, com surpresa geral, aprovada irrecorrivelmente. Suspenderam-se incontinenti os trabalhos da casa — prenúncio de que outras disposições, defendidas pelo grupo então vitorioso, viriam a ter igual destino. Os líderes dos grandes estados resolveram entre si convidar os condutores da falange reformadora para reuniões sucessivas na manhã dos dias próximos, a fim de encontrar — através de expedientes regimentais — posições comuns ao reapreciarem as fórmulas em contenda. Àquele diálogo e àquele reexame se deveu o texto consensual que se promulgaria.
Dos contatos sucessivos (na sala da antiga Comissão de Justiça) resultaram, no tocante a este item: 1) a “unicameralidade” do Legislativo, exercido pela Câmara dos Deputados com a colaboração do Conselho Federal, denominação que foi substituída, ao apagar das luzes, pela do Senado, em conseqüência de mera emenda de “redação”, e 2) a incumbência do Senado (antes Conselho Federal) de promover a coordenação dos poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura das leis (em casos restritos) e praticar os demais atos de sua competência (Const. de 1934, cap. V, arts. 88 a 94). Da corrente vencida no recente choque partiu a idéia defendida por Clemente Mariani — de indicar, “como órgãos de cooperação nas atividades governamentais”, o Ministério Público, o Tribunal de Contas e os conselhos técnicos (estes, sim, de iniciativa da corrente vencedora, com arrimo em doutrinas em voga, como a de Jouvenel).
O que sobrava do traçado originário não dispôs, para ser cumprido, de tempo devido e ansiada experiência, pois a 10 de novembro de 1937 se proclamava o Estado Novo, rótulo fantasioso de um “governo de fato”. Contra esse governo — personalíssimo — reagiu a nação em 1945, e a Constituição de 1946 marcou para a história a recuperação da liberdade, e a pronta restituição dos órgãos democráticos. Daí o aproveitamento de pautas tradicionais, como fora a da “bicameralidade”.
Responsabilidade dos altos mandatários
Pela Carta de 1824, o imperador — a quem se delegara “privativamente” o Poder Moderador — investiu-se em posição única e sobranceira às demais, na qualidade de “chefe da nação e seu primeiro representante” (art. 93). Sua pessoa tornou-se “inviolável e sagrada”: não estava “sujeito a responsabilidade alguma” (art. 92), embora fosse “chefe do Poder Executivo” e o exercitasse “pelos seus ministros de Estado” (art. 102). Se, “por causa física ou moral, evidentemente reconhecida pela pluralidade de cada uma das câmaras da Assembléia”, ficasse impossibilitado “para governo”, substituí-lo-ia, como regente, o príncipe imperial, desde que tivesse 18 anos (art. 126). Quer este, quer, durante a menoridade dele, a Regência, um ou outra prestava o juramento prescrito no art. 103, acrescentando cláusula de fidelidade e compromisso “de lhe entregar o governo”, tão logo cessasse o seu impedimento (art. 127). De outra parte se lhe vedava sair do Império sem o consentimento da Assembléia Geral; se o fizesse, entender-se-ia que “abdicou à coroa” (art. 104).
Quanto aos ministros — estes, sim, e não o seu chefe — eram responsáveis (art. 133): “I, por traição; II, por peita, suborno ou concussão; III, por abuso de poder; IV, pela falta de observância da lei; V, pelo que obrasse contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos; VI, por qualquer dissipação dos bens públicos.” A natureza dos delitos e o processo a seguir especificar-se-iam em “lei particular”. Entretanto, a ordem do imperador — “vocal ou por escrito” — dada ao ministro não o salvava da responsabilidade (art. 135).
Segundo era de esperar, a Constituinte de 1890 seguiu, neste ponto como em tantos outros, o protótipo norte-americano, derivado por seu turno de precedentes ingleses: o impeachment, instituto político e penal decorrente do poder genérico do Parlamento para estatuir, por meio de lei, sobre a vida e a honra dos cidadãos, como fora o Bill of attainder ou of pains and penalties. A par dessa faculdade, a Câmara dos Lordes se erigira em alta corte política para os acusados da Câmara dos Comuns. Sendo de natureza política semelhantes infrações, havia que evitar no transplante da fórmula — assim explicou Hamilton — a eiva de suspeição entre os juízes; pior seria conferir a um governo a função judicante ou delegá-la aos “representantes do povo”, aos quais caberia a função de acusar. Nem convinha transferir o encargo à Corte Suprema, de cujos titulares era duvidoso esperar sempre autoridade e crédito para verem adotadas pelo povo decisões acaso contrárias à acusação apresentada por seus representantes diretos. Para tal missão, os convencionais preferiram o Senado, que só por maioria de 213 poderia pronunciar condenação (“penhor de segurança que a Constituição oferecia à inocência”).
Lá como aqui se firmava a regra de que, no juízo político, não se deviam concentrar em um só corpo eletivo a acusação e o julgamento. Tal foi a gênese dos artigos 29, 33, 52, 53 e 54 do estatuto de 1891.
