JULIÃO, Francisco
*dep. fed. PE 1963-1964.
Francisco Julião Arruda de Paula nasceu no engenho de Boa Esperança, de propriedade de seu avô, no município de Bom Jardim (PE), em 16 de fevereiro de 1915. Seus pais, Adauto Barbosa de Paula e Maria Lídia Arruda de Paula, eram integrantes de famílias tradicionais de Pernambuco.
Julião passou a infância nas propriedades da família ao lado de seus sete irmãos. Aos 13 anos de idade foi enviado para estudar em Recife, onde concluiu o curso secundário no Instituto Carneiro Leão em 1933. Diante das dificuldades financeiras enfrentadas pelos pais, cujos engenhos encontravam-se decadentes, passou a lecionar em uma escola primária da cidade de Olinda (PE). Matriculou-se em seguida na Faculdade de Direito de Recife, bacharelando-se em dezembro de 1939. Embora não tenha participado ativamente da política acadêmica, Julião foi fortemente influenciado pelo debate desenvolvido na universidade, importante centro de oposição ao Estado Novo e à interventoria de Agamenon Magalhães no estado, implantados em fins de 1937. Segundo seu depoimento ao semanário O Pasquim, quando deixou a faculdade já possuía idéias marxistas e considerava fundamental a participação dos camponeses na transformação da sociedade brasileira. Pouco depois da sua formatura, passou um dia detido no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Em 1940, montou um escritório de advocacia em Recife e iniciou suas atividades como defensor de camponeses, constatando a enorme distância que separava “a lei codificada e a que realmente se aplicava no campo”. No ano seguinte, já defendia causas camponesas em vários municípios de Pernambuco, especialmente Vitória de Santo Antão, Bom Jardim, Limoeiro e Jaboatão, situados na região norte da Zona da Mata, onde havia grande número de arrendatários e pequenos proprietários rurais. Julião afirmava que a “grande revolução em curso se limitava a tirar o camponês da porta do delegado para a porta do juiz”, e sua atuação mais freqüente dizia respeito ao combate às prestações de trabalho (o chamado cambão) e aos aumentos arbitrários do foro pago pelos trabalhadores aos donos das terras, além da defesa dos moradores ameaçados de expulsão pelos grandes proprietários. Na região sul da Zona da Mata, onde se concentravam as maiores usinas de açúcar do estado e predominavam os trabalhadores assalariados, a atuação de Julião foi bem mais restrita, limitando-se a poucos processos. Um dos mais significativos ocorreu no município de Amaraji, onde defendeu grande número de trabalhadores ameaçados de expulsão das terras onde moravam há mais de 40 anos, recém-compradas pela usina Santa Teresinha.
Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do país, Julião ingressou no Partido Republicano (PR), fundado em agosto de 1945, e concorreu, sem êxito, a uma cadeira na Assembléia Nacional Constituinte no pleito de 2 de dezembro. Nessa campanha, apoiou o candidato da União Democrática Nacional (UDN), brigadeiro Eduardo Gomes, na disputa pela presidência da República, vencida pelo general Eurico Gaspar Dutra com o apoio da coligação dos partidos Social Democrático (PSD) e Trabalhista Brasileiro (PTB).
Nessa época, além das atividades partidárias e do trabalho com os camponeses, Julião exercia a advocacia em seu escritório de Recife, especializado em questões de família, tornando-se conhecido como defensor dos direitos das mulheres. Apesar do crescimento de seu prestígio como advogado no meio rural, a eficácia de sua atuação era pequena, pois a legislação vigente não favorecia a defesa do camponês, que “acabava sempre perdendo as questões”. Diante disso, começou a amadurecer a idéia de organizar e unir os lavradores, buscando modificar sua forma de atuação, até aí restrita ao terreno da assistência jurídica. Seu primeiro passo foi escrever uma série de documentos, iniciada em 1946 com a Carta aos foreiros de Pernambuco, que teve grande circulação. Ao mesmo tempo, começou a incentivar a presença de camponeses nas audiências e julgamentos dos processos como meio de desenvolver iniciativas coletivas e formas embrionárias de organização. Graças a essa orientação, nos anos seguintes muitas demandas judiciais mobilizaram grupos de mais de cem camponeses que se dirigiam às cidades para prestar solidariedade ao companheiro diretamente ligado à questão.
