ALIANÇA DEMOCRÁTICA

ALIANÇA DEMOCRÁTICA

 

Coalizão formada em 1984, no final do regime militar, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), oposicionista, e pela Frente Liberal, dissidência do Partido Democrático Social (PDS), governista, para apoiar, na eleição presidencial a ser realizada pelo Colégio Eleitoral em janeiro de 1985, a chapa composta por Tancredo Neves, líder oposicionista moderado, candidato a presidente, e José Sarney, ex-presidente do PDS, candidato a vice. A aliança entre o PMDB e o já então Partido da Frente Liberal (PFL) apoiou de início o governo do presidente José Sarney (1985-1990), mas se desfez gradativamente até chegar ao fim durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988).

 

Antecedentes

No início dos anos 1980, o Brasil atravessava grave crise econômica e social. Esgotara-se o modelo estatal de desenvolvimento, assolado pela crise da dívida externa e pela escalada da inflação. A industrialização e a urbanização, aceleradas pelo milagre econômico do período mais crítico da ditadura (de 1969 a 1973), haviam tornado a sociedade brasileira mais complexa, porém desigual e injusta. O crescimento da oposição ao regime, e a incapacidade deste para lidar com as disputas políticas internas, fizeram com que os artífices da distensão recorressem a sucessivos casuísmos institucionais para controlar a liberalização política.

A formação da Aliança Democrática, e seu papel na transição democrática, vieram expressar essa dinâmica política. Dois movimentos foram característicos. Externamente ao regime, a crescente contestação, alimentada pela crise social e econômica, culminou na mobilização popular por eleições diretas para a presidência da República. Internamente, as bases de sustentação do regime estavam enfraquecidas pela disputa em torno da indicação do candidato do partido governista (PDS) ao Colégio Eleitoral que escolheria o presidente.

A campanha das Diretas Já foi o desaguadouro de um processo crescente de mobilização popular, cujos antecedentes foram o sindicalismo urbano, os movimentos de trabalhadores rurais, as organizações comunitárias, de profissionais e das classes médias, e campanhas sobre temas específicos como as feitas contra a tortura, pela “anistia, ampla geral e irrestrita”, contra a carestia e pela convocação de uma assembléia nacional constituinte. A tais ações, vindas de “fora” do aparato político, somaram-se mudanças na correlação das forças que competiam na arena política representativa.

Em 1982, as eleições para o Congresso e para os governos estaduais resultaram no fortalecimento da oposição, com a vitória em estados importantes, e a obtenção da maioria na Câmara dos Deputados — foram eleitos 240 deputados do PMDB, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido dos Trabalhadores (PT) contra 235 do PDS. Todavia, manobras arquitetadas para a montagem do Colégio Eleitoral — 1/3 de senadores biônicos e presença de seis representantes indicados pelas bancadas estaduais — asseguravam ao PDS a maioria (356 a 330) naquele comitê.

A partir de emenda constitucional apresentada pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), iniciou-se campanha popular para pressionar a Câmara dos Deputados a aprovar a eleição direta para a presidência. Às vésperas da votação na Câmara, a campanha ganhou força, com a realização de gigantescos comícios, comandados pelos líderes dos partidos de oposição. Mesmo pressionada pelo regime, que recorreu a medidas de exceção, a emenda Dante de Oliveira obteve 298 votos na Câmara, ficando a apenas 22 do quórum necessário (2/3) para a sua aprovação. Tal montante de votos incentivou o PMDB a lançar a candidatura de Tancredo Neves, governador de Minas Gerais, para a disputa no Colégio Eleitoral. Tancredo, de perfil centrista e habilidoso negociador, abria perspectivas para composições à esquerda e à direita.

Para capitalizar a mobilização decorrente das Diretas Já, Tancredo acenava para a esquerda com políticas sociais, reformas na economia e democratização do sistema político. Tais propostas encontrariam guarida no compromisso de convocação de um processo constituinte, para substituir a Carta vigente. À direita, em especial para os setores militares, Tancredo oferecia garantias de que não haveria “revanchismo” nem julgamento do regime, com o que esperava afastar tentações golpistas. Faltava-lhe, porém, o principal recurso de que dispunha o regime para confirmar sua maioria de votos: cargos e verbas públicas. A oportunidade para reverter tal quadro surgiu com a divisão dos situacionistas em torno do processo sucessório.