Ora, os constituintes de 1934 tinham razões de sobra para desconfiar da imparcialidade dos senadores. Guardavam na memória a melancólica imagem (inalterável na Primeira República) da submissão voluntária do Senado ao Executivo, já que no primeiro atuava compacta maioria de incondicionais correligionários do segundo, os quais, na desvirtuação do regime, lhe deviam (e não ao eleitorado, em pleitos autênticos) a própria investidura.
Por estes motivos, a Constituição de 1934 distinguiu sete fases do impeachment: 1) oferecimento da denúncia ao presidente da Corte Suprema (art. 58, §2º); 2) convocação, por aquele, de uma junta especial de investigação, composta de um ministro da referida Corte, de um membro do Senado e de um representante da Câmara dos Deputados, eleitos simultaneamente pelas referidas corporações (art. 58, §2º); 3) diligências da junta (assegurada a defesa) sobre os fatos argüidos; elaboração de um relatório e seu encaminhamento à Câmara, com os respectivos documentos (art. 58, §3º); 4) exame da matéria pela Câmara, dentro de 30 dias após o parecer da comissão competente e formalização final da acusação, se fosse o caso; e envio das peças ao presidente da Corte Suprema (art. 58, §4º); 5) afastamento do dignitário, se decretada a acusação (art. 58, §6º), e 6) processo de julgamento por um Tribunal Especial, de que seria presidente o da Corte Suprema e que se comporia de nove juízes: três ministros da mesma Corte, três membros do Senado e três membros da Câmara (art. 58, §1º), todos escolhidos por sorteio dentro de cinco dias úteis depois de decretada a acusação (art. 58, §1º). Tanto o presidente quanto os seus ministros ficavam sujeitos, nos crimes comuns, à jurisdição da Corte Suprema (Const., art. 76, 1, a), como também os demais mencionados nas letras b e c do citado inciso.
Foi distinta daquela a ótica dos constituintes de 1946. Não tinham eles por que temer os ultrajantes efeitos da mistificação do “regime representativo”. O Código Eleitoral de 1932 e o desempenho dos juízes na apuração dos pleitos, em substituição do discricionário Poder Verificador, sanearam (apesar de resíduos removíveis) a base onde repousavam as instituições democráticas. Ouvia-se afinal a voz das urnas, e os mandatários do povo estavam mais defendidos de coações ou represálias do governo em cada uma de suas esferas. Em todas elas operavam “partidos nacionais”, veículos saudáveis de uma “opinião pública” mais esclarecida. As diferentes administrações — federal, estaduais e municipais — identificavam-se por legendas e siglas partidárias. Em um quadro dessa ordem se afigurava improvável o retorno à “política dos governadores” em aliança, às vezes constrangedora, com o Executivo da União, e do qual resultava aparente solidariedade de passivas bancadas da Câmara Alta. Podia, portanto, reverter ao Senado o papel superior que lhe tocava, se estivesse em causa a responsabilidade política de elevados mandatários da nação. As cláusulas constitucionais correspectivas voltaram, redimidas, ao lugar que lhes cabia em nossa ordenação, como na dos demais países de regime presidencial.
Eis aí a origem e os fins dos artigos 62, 88, 89, 92, 93, 101, com os parágrafos e alíneas correspondentes.
Direitos e garantias individuais
Como a identificar os “fins do Estado” com a felicidade dos seus súditos, a Carta Imperial de 1824 proclamou retoricamente “a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade” (art. 179). E encadeou, no título VIII, postulados que as constituições republicanas acolheriam, quanto às franquias do “ser físico” e do “ser moral”. É de notar que arrolou ainda garantias econômicas e funcionais (art. 179, incisos XXVIII a XXXIII).
O estatuto de 1891 começou por ampliar a área da proteção jurídica, igualando para esses fins os nacionais e os estrangeiros residentes (art. 72, caput). O elenco de direitos fundamentais reproduziu de perto o conteúdo de declarações similares nos países mais desenvolvidos. E na menção das “garantias” incluiu, como instituto constitucional, superior aos da legislação ordinária, o habeas-corpus e preceitos processuais que acautelaram a eficácia de princípios básicos (por exemplo, arts. 72, §§ 13 a 16; arts. 19 a 27 e 31; arts. 73 a 77). Teve por fecho esta afirmação: “A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna.”
Levou-se a mérito da Assembléia Nacional de 1933 a inclusão de “direitos sociais e econômicos”, a exemplo do que sucedera com as constituições européias do primeiro “após-guerra”. O mote a seguir era o da “racionalização do poder” — tendência de “submeter ao direito todo o conjunto da vida coletiva”, na expressão de um especialista em direito comparado, Mirkine-Guetzévitch, em Les constitutions de l’Europe nouvelle, de 1930. A preeminência da técnica jurídica, encareceu-a Masaryk: “A democracia se apóia nas ciências.” O mesmo autor, primeiro presidente da República tchecoslovaca, aduzia em Os problemas da democracia: “A democracia não é, em nossa época, a bem dizer, o governo popular, mas a administração popular — a administração é sua verdadeira tarefa. Não é o domínio, mas a organização da vida em comum, tal é o fim da democracia moderna.”
