ACORDO NUCLEAR BRASIL-ALEMANHA
Em 27 de junho de 1975, o Brasil e a
República Federal da Alemanha, por intermédio dos seus ministros das Relações
Exteriores, assinaram em Bonn o Acordo sobre Cooperação no Campo dos Usos
Pacíficos da Energia Nuclear. Aprovado pelo Congresso Nacional, entrou em vigor
em 18 de novembro do mesmo ano. Foi chamado de o “acordo do século” não apenas
pela magnitude da transação, aproximadamente dez bilhões de dólares em preços
de 1975, mas, sobretudo, pela novidade da natureza daquela cooperação, já que
tratou-se da primeira cooperação nuclear entre um país industrializado e um do
Terceiro Mundo, incluindo a transferência de equipamentos e de tecnologia para
todas as fases do ciclo de produção de energia nuclear.
O acordo previu a construção, até 1985, de
dois reatores de energia, pressurizados a água, de 1.300 megawatts de potência,
com a opção de mais seis até 1990. Ademais, estabelecia a formação de várias joint ventures para as seguintes atividades:
prospecção, mineração e processamento de minério de urânio, com o compromisso
de o Brasil fornecer à Alemanha até 20% desse minério; engenharia nuclear e
fabricação de equipamentos pesados para reatores nucleares; serviços de
enriquecimento de urânio — o acordo contemplava o desenvolvimento técnico e
comercial conjunto do processo de enriquecimento pelo método do jato
centrífugo, uma técnica ainda em estágio experimental na Alemanha, com a
previsão para a construção de uma planta de demonstração; fabricação de
combustíveis nucleares; e reprocessamento químico dos combustíveis utilizados,
a ser desenvolvido em planta piloto.
Dois outros instrumentos, delineando as
bases da cooperação, seguiram-se à assinatura do Acordo Nuclear: o Acordo para
a Aplicação de Salvaguardas entre o Brasil, a República Federal da Alemanha e a
Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), concluído em Viena em 26 de
fevereiro de 1976; e um protocolo industrial, firmado entre os ministros das
Minas e Energia do Brasil e da Pesquisa e Tecnologia da Alemanha, estabelecendo
diretrizes específicas para cada área de cooperação, além de uma série de
contratos entre a Nuclebrás e diferentes empresas alemãs, nos quais se previa a
formação de joint venturese
a transferência de tecnologia e de equipamentos para a realização dos diversos
empreendimentos em cada uma das áreas de cooperação.
As razões apresentadas pelo governo
brasileiro para realizar o acordo diziam respeito às necessidades energéticas
do país, presentes e futuras. Essa preocupação foi motivada, no curto prazo,
pela crise do petróleo de 1973 e, mais especificamente, pelo cancelamento
unilateral, pelos Estados Unidos, do fornecimento de urânio enriquecido para
uso no reator Angra-I, fruto de contrato com a empresa Westinghouse, assinado
em 1972, para a construção do primeiro reator nuclear no Brasil. No longo
prazo, as autoridades preparavam-se para um eventual aumento da demanda
energética, tendo em vista o crescimento esperado da população e da produção
industrial. Além do objetivo de garantir a demanda presente e futura de
energia, praticamente todas as interpretações do acordo convergem em apontar
outras motivações, que não as propriamente relacionadas a essas necessidades.
Uma delas, de natureza político-estratégica, era assegurar autonomia e capacitação
tecnológica, garantindo a projeção internacional do país, o que concretizaria,
em parte, a aspiração de tornar o Brasil uma “grande potência”, objetivo
perseguido no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) para 1975-1979. A outra teria conteúdo eminentemente
estratégico-militar, relacionado aos graus de liberdade que o domínio
tecnológico do ciclo nuclear daria à política nuclear, em particular,
conferindo ao país a opção de empregar essa tecnologia para fins de segurança
nacional.
Da perspectiva da Alemanha, as razões foram
primordialmente econômicas e de política externa. Por um lado, a prioridade
concedida às exportações nucleares, incentivando a expansão da indústria
nuclear alemã, diante de um crescimento moderado da demanda por reatores nucleares
no país e da crescente oposição interna ao uso da energia nuclear em solo
alemão. Por outro, a indústria nuclear doméstica era considerada peça
fundamental na transformação do país em uma economia dinâmica, orientada para
as exportações.
Ainda que se tratasse de um acordo para a
produção de energia — caracterizado como uma cooperação para o uso pacífico de
energia nuclear, sendo permitida, portanto, pelo Tratado de Não-Proliferação de
Armas Nucleares, do qual a Alemanha era parte contratante, mas não o Brasil —,
o evento foi criticado por praticamente todos os países nucleares, com exceção
da República Popular da China, e acabou por gerar uma crise política com os
Estados Unidos durante o governo Carter. Para que se entenda, porém, as
dimensões da oposição norte-americana, bem como a própria cooperação
Brasil-Alemanha, cabe mencionar dois elementos contextuais: as características
do regime de não-proliferação nuclear e da indústria nuclear internacional.