Em 1947, o PR lançou Eurico de Sousa Leão para concorrer ao governo de Pernambuco, diminuindo assim as possibilidades de êxito do candidato udenista Manuel Neto Campelo, principal oponente do pessedista Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, vencedor do pleito. Considerando que seu partido havia cometido grave erro ao contribuir indiretamente para a vitória de um representante do PSD, Julião desligou-se do PR, aderindo pouco depois ao Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em 1951, Julião publicou seu primeiro livro, Cachaça, que recebeu elogioso prefácio de Gilberto Freire. O título se referia à prática de certos latifundiários de pagar seus trabalhadores com aquela bebida. Logo depois, terminou de escrever sua primeira novela, Irmão Juazeiro, publicada em 1961, que trata do conflito entre um camponês e um latifundiário no interior de Pernambuco.
A formação das ligas camponesas
A presença de Julião conferiu dinamismo à seção pernambucana do PSB. Em 1954 foi o primeiro parlamentar eleito por essa legenda no estado, ao conquistar uma cadeira na Assembléia Legislativa. No ano seguinte foi convidado a assumir a defesa jurídica dos membros da Sociedade Agrícola e Pecuária de Pernambuco (SAPP), primeira associação camponesa do estado, organizada pelos moradores do engenho Galiléia, situado no município de Vitória de Santo Antão. Galiléia era um engenho de fogo morto, isto é, não produzia mais açúcar, e seu proprietário, Oscar de Arruda Beltrão, havia dividido as terras em pequenos sítios, arrendados às 140 famílias que ali trabalhavam. Os arrendatários organizaram então a SAPP na forma de cooperativa, com a finalidade de desenvolver a produção comercial de verduras e iniciar um programa assistencial. Julião passou a visitar o engenho regularmente e tomou a sociedade como base para seu trabalho de organização dos camponeses em outras áreas. Nos anos seguintes, o tipo de associação adotada no engenho da Galiléia se multiplicou no estado de Pernambuco.
O proprietário do engenho e presidente honorário da SAPP discordou dos rumos do movimento, renunciou ao seu cargo e procurou, sem êxito, terminar com a cooperativa e expulsar os camponeses. Em 1955 Julião deu início a um processo na justiça com a finalidade de desapropriar as terras do engenho e garantir sua posse pelos moradores, deflagrando uma luta jurídica e política que só foi resolvida quatro anos depois, durante o governo de Cid Sampaio.
As associações camponesas formadas depois da SAPP ficaram conhecidas como Ligas Camponesas, expressão utilizada inicialmente pelo Diário de Pernambuco para sugerir a existência de uma ligação desse movimento com as organizações rurais de mesmo nome, criadas pelo Partido Comunista Brasileiro — então Partido Comunista do Brasil (PCB) — em 1945 e extintas em 1947, quando o PCB foi colocado na ilegalidade. Segundo Julião, a fase inicial de organização das ligas foi marcada por uma intensa repressão do governo estadual, chefiado pelo general Osvaldo Cordeiro de Farias, e pela violência utilizada por capatazes das grandes propriedades. Apesar disso, o movimento cresceu rapidamente, mobilizando lavradores de toda região norte da Zona da Mata.
Em agosto de 1955, representantes das ligas participaram do Congresso pela Salvação do Nordeste, organizado pela Prefeitura de Recife durante a gestão de Pelópidas Silveira. Os 3.600 delegados presentes, representando industriais, comerciantes, sindicatos e grupos profissionais, aprovaram uma declaração de apoio à reforma agrária e de combate às estruturas fundiárias vigentes. Durante o encontro, ocorreu também o I Congresso de Camponeses de Pernambuco, presidido por José dos Prazeres, líder da comunidade da Galiléia. Julião foi escolhido presidente de honra do conclave e organizou em seguida uma concentração de mais de três mil camponeses na Assembléia Legislativa, onde o sociólogo Josué de Castro, autor de Geografia da fome e Geopolítica da fome, fez uma palestra sobre a reforma agrária. Julião já defendia a necessidade de uma mudança radical no sistema de propriedade da terra e de produção agrícola no Nordeste, questões que sensibilizavam de maneira crescente setores da opinião pública e autoridades de diversos níveis.