Nem por isso os constituintes se descuraram no reforço de “garantias” eficientes. Ao “princípio da legalidade” (art. 113, inc. 2) acrescentaram o da “estabilidade jurídica” (cit. art., inc. 3), transposto da introdução ao Código Civil: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” A qualquer cidadão não só se concedeu “representar aos poderes públicos, denunciar abusos das autoridades e promover-lhes a responsabilidade” (cit. art., inc. 10), mas também “pleitear a declaração da nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos estados ou dos municípios”. E associou-se ao habeas-corpus um instituto de igual categoria — “o mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade” (cit. art., inc. 33). Outros direitos individuais (gerando contraprestação por parte do Estado) emergem de diferentes agregados sociais. Assim, no pertinente à família (art. 144), à educação (art. 119), ao trabalho (arts. 115, 121 e 122) e ao acesso de cargos públicos (art. 168).
A Constituição de 1946 (cap. II do título IV) conservou, na substância, a lista daqueles “direitos” e “garantias”, com apuro formal e com felizes acréscimos no seu teor, como por exemplo o do artigo 141, §34 (anualidade dos tributos). Tendo mantido a “estrangeiros residentes” condição assemelhada à dos brasileiros, nos termos do pacto de 1891, mais se distinguiu, no artigo 142, com franquear aos alienígenas de qualquer procedência entrarem no território nacional e nele permanecerem, ou dele saírem, respeitados os preceitos da lei.
Todas essas normas precederam de dois anos a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Quando da Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou (com a solidariedade do Brasil) o redentor documento, nada tínhamos de corrigir ou acrescentar às disposições constitucionais. Por isso mesmo, não teríamos embaraços em aceitar a tese de que a memorável declaração se aplica automaticamente ao direito interno das potências que a sufragaram em 10 de dezembro de 1948. Para a sua eficácia, temos por dispensável o formalismo de uma “convenção”, da qual decorresse, por via compromissória, a executoriedade das regras já assentadas. A “convenção” só ganharia préstimo se previstas e ditadas as medidas de execução direta e de atuação imediata.
Disciplina da ordem econômica e social
Para os redatores da Carta de 1824, a economia do país se firmaria (art. 179, XXII) em dois pilares: a “propriedade” e o “trabalho”. A noção de “propriedade” ainda era a “quiritária”: jus in re, verdadeiro dominium, compreendendo todos os bens suscetíveis de senhorio absoluto. De algum modo o rigor do conceito se atenuou no código napoleônico, matriz da legislação civil em várias nações no século XIX. Porém se mantiveram os fundamentos romantistas em três “sintomas indicativos”, como os nomeou L. Josserand no Cours de droit civil positif français, de 1935: “a) confere-se ao titular o máximo de prerrogativas e vantagens que possa comportar um bem de natureza determinada; b) tem caráter de exclusividade; c) sua oponibilidade a terceiros é tão completa como possível.”
Aquele direito (“condição de liberdade”, como o define a doutrina cristã) se converteu, durante extenso período, em argumento jurídico para legitimação do cativeiro. Ainda em 1875, Teixeira de Freitas informava, na CLT das Leis Civis, ao anotar lei de 20 de junho de 1774: “Na classe dos bens móveis entram os semoventes, e na classe dos semoventes estiro os escravos. Posto que os escravos, como artigos de propriedade, devam ser considerados coisas, não se equiparam em tudo aos outros semoventes, e muito menos a objetos inanimados, e por isso têm legislação peculiar.”
Em conseqüência, o “direito ao trabalho” (cit. Carta, art. 179, incisos XXIV e XXV) favorece exclusivamente “pessoas livres”, cidadãos brasileiros (art. 69) na plenitude de suas regalias.
Outro seria o surto de nossa economia no Segundo Reinado, se a Assembléia Geral houvesse aprovado os projetos, em tudo promissores, do visconde de Taunay, com vistas à imigração estrangeira que anteciparia, em fase oportuna, os frutos colhidos pela República nas primeiras décadas.
Os constituintes de 1890 eram, por formação, individualistas, senão fisiocratas. Sua concepção da “propriedade” (art. 72, caput e §17) estava assim definida: “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo da indústria.” A propriedade intelectual ficava também protegida (cit. art., §§25, 26, 27). Em relação ao “trabalho”, a garantia se corporificava no “livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial” (cit. art., §21). Um compromisso, em termos gerais, se contraiu, com endereço aos legisladores: “Incumbe outrossim ao Congresso... animar no país o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura, a indústria e o comércio, sem privilégios que tolham a ação dos governos locais” (art. 35, inc. 2º).
