DUTRA, EURICO GASPAR

DUTRA, Eurico Gaspar

*militar; comte. 1ª RM 1935-1936; min. Guerra 1936-1945; pres. Rep. 1946-1951.

 

Eurico Gaspar Dutra nasceu em Cuiabá no dia 18 de maio de 1883, filho de José Florêncio Dutra e de Maria Justina Dutra. Desde que completou 19 anos de idade, e ao longo de toda a sua vida, constou — em registros e documentos oficiais, artigos e livros sobre sua pessoa — o ano de 1885 como o de seu nascimento, porque seu pai obteve uma certidão forjada a fim de possibilitar sua entrada no Exército. Modesto comerciante em Cuiabá, seu pai foi também veterano da Guerra do Paraguai e chegou a capitão honorário no governo de Floriano Peixoto (1891-1894). Seu irmão Ivan Dutra seguiu igualmente a carreira militar, tendo atingido o posto de brigadeiro na Aeronáutica.

Eurico Gaspar Dutra fez o curso primário na escola municipal dirigida pela professora Bernardina Riche. Sempre em Cuiabá, fez os estudos secundários no Externato São Sebastião e no Liceu Cuiabano. Em 1901, com a idade de 18 anos, tentou alistar-se no Exército em sua cidade natal, disposto a seguir a carreira das armas, mas a junta de saúde que o examinou considerou-o incapacitado, excluindo-o do serviço militar. Segundo seu genro Mauro Renault Leite, citado por Osvaldo Trigueiro do Vale, “ele na época tinha mesmo um físico franzino e aparentava menos idade do que realmente tinha”. Aconselhado por amigos e parentes, e munido da falsa certidão de nascimento, que lhe diminuía em dois anos a idade, apresentou-se a outra junta de saúde, em Corumbá (MT), a qual não lhe vetou a entrada no Exército, de vez que, agora, seu físico era compatível com a idade declarada.

Em março de 1902, deixou Cuiabá para se engajar na Escola Preparatória e de Tática do Rio Grande do Sul, localizada na cidade de Rio Pardo. Transferida a escola para Porto Alegre em 1903, aí concluiu os estudos no ano seguinte, depois de ter sido sargenteante de sua companhia. Ainda em 1904, no mês de abril, matriculou-se na antiga Escola Militar do Brasil (a Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal). Pouco mais tarde, em 14 de novembro do mesmo ano, participou do levante irrompido nessa unidade contra o governo do presidente Rodrigues Alves. Tendo como pano de fundo social o mal-estar das massas populares da então capital federal e como estopim a resistência à vacinação obrigatória da população, decretada pelo governo, o movimento foi debelado no mesmo dia e resultou no fechamento da Escola Militar. Pela sua participação no levante — foi a primeira e última vez que pegou em armas contra a ordem estabelecida, como assinalou José Caó —, Dutra foi expulso da escola, juntamente com os demais alunos revoltosos, e lotado no 24º Batalhão de Infantaria, sempre no Rio de Janeiro.

Em dezembro de 1904, deixou o Exército e voltou para a casa de seus pais, em Cuiabá, acabrunhado. Entretanto, no dia 6 de setembro de 1905, após longos meses de expectativa, foi beneficiado pela anistia decretada pelo governo. Reincluído no 24º Batalhão de Infantaria, em novembro já estava de novo na Escola Militar, agora sediada no subúrbio carioca do Realengo, onde antes funcionava a Escola Preparatória e de Tática do Rio de Janeiro. Em março de 1906, prestou os exames relativos a 1904. Aprovado, seguiu no mesmo ano para Porto Alegre.