Desde o início desse regime em 1946, com a apresentação da proposta
norte-americana do Plano Baruch às Nações Unidas, as principais iniciativas de
definição dos sucessivos controles na área nuclear partiram dos Estados Unidos.
A explosão de um artefato nuclear pela Índia em 1974 gerou restrições adicionais
à cooperação nesse campo, justificando a formação do Grupo dos Fornecedores
Nucleares ou “Clube de Londres”, em 1975, que reuniu os principais fornecedores
de material nuclear para estabelecer restrições mais amplas ao comércio
nuclear.
A posição de liderança dos Estados Unidos
como o principal maker do regime foi, inicialmente,
assegurada pelo predomínio da indústria nuclear norte-americana nos mercados
internacionais. Com a difusão da tecnologia nuclear no pós-guerra, porém, os
Estados Unidos foram perdendo gradativamente essa posição de primazia. Por
outro lado, a demanda na área nuclear aumentou bastante após a crise do
petróleo de 1973, em especial entre os países do Terceiro Mundo. Dessa forma,
no início da década de 1970 ocorreu uma forte competição entre os exportadores
de material físsil e de equipamentos por posições nesses mercados emergentes.
Ainda que o campo nuclear permanecesse sendo, basicamente, um mercado de
vendedores, o Brasil e outros compradores potenciais conseguiram ampliar suas
vantagens e margens de escolha nas transações nucleares. A inclusão no acordo
da transferência de tecnologia de reprocessamento de urânio, uma das principais
razões para a oposição do governo norte-americano, refletiu a estratégia da
indústria nuclear alemã para tornar ainda mais atrativa para o Brasil a
transação comercial como um todo.
As diferenças de comportamento entre os
governos Ford e Carter, com relação ao Acordo Brasil-Alemanha, refletem
distintas estratégias para fazer frente à perda da primazia prévia na área
nuclear. A principal iniciativa do governo Ford foi a organização do Grupo dos
Fornecedores Nucleares, privilegiando um tratamento multilateral para o
problema do enfraquecimento do regime de não-proliferação. No plano bilateral,
os Estados Unidos obtiveram a concordância do governo alemão para tornar ainda
mais restritos os controles de salvaguarda na transferência de tecnologias de
reprocessamento e enriquecimento. Na verdade, as salvaguardas do Acordo Nuclear
eram ainda mais restritivas que as do sistema do TNP. Com relação ao Brasil, a
administração Ford, dando continuidade à doutrina Nixon-Kissinger de estreitar
vínculos com os “centros de poder emergentes”, assinou em 21 de fevereiro de
1976 o Memorando de
entendimento relativo a consultas em matéria de interesses mútuos — firmado pelo chanceler Azeredo da
Silveira e o secretário de Estado Henry Kissinger —, estabelecendo um mecanismo
de consultas regulares entre os dois países em questões bilaterais e globais.
Quando da assinatura do acordo, a reação
mais forte partiu do Congresso norte-americano, responsável pela introdução de
controles legislativos mais rígidos nas exportações nucleares norte-americanas
e, desde 1974, o principal formulador da agenda de não-proliferação no país.
Somente na administração Carter, que incluiu a não-proliferação nuclear como
uma das principais plataformas de sua campanha presidencial, as pressões
norte-americanas se fizeram sentir diretamente sobre os governos brasileiro e
alemão. Elas se voltaram para a supressão das partes do acordo relativas à
transferência de tecnologia de enriquecimento do urânio e de reprocessamento do
combustível utilizado. Logo após a posse de Carter, no início de 1977, em duas
sucessivas rodadas de negociação, em Bonn e Washington, a administração
norte-americana tentou convencer o governo alemão a suprimir do acordo os itens
concernentes à venda das tecnologias sensíveis (enriquecimento e
reprocessamento). Em seguida, em 1º de março, veio ao Brasil o subsecretário de
Estado, Warren Christopher, com o mesmo objetivo. Nem a Alemanha nem o Brasil
cederam às pressões bilaterais para modificar o acordo e o governo Carter
acabou aceitando-o como um fato consumado. No plano doméstico norte-americano,
esse governo introduziu uma das legislações mais restritivas na área nuclear
desde a década de 1950: o Ato de Não-Proliferação Nuclear de 1978.