Majoritário no Colégio Eleitoral, o PDS acreditava que o futuro presidente surgiria pela escolha do candidato do partido na convenção nacional, em agosto de 1984. Entre várias candidaturas, três logo se destacaram: a de Mário Andreazza, ministro do Interior; a de Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo, e a de Aureliano Chaves, vice-presidente da República. Andreazza, que detinha amplos recursos do governo federal, era apoiado pela maioria dos governadores do PDS. Maluf, como já fizera em São Paulo, corria por fora, atuando diretamente junto aos convencionais. Sem recursos, e contando com a antipatia do presidente Figueiredo, Aureliano renunciou à sua candidatura, acusando adversários de corromper o processo. Maluf, ao tratar diretamente com os convencionais, incompatibilizou-se com os governadores do partido. Liderada por Aureliano Chaves e por Marco Maciel, senador de Pernambuco, formou-se uma dissidência, intitulada Frente Liberal. As negociações com o PMDB intensificaram-se.

No dia 7 de agosto de 1984, PMDB e Frente Liberal tornaram públicos os termos da Aliança Democrática, formalizando a chapa com Tancredo Neves e José Sarney. Este, embora indicado pela Frente Liberal, filiou-se ao PMDB para evitar que o PDS inviabilizasse sua candidatura na Justiça Eleitoral. Na convenção nacional do PDS, Paulo Maluf derrotou Andreazza, credenciando-se como candidato de um partido cada vez mais dividido.

 

“Compromisso com a nação” e Nova República

A Aliança Democrática, no lançamento da chapa que concorreria ao Colégio Eleitoral, divulgou uma carta intitulada “Compromisso com a nação”, na qual apresentava os princípios e objetivos que perseguiria quando assumisse o governo. Eram arrolados como compromissos fundamentais diversos itens, que incluíam a democratização das instituições políticas; o combate à inflação, ao desemprego e ao problema da dívida externa; a reforma agrária, e mudanças nas áreas tributária, da previdência social, da habitação, da política externa, da educação e cultura e do meio ambiente. Era também manifestado o propósito geral de superar a injustiça social e as desigualdades regionais. A carta-compromisso, que previa a elaboração futura de um programa de governo pela Aliança Democrática, foi assinada por Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Aureliano Chaves e Marco Maciel.

O documento definia a Aliança Democrática como um pacto político que “propugna a conciliação entre a sociedade e o Estado”, “sem ressentimentos, com os olhos voltados para o futuro”. Todavia, tal espírito conciliatório e a apresentação de compromissos gerais não eram suficientes para fechar a aliança. Tancredo Neves, ao mesmo tempo que acenava à esquerda com compromissos sociais, encontrava-se discretamente com elites civis ligadas ao regime e a lideranças militares.

A luta com Maluf pelos votos no Colégio Eleitoral também acontecia em termos objetivos: promessas de cargos e verbas no futuro governo. O primeiro passo, ocorrido antes da formalização da Aliança Democrática, foi dado em Minas Gerais. Os liderados por Tancredo e por Aureliano selaram o “Acordo de Minas”, pelo qual os últimos passaram a ter participação no governo estadual, comandado por Hélio Garcia, substituto de Tancredo. A mesma lógica política propiciaria a esmagadora vitória de Tancredo. Quanto mais cresciam as adesões à sua candidatura, maior a defecção nas bases pedessistas. Maluf, abandonado pelo governo federal e combatido pelos governadores do PDS, já não podia agir com eficácia no varejo político. Em 15 de janeiro de 1985, a Aliança Democrática atingiu seu momento máximo, vencendo a eleição no Colégio Eleitoral: entre os presentes, foram 480 votos para Tancredo, 180 para Maluf e 17 abstenções.

Vitorioso no Colégio Eleitoral, Tancredo não pôde porém tomar posse na presidência. Acometido por grave doença, foi operado na véspera do dia 15 de março, vindo a falecer, após longo período de sofrimento que sensibilizou o país, em 21 de abril. O vice-presidente José Sarney assumiu o governo apoiado pelo já constituído Partido da Frente Liberal (PFL) e pelo PMDB, comandando um hipertrofiado ministério escolhido por Tancredo, expressivo da dificuldade para conciliar as ambições dos que apoiaram a Aliança Democrática. Disputas de poder entre o PFL e o PMDB, e entre as lideranças deste e Sarney, marcariam o governo que Tancredo denominara Nova República.