Em fins de 1956, Julião foi preso em Galiléia por um oficial da polícia e levado a Recife, onde foi solto por interferência de um coronel do Exército que servia como auxiliar do governador. Em seguida, protestou de forma veemente contra sua prisão na Assembléia Legislativa, cujos membros nomearam uma comissão para investigar o caso. Na semana seguinte, Julião retornou ao engenho acompanhado de outros dois deputados, ocasião em que todos foram cercados e ameaçados por jagunços.
Julião julgava importante a presença maciça de camponeses nas cidades em certas ocasiões, para que seus problemas obtivessem maior repercussão. Depois das primeiras experiências nesse sentido ainda no interior, organizou no dia 1º de maio de 1957 a ida de seiscentos lavradores — entre eles as principais lideranças das ligas — a Recife. Em 13 de maio do ano seguinte reuniu na mesma cidade mais de três mil camponeses para comemorarem a abolição da escravatura. Nesse período, publicou a Cartilha do camponês, o ABC do camponês, a Carta de alforria do camponês e outros documentos, escritos em linguagem simples, narrando as experiências desenvolvidas pelas ligas nas diversas regiões. Ainda em 1957, foi um dos 40 deputados nordestinos que, acompanhados por industriais e comerciantes, viajaram à Europa Ocidental, Tchecoslováquia e União Soviética.
No ano seguinte, Julião foi reeleito com expressiva votação para mais um mandato na Assembléia Legislativa de Pernambuco, na legenda do PSB. Ao mesmo tempo, ocorreu uma importante mudança na situação política do estado, com a vitória de Cid Sampaio sobre Jarbas Maranhão, obtida por larga margem, na disputa pelo governo pernambucano. Foi a primeira derrota sofrida por um candidato pessedista para esse cargo desde o fim do Estado Novo. Todas as forças reformistas e de esquerda apoiaram Cid Sampaio, lançado pelas oposições reunidas, coligação da UDN, PSB, PTB e os partidos Trabalhista Nacional (PTN) e Social Progressista (PSP). Julião participou ativamente da campanha vitoriosa.
Em 1959, pouco depois da posse de Cid Sampaio, Julião venceu o processo judicial que garantiu a posse das terras do engenho da Galiléia para seus moradores, baseando-se em uma lei recém-promulgada que determinava a desapropriação da propriedade com pagamento de indenização ao antigo dono. Segundo ele, esse resultado teve um grande valor político para o movimento camponês, pois foi sua primeira conquista efetiva de largo alcance. Cid Sampaio criou em seguida o departamento de terras e colonização, ligado à Secretaria de Agricultura e encarregado de comprar terras para estabelecer cooperativas de camponeses. Ao mesmo tempo, tentou transferir para outras áreas os lavradores mais ativos da liga da Galiléia. Considerando que o movimento estava ameaçado de perder sua autonomia frente ao governo do estado, Julião rompeu sua aliança com o governador e conseguiu impedir a efetivação dessa medida.
As ligas camponesas começaram a obter repercussão nacional e a despertar o interesse da imprensa. O jornal O Estado de S. Paulo encomendou a Julião uma série de artigos sobre o tema, enquanto os jornalistas Heráclio Sales e Antônio Calado fizeram com ele entrevistas publicadas, respectivamente, pelo Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, então Distrito Federal.
O movimento ultrapassou efetivamente as fronteiras de Pernambuco a partir de 1959 com a fundação da primeira Liga Camponesa paraibana, localizada em Sapé, área de transição entre a zona de produção de açúcar e o Agreste. Organizada pelo pastor protestante João Pedro Teixeira, antigo colaborador de Julião, ela experimentou enorme crescimento entre os arrendatários e pequenos proprietários rurais da região, chegando a contar com dez mil associados dois anos depois de sua fundação. Em 1960, foram organizados comitês regionais das ligas camponesas em dez estados do país.
Julião apoiou a candidatura do marechal Henrique Teixeira Lott, lançada pela coligação PSD-PTB, para a presidência da República no pleito realizado em outubro de 1960, vencido por Jânio Quadros, apoiado pela UDN. Durante a campanha, organizou uma concentração de camponeses na capital pernambucana em apoio ao marechal, mas aceitou o convite para viajar a Cuba junto com Jânio. Essa foi a primeira de uma série de viagens que fez a esse país, tornando-se um grande admirador da revolução cubana.