Entretanto, as diferenças entre o Brasil e
os Estados Unidos não se resolveram naquele momento. Em 11 de março de 1977, em
nota enviada pelo chanceler Azeredo da Silveira ao embaixador norte-americano
em Brasília, John Hugh Crimmins, o governo brasileiro denunciava o Acordo de
Assistência Militar firmado com os Estados Unidos em 1952. Tal cancelamento foi
motivado pela rejeição brasileira às alterações na legislação do programa de
assistência militar, que passava a condicionar qualquer ajuda neste campo à
apresentação prévia ao Congresso norte-americano de um relatório referente à
situação interna de cada país a ser beneficiado, em particular sobre casos de desrespeito
aos direitos humanos. O governo brasileiro considerou esse procedimento uma
violação do princípio de não-intervenção, recusando-se a aceitar qualquer ajuda
militar que dependesse do cumprimento dessas novas exigências. As controvérsias
sobre o Acordo Nuclear e os direitos humanos provocaram a mais séria crise
diplomática nas relações Brasil-Estados Unidos desde o início do regime militar
em 1964.
No Brasil, as críticas ao acordo não foram
imediatas, apenas os físicos reagiram desde o início, uma vez que a comunidade
científica foi excluída do processo decisório que levou à cooperação com a
Alemanha. Foram eles os primeiros a denunciar as deficiências técnicas do
acordo, seja com relação à viabilidade de garantir o domínio das tecnologias
sensíveis, seja como instrumento de capacitação em pesquisa e desenvolvimento
na área nuclear. O encaminhamento dado a essa questão espelhou a natureza
militar do regime político, tendo sido excluídas da decisão não apenas a
comunidade científica, mas também a classe política. Participaram do processo
decisório apenas representantes das burocracias civil e militar.
A partir de 1978, contudo, avolumaram-se as
críticas ao acordo e o debate tornou-se público. Denúncias de irregularidades
na execução do programa, na imprensa alemã, levaram à convocação pelo Congresso
Nacional de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre o Acordo Nuclear,
cujo relatório final contém elementos importantes não apenas para a aferição
das vulnerabilidades negociadoras do Brasilvis-à-vis os interesses das empresas alemãs, mas
também das deficiências técnicas e econômicas do acordo. Em fins de 1978, um
amplo consenso se formara, reunindo cientistas, intelectuais, empresários,
burocratas e a Igreja Católica, em prol de uma redução das dimensões da
cooperação teuto-brasileira. Essa reformulação já estava ocorrendo, de fato, em
função da grave deterioração da economia brasileira: desequilíbrio do balanço
de pagamentos, crescimento vertiginoso da dívida externa, diminuição do consumo
doméstico de energia e custos internacionais crescentes da energia nuclear. A
crise econômico-financeira da década de 1980 criou dificuldades severas para a
execução dos termos do acordo, tendo ocasionado sucessivos atrasos, e mesmo
paralisações, nos cronogramas de construção das usinas e de outras instalações
nucleares, e resultados quantitativos muito aquém das metas previamente
programadas, gerando, conseqüentemente, uma escalada de seus custos
financeiros.
Além da crise fiscal do Estado brasileiro,
que levou à revisão drástica dos objetivos e investimentos contratados para a
cooperação energética e industrial, um outro elemento decisivo para o destino
do Acordo Nuclear foi a constatação, pelos militares brasileiros, de que ele
seria insuficiente para garantir acesso às tecnologias sensíveis e, portanto, à
capacitação tecnológica na área nuclear, bem como de que as salvaguardas
previstas limitariam de fato essa autonomia no campo nuclear. Em 1979, diante
das dúvidas quanto à viabilidade técnica e econômica do acordo, foi iniciado um
programa “paralelo” e autônomo em relação ao programa nuclear com a Alemanha e
aos controles de salvaguardas da AIEA. A cargo do Ministério da Marinha e com a
colaboração do Instituto de Pesquisa em
Energia Nuclear (IPEN) e da
Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), seu objetivo inicial era o
desenvolvimento, com recursos e know-how nacionais, de tecnologia de
enriquecimento de urânio.
No início da década de 1990, o Acordo
Nuclear sofreu duas alterações em seus parâmetros básicos. A primeira, de
iniciativa alemã, foi a introdução, no licenciamento de suas exportações
nucleares, do requisito de adesão a um regime de salvaguardas abrangentes. A
outra, de comum acordo, foi a liquidação em 1993 da Nuclei, criada para
desenvolver no país uma planta piloto de enriquecimento de urânio pelo método
do jato centrífugo. A extinção dessa empresa foi conseqüência da desativação,
na Alemanha, das pesquisas sobre essa tecnologia e o anúncio pelas autoridades
brasileiras, em setembro de 1987, do domínio tecnológico do processo de
enriquecimento do urânio pelo programa “paralelo”.
Maria Regina Soares de Lima
FONTES:
ARCELA,N. Acordo; BRASIL. Programa; BRASIL. Questão
nuclear; Diário do Congresso Nacional (15/12/90);
GRANDI, J. Regime; LIMA,
M. Political; SOARES, G. Salvaguardas; WROBEL, P.Questão;
YAGER, J. Nonproliferation.