Diversíssima se mostrou a Assembléia Nacional de 1933. No que tocava à “propriedade”, o respectivo conceito se condicionou ao “bem comum” (Const., art. 113, inc. 17): “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público exige, ressalvado o direito à indenização ulterior.” Da “propriedade intelectual” cogitaram os §§18, 19 e 20 do mesmo artigo. E, no particular das minas, se dispôs (art. 118) que elas e as demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d’água, constituem propriedade distinta do subsolo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial. Os consectários da tese sucedem-se àquele enunciado (cit. art., §§1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º). A sábia decisão de 1934, emanada de norma do mais alto nível, tornou ineficaz o critério esposado pelo Código Civil de 1916 (art. 61, II) e por leis anteriores. Entendia-se, na tradição jurídica, conforme Clóvis Bevilacqua no Código Civil comentado, que o dono do imóvel estendia seu direito à superfície, “inclusive o espaço aéreo correspondente, e ao subsolo, em prolongamento vertical da porção do solo correspondente à superfície”. O simples ato de assim destacar da propriedade privada as riquezas minerais do subsolo poupou ao Brasil o infortúnio sofrido por outras nações no curso de sangrentas revoluções, como a do México em 1917.
Do ângulo do “trabalho”, cuidou-se do reconhecimento (em conformidade com a lei) dos sindicatos e associações profissionais, aqueles com a garantia da “pluralidade” e “completa autonomia” (art. 120, parágrafo único). Cogitou-se do amparo à produção e das condições do trabalho na cidade e nos campos, “tendo em vista a prestação social do trabalhador e os interesses econômicos do país” (art. 121). Traçaram-se diretrizes à “legislação do trabalho manual e do intelectual ou técnico” (§2º), provendo-se, do mesmo passo, providências para os serviços de amparo à maternidade e à infância, no lar e no trabalho (§3º), bem como a “regulamentação especial do trabalho agrícola” (§4º) e, em cooperação com os estados, à de colônias agrícolas, para onde seriam encaminhados os indivíduos de zonas empobrecidas que o desejassem e os “sem trabalho” (§5º). Instituiu-se, por último, a Justiça do Trabalho, com representação paritária, nas juntas e nos tribunais, de empregadores e empregados (art. 122, parágrafo único). Mas a Constituição vive apenas um triênio. Finou-se antes de serem cumpridas as esperançosas perspectivas que descerrara à ordenação econômica.
O tema, retomou-o a Constituinte de 1946. Haviam amadurecido frutos da vagarosa sementeira, quer ante a floração de novas constituições européias, quer em razão do próprio sentimento continental. A Conferência Interamericana sobre problemas da guerra e da paz — reunida em Chapultepec no mês de fevereiro de 1945 — elaborara três importantes resoluções: a Carta econômica das Américas, a de Questões sociais e a Declaração de princípios sociais da América, a última a ensejar, no Comitê Jurídico, o estudo de uma carta interamericana de garantias sociais.
A Constituição de 1946, sensível ao espírito do tempo, selecionou e apurou a matéria versada nos pactos antecedentes. Aceitou e estendeu o conceito da “propriedade” (como “direito individual”) do diploma de 1934, mas condicionou o seu uso ao “bem-estar social” (art. 147) e criou outro caso de desapropriação (art. 141, §16), a determinada por “interesse social”. Subordinou a organização da ordem econômica aos “princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano” (art. 145). Admitiu e conteve, no artigo 146 (lapidarmente redigido por Mílton Campos), que a União, mediante lei especial, interviesse no domínio econômico e monopolizasse determinada indústria ou atividade; porém, deixou patente que a intervenção teria por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados na mesma Constituição. Realçou esta asseveração: “A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social” (art. 145, parágrafo único). Integrou no Poder Judiciário os “juízes e tribunais de trabalho” (art. 94, V; arts. 122 e 123). Especificou as regras substanciais da legislação trabalhista (art. 157, com 17 incisos); reconheceu o direito de greve (art. 158), e declarou livre “a associação profissional ou sindical, sendo regulados por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público” (art. 159).
A superioridade desse texto aos que lhe haviam antecedido confirmou-a um especialista insuspeito, o professor A. F. Cesarino Júnior, em alentado ensaio, inserto em Las clausulas económico-sociales en las constituciones de América, editada em Buenos Aires (1947) pela Academia de Ciências Econômicas: “Compraz-me concluir que a nova Carta Magna do Brasil é um documento à altura da etapa atual do direito público constitucional. Com efeito — ainda que se ressinta de certa falta de unidade doutrinária, característica que se encontra facilmente nas constituições elaboradas, devida à heterogeneidade própria às assembléias constituintes, máxime em época crítica como a que atravessamos —, a Constituição de 18 de setembro de 1946, ao conseguir evitar, ao mesmo tempo, a Cila do totalitarismo da esquerda e a Caribde do totalitarismo da direita, organizou um regime aproximadamente social democrático, que permitirá ao grande país latino-americano evoluir até os altos destinos que o aguardam.”
Complementação, por “leis orgânicas”, de princípios ou mandamentos constitucionais.
Ao léxico vulgar tomaram os nossos juristas, como João Barbalho e Rui Barbosa, a definição de “leis orgânicas”, expressa por Domingos Vieira no Grande dicionário português: “Leis que têm por objeto regular o modo e a ação das instituições ou estabelecimentos, cujo princípio foi conseguido por uma lei precedente” (verbi gratia, a Lei Maior).