Em outubro e novembro de 1960, o jornal The New York Times publicou uma série de artigos sobre as Ligas, apresentando Julião como líder do campesinato brasileiro, apontando a gravidade da situação econômica e social do Nordeste e denunciando o trabalho dos marxistas na região. Desde então, Pernambuco foi visitado por jornalistas, escritores e políticos dos Estados Unidos, cuja embaixada no Brasil, segundo Joseph Page, considerava as “forças radicais” do Nordeste como séria ameaça. Segundo Julião, o impacto causado pela revolução cubana foi utilizado pelos norte-americanos para criar uma “mitologia em torno das ligas”, que deu ao movimento “uma dimensão que ele não tinha”.
As relações de Julião com o PCB
No início de 1961, Julião encontrou no Rio de Janeiro o líder comunista Luís Carlos Prestes para discutir a possibilidade de união das forças do PCB com as ligas camponesas e a formação de um movimento unificado de âmbito nacional no meio rural. Prestes propôs a fusão das ligas com a União dos Lavra-dores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), fundada pelo PCB em 1954 e cujas bases principais de atuação estavam em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Segundo Joseph Page, Julião foi convidado para assumir a liderança do movimento unificado, mas não aceitou esse projeto, convencido de que o PCB exerceria o controle de fato sobre a nova entidade.
Ainda em 1961 Julião fez nova viagem a Cuba junto com mais de cem líderes camponeses para participar das comemorações do 1º de maio. A conjuntura nacional nesse período foi marcada pela queda na taxa de crescimento econômico obtida na segunda metade da década de 1950 e o acirramento da crise política e social. A renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto desse ano, agravou as tensões, pois os ministros militares vetaram a posse do seu substituto legal, o vice-presidente João Goulart, que estava comprometido com as propostas reformistas defendidas por partidos de esquerda e o movimento sindical. Para superar o impasse e garantir a preservação da legalidade, o Congresso adotou o regime parlamentarista, sob o qual Goulart assumiu a presidência em setembro. Com sua posse, o programa de reformas de base ganhou grande impulso.
Em novembro realizou-se em Belo Horizonte o I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, que contou com a presença de 1.600 delegados de todos os estados, representando as diferentes correntes defensoras de reformas na estrutura agrária, como o PTB, o PCB, as ligas camponesas, setores da Igreja e o movimento estudantil. O presidente João Goulart foi um dos promotores do encontro, cujos debates foram polarizados em torno de duas proposições fundamentais.
Através dos seus delegados da ULTAB, o PCB defendia um programa baseado na melhoria das condições de vida dos trabalhadores agrícolas, enquanto as ligas, representadas por cerca de seiscentos delegados e tendo Julião como seu principal porta-voz, advogavam uma reforma agrária radical. Essa bandeira teve grande repercussão entre os participantes do congresso, mas foi duramente criticada pelos membros do PCB, que assim se afastaram ainda mais de Julião e de outros líderes das ligas. A declaração final do encontro englobava os dois níveis de reivindicações, defendendo a “radical transformação da estrutura agrária do país” e a “aplicação da parte da legislação trabalhista já existente que se estende aos trabalhadores agrícolas”, além da “elaboração de um estatuto que vise uma legislação adequada aos trabalhadores rurais”.
No início de 1962, Julião aceitou uma oferta de Fidel Castro e enviou seus quatro filhos para estudarem em Cuba, livrando-os assim das ameaças de seqüestro que haviam recebido em Pernambuco.
O declínio das ligas
A força das ligas começou a decrescer em 1962, ao mesmo tempo que se acelerava o processo de enquadramento institucional do movimento camponês, patrocinado pelo governo federal. A extensão ao campo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e do direito de organização sindical, embora estabelecidos desde 1944, só então começou a se efetivar.
Julião acompanhou com sérias reservas o movimento de sindicalização rural patrocinado pelo governo no Nordeste. Para ele, o objetivo dessa campanha era estabelecer o controle do Ministério do Trabalho sobre a massa camponesa. Temia formação do peleguismo no interior desses sindicatos e defendia uma sindicalização autêntica autônoma e independente. Distanciou-se, então, do presidente João Goulart, considerando moderado o projeto de reforma agrária do governo. Baseado em medidas fiscais e na democratização das relações entre camponeses e proprietários rurais, esse projeto, segundo Julião, iria “a médio prazo atender aos objetivos da própria oligarquia nacional e aos interesses do imperialismo”.