No primeiro ano do governo Sarney, o PMDB fortaleceu sua posição. Com a substituição no Ministério da Fazenda de Francisco Dornelles, sobrinho de Tancredo ligado ao PFL, por Dílson Funaro, o PMDB dominou a área econômica.

Nas eleições de 1985, realizadas nas capitais estaduais e em municípios antes considerados área de segurança nacional, os conflitos aumentaram. Em meio à não resolvida crise social e econômica, PMDB e PFL não conseguiram efetivar a Aliança Democrática na arena eleitoral. Abalos resultantes do processo eleitoral de 1985 e a reforma ministerial promovida no início de 1986 refletiram-se sobre a Aliança. No final de fevereiro, os líderes do governo no Senado, Fernando Henrique Cardoso, e do PMDB na Câmara, Pimenta da Veiga, afirmaram que a Aliança Democrática tinha acabado. Dias depois, a decretação do Plano Cruzado, com a subseqüente popularidade do presidente, acomodou as diferenças, que voltariam a crescer com a proximidade das eleições de 1986. Beneficiado pelo Cruzado, obra dos ministros da área econômica, o PMDB elegeu 22 dos 23 governadores e fez ampla maioria na Constituinte.

 

Assembléia Nacional Constituinte e fim da Aliança Democrática

A vitória peemedebista, seguida pelo fracasso do Plano Cruzado II, fez crescer as disputas entre os parceiros da Aliança Democrática. No início da Constituinte, um impasse opôs os líderes do PMDB ao presidente. Sarney, refém da maioria obtida pelo PMDB, acusava os líderes do partido na Constituinte de inviabilizar seu governo. O PFL, aproximando-se de peemedebistas insatisfeitos, do PDS e do PTB, passou a pressionar o governo para romper a Aliança Democrática e articular uma nova coalizão.

Sem poder descartar o partido majoritário, o governo procurou dividi-lo, isolando os setores à esquerda próximos do líder na Constituinte, Mário Covas. O crescimento do movimento parlamentarista e em favor da definição do mandato de Sarney em quatro anos contribuiu para decretar o fim da Aliança Democrática. Em agosto de 1987, desavenças entre PMDB e PFL no Nordeste causaram a substituição do ministro do Interior, Joaquim Francisco (PFL-PE), que foi compensada por Sarney pela demissão do superintendente da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), ligado ao PMDB. A nomeação do vice-governador de Pernambuco, Carlos Wilson, do PMDB, para a Sudene provocou reação imediata do PFL. No final de setembro, enquanto o ministro da Educação, Jorge Bornhausen, pedia demissão, o senador Marco Maciel anunciava que a Aliança Democrática estava definitivamente rompida. A decisão dos pefelistas, embora sacramentasse o fim da Aliança, era uma forma de pressionar o governo Sarney a recompor sua base de sustentação. Na Constituinte, articulava-se um grande bloco — o Centrão —, o qual, embora não sobrevivesse até o final do processo, mostrou que o governo poderia descartar parte do PMDB e compor uma nova base. No final do seu governo, o presidente Sarney, embora filiado ao PMDB, era apoiado por um conjunto de forças de centro e direita, cujas principais lideranças estavam no PFL, PDS e PTB.

A Aliança Democrática, formada com o ambicioso projeto de fundar uma Nova República, durou pouco mais de três anos. A vitória no Colégio Eleitoral foi seu único feito. A aliança que derrotara o autoritarismo valendo-se das regras sucessórias que ele próprio criara não resistiu às disputas por poder entre seus integrantes. Não obstante, parte desses agentes políticos voltaria a se compor, tempos depois, em outros governos.

André Magalhães colaboração especial

 

FONTES: CÂM. DEP. Processo; Correio Brasiliense (2 a 12/87, 2 a 9/88); Diário Assemb. Nac. Constituinte (1987-88); Estado de S. Paulo (2 a 12/87, 2 a 9/88); Folha de S. Paulo (2 a 12/87, 2 a 9/88); Jornal da Constituinte (coleç. compl.); Globo (2 a 12/87, 2 a 9/88).