A elas não fez menção a Carta de 1824, porém as subentendeu nos incisos VIII e IX do artigo 16: “Fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las. Velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral da nação.” Comentando o artigo 34, inciso 34, do texto de 1891 — “Compete privativamente ao Congresso Nacional (...) decretar as leis orgânicas para execução completa da Constituição” —, Carlos Maximiliano o reputou “quase desnecessário, tanto que não tem similar no estatuto norte-americano”. Lembrou que tais leis estavam incluídas na faculdade de que tratava o inciso 33 do mesmo artigo: “Decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício dos poderes que pertencem à União.” Contudo, argumentou ad cautelam: “A lei não diminui de valor por excesso de clareza; pois que a obscuridade é o seu escolho — das dúvidas vivem os escrivães.”
Maior zelo por essas leis (ficto ou sincero?) foi o da Constituinte de 1933. Pretendeu-se a conversão da Assembléia Nacional no Poder Legislativo ordinário, tão logo findasse a missão precípua. O empenho político, então manifestado, tinha por mira manter, sem riscos, a maioria governamental no Congresso. Repelida a idéia, restringiu-se a prorrogação da Constituinte por poucos meses (Disposições transitórias, art. 2º), a pretexto de urgir a feitura de “leis complementares” e outras “reclamadas pelo interesse público”.
As “leis orgânicas” voltariam à pauta em fins de 1945 e início de 1946, no curto período da presidência Linhares. O então ministro da Justiça, professor Sampaio Dória, divulgou um anteprojeto de Constituição e desse esboço consta mais adequado tratamento às leis orgânicas. O artigo 50 dispunha o seguinte: “A elaboração das leis orgânicas obedece, no que couber, ao processo legislativo indicado no artigo anterior com os seguintes acréscimos: 1) Considera-se proposta uma lei orgânica quando, apresentado o projeto por uma sexta parte, pelo menos, dos membros de qualquer das câmaras do Congresso Nacional, foi considerado objeto de votos numa e noutra Câmara; 2) Dar-se-á por aprovado o projeto, se na legislatura seguinte obtiver a mesma votação nas duas Câmaras. Parágrafo único. São orgânicas as leis que consagram princípios de estabilidade social, para cuja legislação convenha pronunciar-se, nas urnas, a vontade atual da nação.”
A fórmula oferecida tinha o real mérito de incluir as “leis orgânicas” em grau superior ao das “leis ordinárias” na escada hierárquica das normas: 1) Constituição Federal; 2) leis orgânicas da União; 3) leis ordinárias da União; 4) constituições dos estados; 5) leis orgânicas estaduais, e 6) leis ordinárias estaduais.
Mas a Assembléia de 1946 não teve como agregar o proposto ao conteúdo do pacto, porque, no capítulo da revisão constitucional, tanto a facilitara que lhe faltavam meios de discriminar corretamente o quorum exigido em uma e outra hipóteses que não se confundem: a emenda à Constituição e a decretação de “lei orgânica”.
Presumida estabilidade do texto originário, processo de sua emenda ou revisão, salvo reserva explícita
Um dado comum nos pactos sociais é a presunção de sua estabilidade, maior ou menor, conforme o tipo de cada constituição: “rígida” ou “flexível”. As “flexíveis” não se arreceiam da ação, às vezes versátil, das assembléias legislativas, aptas — em qualquer ocasião e com acatamento de certos requisitos — a alterar as normas constitucionais. Dessas mesmas normas se mostram sempre ciosos os aplicadores e intérpretes das constituições “rígidas”, temendo mudanças que sacrifiquem os mais prezados valores da própria fase histórica, fortalecidos na conjunção de determinados preceitos, harmônicos entre si, como partes irremovíveis de um todo logicamente ordenado. Justifica-se ainda a cautelosa insistência com a observação, abonada por Duguit em seu Traité de droit constitutionnel, de 1923, de que o sistema das “leis constitucionais rígidas” vem a completar o das “declarações dos direitos”. “Estes”, prossegue o publicista, “formulam os princípios gerais do direito, que se impõem ao próprio Estado, qualquer que seja o dos seus órgãos intervenientes. Conforme os princípios por elas formulados, leis feitas em determinada forma organizam o Estado, de maneira que os indivíduos tenham segurança, isto é, que eles disponham de todas as garantias possíveis de que o legislador ordinário não excederá os poderes que lhe cabem.”