Apesar dessas restrições, Julião chegou a tomar parte na fundação dos primeiros sindicatos rurais de Pernambuco — como os de Jaboatão, Palmares, Cabo e Gameleira —, mas o conjunto das ligas camponesas, crescentemente radicalizado, se manteve à margem dessas iniciativas oficiais. Adotando posição oposta, o PCB e a Igreja obtiveram grande penetração no movimento sindical rural em formação no estado. Os comunistas chegaram a controlar sindicatos muito poderosos na região sul da Zona da Mata, dominada pelos assalariados das grandes usinas de açúcar, enquanto a Igreja expandiu sua influência na região norte dessa área através da atuação dos padres Crespo e Melo à frente do Serviço de Organização Rural de Pernambuco (SORP).
Na Paraíba, a influência de Julião diminuiu dentro das próprias ligas depois do assassinato, em março de 1962, de seu companheiro Pedro Teixeira, a mando de proprietários de terras. Julião protestou vigorosamente contra o atentado e enviou carta ao ministro da Guerra, marechal João de Segadas Viana, denunciando que os latifundiários paraibanos estavam estocando armas. Pouco tempo depois, um agrônomo ligado ao PCB, Francisco de Assis Lemos de Sousa, se fortaleceu na liderança do movimento e foi eleito, em meados do ano, presidente da Federação das Ligas Camponesas da Paraíba. Para tal, recebeu o apoio de João Goulart, interessado em combater a influência de Julião. Desde então o PCB estendeu sua hegemonia ao movimento camponês paraibano.
Em 7 de outubro de 1962, Julião foi eleito deputado federal por Pernambuco com 16 mil votos, apoiado pela coligação do PSB com o Partido Social Trabalhista (PST). Durante a campanha, seu nome foi duramente combatido pelo presidente Goulart, o PTB e a Igreja, que chegou a ameaçar seus eleitores de excomunhão. Ao mesmo tempo, seus correligionários imprimiram à campanha uma forte radicalização política, muitas vezes combatida pelo próprio candidato. O nome lançado pelo PTB com o objetivo de concorrer no mesmo eleitorado de Julião teve apenas 2.500 votos, apesar da grande ajuda que recebeu do governo federal.
Nas eleições para o governo do estado, realizadas no mesmo dia, Julião apoiou a candidatura de Miguel Arrais, então prefeito de Recife e candidato do PST. Arrais teve a apoiá-lo todas as forças nacionalistas e de esquerda em Pernambuco, e derrotou nas urnas João Cleofas, lançado pelo PR e a UDN. A vitória de Arrais ocorreu no momento em que aumentava em todo o país a polarização entre as forças que defendiam reformas de cunho social e as tendências conservadoras que reagiam a elas e enfatizavam a necessidade de contenção das reivindicações trabalhistas.
No início de 1963 Julião recomendou a seus seguidores que se abstivessem de votar no plebiscito convocado por João Goulart para definir a permanência do regime parlamentarista ou a volta do presidencialismo. Justificou sua posição alegando que o resultado da consulta não teria nenhum efeito sobre a situação do campesinato. Essa atitude contribuiu para seu isolamento dentro da esquerda, que apoiou em bloco o retorno ao presidencialismo, vitorioso por larga margem.
As ligas contavam, então, com cerca de 80 mil associados em todo o Nordeste, enquanto, só em Pernambuco o número de trabalhadores agrícolas sindicalizados chegava a 250 mil. Para Julião, as duas formas de organização poderiam coexistir, pois “o sindicato estava bem melhor aparelhado para garantir a aplicação da legislação trabalhista aos assalariados rurais” e as ligas, “associadas à problemática dos arrendatários e pequenos proprietários rurais, defendiam a posse da terra aos camponeses”. Entretanto, segundo diria muitos anos depois, o processo de radicalização vivido pelas ligas, que começaram a patrocinar ocupações de terras e chegaram a organizar dispositivos guerrilheiros em Goiás, Bahia e Maranhão, contribuiu para o seu isolamento. Em 1979, Julião declarou ter sido sempre contrário às propostas que conduziam o movimento camponês à revolução armada e se opôs sistematicamente às ocupações de terras realizadas em Pernambuco em 1962 e 1963. Ressaltou que as ligas eram um movimento e não um partido, comportando no seu interior diversas correntes, como agrupamentos trotskistas e membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), fundado em 1962 a partir de uma dissidência do PCB.
Em novembro de 1963 foi deflagrada em Pernambuco a primeira greve dos trabalhadores rurais, que durou quatro dias e chegou a paralisar a vida econômica do estado, reivindicando a imediata aplicação das leis trabalhistas no campo. Apoiados por Arrais, sindicatos, ligas e partidos de esquerda, os grevistas obtiveram todas as suas reivindicações, inclusive um aumento salarial de 80%.
Prisão, exílio e retorno ao país
O agravamento das tensões políticas e sociais em todo o país levou setores da oposição e autoridades militares a assumirem uma posição de ruptura com o governo federal, que resultou no movimento político-militar vitorioso iniciado em 31 de março de 1964. Nesse dia, Julião estava em Brasília participando das sessões ordinárias da Câmara dos Deputados. Aí permaneceu até 7 de abril junto com um grupo de parlamentares, protestando contra a deposição de Goulart. Retirado da Câmara — que estava cercada por tropas —, e escondido no carro do deputado udenista Adauto Lúcio Cardoso, Julião partiu nessa noite para Belo Horizonte disfarçado de migrante nordestino.
Em 9 de abril foi editado o Ato Institucional nº 1 que, entre outras medidas, abriu o processo de punições extralegais de adversários do novo regime, e no dia seguinte foi divulgada a primeira lista de cassações de direitos políticos. Julião foi um dos atingidos. Apesar de procurado pela polícia, conseguiu chegar à capital mineira, onde permaneceu durante três dias e escreveu um manifesto contra o movimento militar, publicado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano na revista Marcha, de Montevidéu. Retornou em seguida a Brasília, onde passou a viver numa pequena casa situada a alguns quilômetros da cidade em companhia de dois trabalhadores. Passou a aguardar ali a chegada de um mensageiro que lhe traria dinheiro para viajar rumo à região do Araguaia (PA). Entretanto, no dia 3 de junho o local foi invadido por uma patrulha da polícia. Julião tentou manter seu disfarce de candango, mas um dos policiais o reconheceu, afirmando: “A mão é de camponês, mas o pé é de deputado.”
Julião foi conduzido ao Batalhão de Guardas em Brasília, onde permaneceu 20 dias. Entregue à tutela do IV Exército, com sede em Recife, foi colocado durante 40 dias em cela solitária do 2º Batalhão de Guardas, sendo transferido em setembro seguinte para um alojamento na sede do Corpo de Bombeiros da capital pernambucana, ficando em companhia de Miguel Arrais. Nesse local, Julião escreveu Até quarta, Isabela, que, sob a forma de uma carta à sua filha recém-nascida, foi publicado antes de sua libertação.
Em 21 de abril de 1965, Arrais foi libertado graças a um habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e em 27 de setembro desse ano, através do mesmo mecanismo, Julião também deixou a prisão. Seu advogado foi Heráclito Fontoura Sobral Pinto. O novo presidente da República, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, interessou-se pessoalmente pelo caso e viajou ao Nordeste para negociar a libertação com oficiais do IV Exército. Segundo Julião, como resultado desses entendimentos, a ordem do STF foi cumprida, mas ele recebeu um prazo de 24 horas para sair de Pernambuco, sob pena de ser novamente detido.
Julião embarcou então para o Rio de Janeiro, onde procurou as embaixadas da Iugoslávia e do Chile, que lhe negaram asilo político. Só conseguiu deixar o país em 28 de dezembro de 1965, com destino ao México, depois de negociações empreendidas pelo jornalista Antônio Calado. Logo após sua viagem, Julião recebeu um convite de Fidel Castro para viver em Cuba, mas optou por permanecer no México, instalando-se com a família na cidade de Cuernavaca. No exílio, proferiu conferências, ministrou cursos, redigiu artigos regulares para os jornais Siempre e El Dia, e escreveu o livro Cambão: a cara oculta do Brasil.
De 15 a 17 de junho de 1979, Julião participou do Encontro dos Trabalhistas do Brasil com os Trabalhistas no Exílio, realizado em Lisboa sob a liderança do ex-governador gaúcho Leonel Brizola, onde foi discutida a formulação de um programa partidário capaz de orientar a convocação de uma assembléia nacional constituinte, e declarou que “a penetração violenta do capital monopolista no Brasil contribuiu para que o campo sofresse um abalo sísmico. O camponês que eu deixei no Brasil foi triturado, foi transformado num assalariado. Hoje, o fenômeno do bóia-fria merece a primazia de todo lutador social”.