Nesta última faixa repousa a tradição brasileira. O meio propício ao resguardo de tão lídimos interesses é o do processo conducente à reforma. Dele não prescindiu a Carta de 1824. Impôs à Assembléia Geral, mal principiassem suas sessões, examinar se a instituição política do Estado tinha sido exatamente observada, para prover como fosse justo (art. 173). Se, ao termo de quatro anos depois de jurada a Constituição, se conhecesse que algum dos seus artigos merecia reforma, far-se-ia proposição por escrito, a qual devia ter origem na Câmara dos Deputados e ser apoiada pela terça parte deles (art. 174). A tramitação compreenderia: 1) três leituras (com intervalos de seis dias, de uma à outra) das proposições (art. 175); 2) deliberação da Câmara dos Deputados sobre ser admitida à discussão, “seguindo-se tudo o mais que é preciso para a formação de uma lei” (cit. artigo); 3) na hipótese afirmativa, “vencida a necessidade de reforma do artigo constitucional”, expedição de lei (a ser sancionada e promulgada pelo imperador) que ordenasse aos eleitores dos deputados para a segunda legislatura conferirem, nas procurações, “especial faculdade para a pretendida alteração ou reforma” (art. 176); 4) discussão da matéria na primeira sessão da segunda legislatura e prevalência do que se tiver vencido “para mudança ou adição à lei fundamental” (art. 177), e 5) solene proclamação da proposta, “junta à Constituição” (cit. art. 177).
É de notar que dita Carta fez uma distinção de prática valia (art. 178): “É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadões. Tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias” — mitigação do rigor costumeiro das “constituições rígidas” e tema, a quando e quando, de debates no parlamento imperial.
Outro foi o roteiro ideado pela Constituinte de 1890. A iniciativa da reforma delegou-se ao Congresso Nacional ou às assembléias dos estados (art. 90). Condições assemelhadas se impuseram numa e noutra hipótese. A proposta, se provinda do Congresso, dependia, na apresentação, de quarta parte de qualquer das câmaras e, para “consideração”, precisava, em três discussões, de 2/3 de votos, numa e noutra câmara; se oriunda dos estados, requeria o concurso de 2/3 deles, no decurso de um ano, “representado cada estado pela maioria de votos de suas assembléias” (§1º). A aprovação, todavia, só se dava por concluída, se no ano seguinte alcançasse, em três discussões de cada câmara, a maioria de “dois terços dos votos” (§2º). Seguia-se a publicação (§3º) e, em todo o rito, permanecia uma vedação imperiosa: “Não poderão ser admitidos como objeto de deliberação, no Congresso, projetos tendentes a abolir a forma republicana federativa, ou a igualdade dos estados no Senado” (§4º).
Por imprevisível singularidade, os constituintes de 1934 voltaram as vistas, em tão delicado tópico, para a diversificação, feita em 1824, entre prescrições “constitucionais”, invulneráveis em sua essência, e demais dispositivos, de função ordinatória ou formal. A dicotomia (art. 178) traduziu-se em dois grupos de normas: a) as referentes à estrutura do Estado (arts. 1º a 14, 17 a 21), à organização ou à competência dos poderes da soberania (capítulos II, III e IV do título I, o título II, o título III; e os arts. 175, 177, 181 e este mesmo art. 178), e b) as restantes do mesmo texto. Daí, dois métodos de reforma: para as do primeiro grupo, a “revisão”; para as do segundo, a “emenda”.
A “revisão” se processava nesta escala: 1) proposta apresentada na Câmara ou no Senado e apoiada, no mínimo, por 215 dos seus membros, ou submetida a qualquer daqueles órgãos por 2/3 das assembléias legislativas, em virtude de deliberação da maioria absoluta de cada uma delas (cit. art., §2º); 2) elaboração de anteprojeto, se a Câmara e o Senado tivessem aceito a “revisão” por maioria de votos (idem); 3) submissão do anteprojeto (na legislatura seguinte) a três discussões e votações em duas sessões legislativas, numa e noutra casa (ibidem); 4) promulgação pelas mesas da Câmara e Senado — para ser “incorporada” à Constituição (cit. art., §3º).
O rito da “emenda” seria o seguinte: 1) formulação da proposta de modo preciso, com indicação dos dispositivos a emendar por iniciativa: a) de uma quarta parte, no mínimo, dos membros da Câmara ou do Senado; b) de mais de metade dos estados no decurso de dois anos, “manifestando-se cada uma das unidades federativas pela maioria da Assembléia respectiva” (art. 178, §1º); 2) aprovação da emenda aceita em duas discussões pela maioria absoluta da Câmara e do Senado em dois anos consecutivos, ou na mesma sessão legislativa se a emenda obtivesse o voto de 2/3 dos membros componentes de um daqueles órgãos — caso no qual se submeteria ao outro, se reunido, ou, em caso contrário, na primeira legislatura, em igual maioria (idem); 3) promulgação pelas mesas de uma e outra casas — para ser “anexada, com o respectivo número de ordem, ao texto constitucional” (cit. art., §3º).
Duas proibições se impuseram a uma e outra modalidades: 1) proceder à reforma na vigência do “estado de sítio” (art. 178, §4º), e 2) serem admitidos, como objeto de deliberação, projetos tendentes a abolir a forma republicana federativa (cit art., §5º).
Semelhante rigidez serviu de pretexto a políticos mais preocupados com o poder do que com a democracia ao criticarem acerbamente a Constituição, que lhes impediria a iniciativa de reformas incompatíveis, aliás, com os pressupostos doutrinários do sistema adotado. Em verdade, a censura embuçava outro propósito — a subversão do regime, tão pretendida pela “direita” quanto pela “esquerda”. Afinal, o Executivo fez tábula rasa das formalidades indeclináveis do pacto de 1934; e logrou, após a insurreição comunista de 1935, ver triunfante, com a cumplicidade da maioria governamental, a “emenda” que inovava o “estado de guerra” nas comoções intestinas.
A agressão ao diploma de 16 de julho abateu-o mortalmente no instante em que se feriu o §3º do artigo 178, que proibia reforma (“revisão” ou “emenda”) durante o “estado de sítio”, e se descumpriram as exigentes condições do mesmo artigo quanto ao processamento de “revisão” (pois era caso dela, e não de “emenda”, com trâmites mais dúcteis e expeditos).
Esse pernicioso exemplo veio à nossa memória em 1946, quando repontavam de novo, no meio político, censuras análogas às que sofrera a Assembléia Nacional de 1933. Sucedeu que parte da maioria receava o liberalismo da minoria, reiterando o anterior slogan da impraticabilidade do estatuto já aprovado nos pontos cardeais. Para aquietarem tais apreensões, entraram em acordo as duas correntes, sufragando a fórmula, mais plástica, sugerida por Otávio Mangabeira e, por fim, adotada na redação do artigo 217, parágrafos 2º e 3º: “Dar-se-á por aceita a emenda que for aprovada em duas discussões pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas. Se a emenda obtiver numa das câmaras, em duas discussões, o voto de dois terços dos seus membros, será logo submetida à outra; e, sendo nesta aprovada pelo mesmo trâmite e por igual maioria, dar-se-á por aceita.”
Forçando recíprocas concessões das correntes desavindas, as contingências do momento aproximaram a nossa Lei Magna das “constituições flexíveis”.
Primado das regras constitucionais e “juízo de legitimidade”
A defesa da Constituição incumbe aos três poderes políticos. Outro tanto se impõe aos cidadãos, quando reivindicam no Judiciário a reparação de direitos violados. Por isso mesmo, a autoridade máxima reside em cortes supremas, nos países onde reina a ordem jurídica.
Na evolução operada, foi pioneira a Convenção de Filadélfia em 1787. Para normalidade e eficiência do Estado federal, fazia-se imprescindível a primazia de suas leis sobre as dos estados-membros, tudo no diferenciado círculo de suas competências. E tão exata se afigurou a arquitetura do sistema que em várias regiões o regime “unitário” aceitou e absorveu a técnica, desenvolvida em duas centúrias, da República norte-americana.
Convém lembrar a comparação, feita pelo juiz Hare e citada por Bryce em The American Commonwealth, entre aquela nação e a Inglaterra: “A legislatura inglesa é livre de tomar o caminho que julgar preferente para assegurar o bem-estar da nação. A questão é esta: ‘Acha-se, ou não, esse ato em harmonia com os princípios e se adapta às circunstâncias?’ São os pontos fundamentais, e se o espírito do público se dá por satisfeito neste assunto, já não há mais controvérsia. Ao contrário, nos Estados Unidos a questão primordial é a do ‘poder’ e, nas discussões sutis e requintadas que intervêm, perde-se de vista, freqüentes vezes, o direito ou ele é tratado como se fosse sinônimo de força. Chegou-se a crer que a Constituição aprovou o que ela tolera e que as medidas legais não podem ser contrárias à moral.”
De tal começo e do alargamento de sua interferência no domínio econômico o “governo dos juízes”, como E. Lambert salientou em obra daquele título, cedeu mais tarde a uma inclinação visível — a de “considerar os textos legislativos com mais liberdade do que se atribuía no passado”. E Tocqueville acentuava em De la démocratie en Amérique: “Contraído em seus limites, o poder outorgado aos tribunais americanos de se pronunciarem sobre a inconstitucionalidade das leis forma ainda uma das mais poderosas barreiras que se têm levantado contra a tirania das assembléias políticas.” Mais proximamente, a reconstrução da corte por Franklin D. Roosevelt pôs termo ao período de 1922 a 1936 e os “juízes do New Deal” — conforme os crismou Roger Pinto em La crise de l’État aux États Unis, de 1951 — levaram a cabo certas mudanças, tais como a atenuação do “controle constitucional”, o esmaecimento do due process of law, a salvaguarda da hierarquia e a aceitação de um “regime administrativo”. Entretanto, nada diminuiu o crédito e a influência de notáveis magistrados da fase expansionista — os Holmes, os Brandeis, os Cardoso, os Hughes, cuja estatura, a muitos títulos, não seria sobrepujada pela de seus sucessores.