No dia 28 de agosto de 1979, o presidente João Batista Figueiredo sancionou a anistia, que permitiu a volta ao Brasil de quase todos os exilados. Em 26 de outubro, Julião desembarcou no Rio de Janeiro e em 7 de novembro chegou a Pernambuco, reafirmando sua adesão ao PTB. Entretanto, dois grupos passaram a disputar a posse dessa sigla, um liderado por Brizola e outro pela ex-deputada Ivete Vargas, que obteve o registro provisório para a sua organização no Tribunal Superior Eleitoral em 12 de maio de 1980. A agremiação liderada por Brizola e apoiada por Julião passou então a se chamar Partido Democrático Trabalhista (PDT), obtendo pouco depois o registro provisório no mesmo tribunal.
Em setembro de 1985, sendo integrante da executiva nacional do PDT, esteve em São Paulo para participar da campanha eleitoral do seu correligionário, o empresário Ademar de Barros Filho, candidato à prefeitura paulistana. Questionado sobre a presença de um empresário num partido socialista, defendeu o candidato alegando que ele representava o capital nacional. Nessa ocasião, sustentou a união das forças políticas de esquerda num único partido que funcionasse como um amplo leque de alianças que comportasse diversas correntes políticas.
No pleito de novembro de 1986, concorreu a uma vaga de deputado constituinte por Pernambuco, na legenda do PDT. O início da sua campanha eleitoral contou com o apoio do Partido dos Trabalhadores (PT) e do PSB que, apesar de estar coligado formalmente com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), era contrário à candidatura de Antônio Farias, egresso do Partido Democrático Social (PDS). Esse apoio foi erodindo a medida que Julião participava de comícios do Partido da Frente Liberal (PFL), ao lado de usineiros, seus adversários na década de 1960. Os problemas da sua candidatura aumentaram com o acordo — chamado Pacto da Galiléia — feito com o usineiro José Múcio que, caso fosse eleito governador de Pernambuco, se encarregaria de distribuir 10% de suas terras na Zona da Mata aos camponeses. Julião também apoiou a candidatura do pefelista Roberto Magalhães ao Senado. Com esta aproximação ao PFL, Anatólio e Anatilde, filhos de Julião e dirigentes regionais do PDT, desligaram-se desse partido e ingressaram no PMDB, em protesto contra a atitude do pai.
Eleitoralmente derrotado, afirmou ter dado “um golpe de misericórdia no próprio mito”. Em dezembro de 1986, viajou para o México para escrever o livro Os últimos soldados de Zapata, encomendado por uma editora mexicana. Não mais retornou ao Brasil.
Em 1995, foi homenageado pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro por ocasião da comemoração dos seus 80 anos.
Morreu no México no dia 10 de julho de 1999.
Julião teve quatro filhos com Alexina Arruda de Paula, de quem se separou em 1963. Contraiu segundas núpcias com Regina de Castro, com que teve uma filha, e de seu terceiro casamento teve mais um filho.
Publicou as seguintes obras: Cachaça (1951), Irmão Juazeiro (1961), O que são as ligas camponesas? (1962), Até quarta, Isabela (1965) e Cambão: a cara oculta do Brasil (1968). Sobre o biografado, Anthony Leeds escreveu Brazil and the myth of Francisco Julião (1964).
Vilma Keller
FONTES: ARQ. DEP. PESQ. JORNAL DO BRASIL; CALADO, A. Tempo; CÂM. DEP. Deputados; CAMPOS, Q. Fichário; DULLES, J. Brazilian; ENTR. BIOG.; Estado de S. Paulo (23/4/96); Folha de S. Paulo (6/9/85 e 5/12/86); Globo (8 e 30/11/79, 14/7 e 15/12/86, 12/7/99); Grande encic. Delta; Jornal do Brasil (14/10/66, 7/4/74, 19/9/77, 11/1 e 13/5/78, 10 e 11/6, 2/7, 27/10, 6 e 8/11/79, 8/5 e 9/7/86, 12/7/99); MENESES, R. Dic.; PAGE, J. Revolution; Pasquim (5 e 12/1/79); SILVA, H. 1964; SILVA, H. História; Veja (11/10/78).