Entre nós, a Constituição de 1891 tomara por parâmetro e estímulo a teoria então vigente nos Estados Unidos. Foi a esse padrão, por exemplo, que obedeceu o artigo 60, conferindo aos juízes e tribunais “as causas em que alguma das partes fundar a ação ou a defesa em disposição da Constituição Federal” (alínea a). No dizer de Pedro Lessa, este preceito tem o melhor e mais conciso dos seus fundamentos no trecho do Federalista, em que Hamilton, depois de notar que “deve haver sempre um meio constitucional de assegurar a execução das disposições constitucionais” e que nenhuma eficácia teriam as restrições impostas à autoridade das legislaturas dos estados se não houvesse no aparelho constitucional uma força adequada a lhes garantir a observância, raciocina do seguinte modo: “Muitas coisas são proibidas aos estados, pelo plano da Convenção, já para o fim de se resguardarem os interesses da União, já para se respeitarem.”
No tocante ao citado artigo 60, Pedro Lessa realçou esta clara distinção entre as duas hipóteses, bem como a dos efeitos de cada uma delas: 1) “Uma ação proposta com fundamento na Constituição é, pois, uma ação baseada direta ou imediata e exclusivamente em um preceito constitucional, e tem por fim evitar a aplicação de uma lei federal ou local, por ser contrária à Constituição, ou anular atos ou decisões do governo nacional, dos estados ou dos municípios, que igualmente contravêm aos preceitos constitucionais; 2) Uma ação cuja defesa é apoiada na Constituição é uma ação em que o réu se defende, invocando direta ou imediata e exclusivamente um artigo constitucional, para o mesmo fim de evitar a aplicação de uma lei, federal ou estadual, ou de anular atos de algum dos três governos mencionados, em conseqüência do vício da inconstitucionalidade.”
A Constituição de 1934 rastearia tais noções (art. 81, b) e, induzindo o legislador a criar um ou mais tribunais federais de recurso (intermédios entre a primeira instância e a Corte Suprema), previu desde logo esta providência (art. 78, parágrafo único): “Caberá recurso para a Corte Suprema sempre que tenha sido controvertida matéria constitucional e, ainda, nos casos de denegação do habeas-corpus.”
A Constituição de 1946, ao confirmar a extinção de uma categoria — a dos juízes federais de primeira instância —, seguiu também os precedentes, conservando no Supremo Tribunal Federal (onde só se alterou a denominação) as atribuições que lhe pertenciam desde 1891 (art. 101, I, h e i), o “recurso ordinário” (cit. art. 101, II, a) de writs constitucionais (habeas-corpus e “mandado de segurança” contra altos dignitários) e o “recurso extraordinário” nos casos também definidos em cláusulas anteriores para aferir de inconstitucionalidades argüidas (cit. art. 1.001, III, a a d).
Tão lógica e vital se revelou a experiência norte-americana que, em nosso tempo, constituições européias, promulgadas após a Segunda Guerra Mundial, instituíram cortes específicas com atributos e finalidades em tudo semelhantes — órgãos superiores do “controle constitucional” e de “alta justiça política”. Em relação a elas, Georges Burdeau enalteceu o juízo de legitimidade, “noção política que, no plano jurídico, significa a confiança dos governados na apropriação, pelo poder existente, de um fim derradeiro —, a regra (jurídica)”. E, em seu Traité de science politique, de 1949, aditou esta breve sentença: “Não haveria como cuidar de legitimidade fora de uma identificação entre a regra de direito e seu futuro — o poder.”
Para concluir, não se aparentam entre si os períodos de vigência das quatro constituições. Seu tempo de vida se apura assim:
1ª Carta Imperial (1824-1889) — 65 anos;
1ª Constituição Republicana (1891-1930) — 39 anos;
2ª Constituição Republicana (1934-1937) — três anos;
3ª Constituição Republicana (1946-1967) — 21 anos.
Cumpre explicar que a última delas contou 18 anos de execução plena e três anos de execução parcial, em razão da concorrência de “atos revolucionários”. Salientamos ainda que não consideramos a Carta de 1937 por não ter sido legitimada, quer por sua origem, quer pelo processo que adotara para tal efeito: o referendo popular, ao qual se obrigara e que jamais foi realizado.
Indicados, como foram, os textos em correspondência com os fatores sociais que os determinaram, habilita-se o leitor a um juízo próprio sobre a evolução ocorrida, em seus dois aspectos: o do desenvolvimento político-social e o da maior ou menor técnica na seleção dos princípios e da formulação das normas.
Não é de esquecer, em nenhuma análise, por menos que seja, o “momento histórico” no qual se exprimiu, com esperança de permanência, e pensamento predominante em cada um dos pactos, receptáculo e propulsor de soluções maturadas na consciência coletiva, sem prejuízo das regras pretéritas e de mais vitalidade, e com a natural pretensão de estabelecer condições e incentivos para as realizações vindouras.
Das quatro constituições comparadas, as três primeiras resultaram de movimentos profundos que caracterizaram regimes — o monárquico (1822), o republicano (1889) e o regime marcado pela reforma socioliberal sob o lema “representação e justiça” (1930). A restante — ou seja, a de 1946 — foi produto da reação nacional à usurpação de 1937. Os reformuladores do texto fundamental pareciam imprimir na própria obra a imagem mítica de Janus — uma face para o passado, outra para o futuro.
José Eduardo Prado Kelly
colaboração especial
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