Como cadete da Escola de Guerra de Porto Alegre, foi contemporâneo de Pedro Aurélio de Góis Monteiro, que viria a ser seu colega da alta cúpula militar entre 1935 e 1945. Em 1907, ambos participaram, com o então estudante de direito Getúlio Vargas (também ex-aluno da Escola Preparatória e de Tática de Rio Pardo, da qual se desligara em 1902), da formação do Bloco Acadêmico Castilhista. A organização de estudantes civis e militares e seu jornal O Debate foram criados para apoiar a campanha de Carlos Barbosa Gonçalves, do dominante Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), ao governo do estado. Eleito, Carlos Barbosa governaria o Rio Grande do Sul entre 1908 e 1913, no intervalo entre dois longos períodos de governo de Antônio Augusto Borges de Medeiros.

Dutra foi declarado aspirante-a-oficial em fevereiro de 1908, passando a servir no 17º Regimento de Cavalaria. Entretanto, afastou-se desse regimento logo a seguir, para cursar a Escola de Artilharia e Engenharia, onde se aperfeiçoou em mecânica, balística e metalurgia. Posteriormente, foi mandado servir no 13º Regimento de Cavalaria, apresentando-se aí em fevereiro de 1910. Instrutor de recrutas, recebeu sua primeira promoção, a segundo-tenente, em abril do mesmo ano.

Em julho de 1912, foi nomeado instrutor da Escola de Artilharia e Cavalaria. Entre 1912 e 1915, foi ainda instrutor de cavalaria da Escola Militar do Realengo, da Escola Preparatória do Exército e da Escola de Aplicação de Artilharia e Engenharia. Condensou sua experiência de instrutor no livro Exercícios de quadros, publicado em 1915, ano em que passou a servir no 1º Regimento de Cavalaria, no Rio de Janeiro. Em 1916, publicou Duas táticas em confronto, livro em que fazia o estudo comparativo do emprego da cavalaria por franceses e alemães.

Em julho de 1916, foi promovido a primeiro-tenente. No final do ano, inscreveu-se no concurso para a Escola de Estado-Maior. Classificado, abandonou a tropa em fevereiro de 1917 para seguir o curso, mas a escola foi fechada e, em 1918, retornou ao 1º Regimento de Cavalaria. Nessa época, ajudou os tenentes Bertoldo Klinger e Estêvão Leitão de Carvalho a fundar a revista Defesa Nacional, na qual colaborou assiduamente com artigos sobre técnica militar e, durante algum tempo, exerceu o cargo de secretário.

A chegada da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Maurice Gustave Gamelin, determinou a reabertura da Escola de Estado-Maior, em 1920. Imediatamente, Dutra desligou-se do 1º Regimento de Cavalaria para retomar seu curso. Em junho de 1921, foi promovido a capitão.

 

O defensor da ordem

A eleição de Artur Bernardes para a presidência da República em 1º de março de 1922 gerou forte reação por parte de políticos oposicionistas e, sobretudo, da juventude militar que se opusera energicamente à sua candidatura. Em maio, quando ficou claro que a posse de Bernardes era questão fechada para as forças dominantes da República, os “tenentes” lançaram nos quartéis a palavra de ordem da luta armada.

Na madrugada de 5 de julho de 1922 eclodiu finalmente a revolução, com a adesão da guarnição sediada em Campo Grande, atual capital de Mato Grosso do Sul, e de guarnições de Niterói e do Rio de Janeiro, especialmente, nesta última cidade, a do forte de Copacabana, derradeiro baluarte dos revoltosos, que caiu na manhã do dia 6, no episódio que ficou conhecido como Os 18 do Forte. Durante os combates, Dutra integrou as forças legalistas, encarregado da observação de tiros de artilharia num posto situado na rua Toneleros, no bairro de Copacabana.

Ainda em 1922, Dutra concluiu, como primeiro aluno da turma e com rara menção très bien, o curso da Escola de Estado-Maior, indo servir no 2º Regimento de Cavalaria Independente (2º RCI), em São Borja (RS). No início de 1923, voltou à capital da República por ter sido requisitado para servir como adjunto do Estado-Maior do Exército (EME), no âmbito da 3ª Seção de Operações.

Em julho de 1924, após uma sucessão de medidas autoritárias e manobras de esmagamento das oposições utilizadas pelo presidente Bernardes, eclodiu em São Paulo um movimento revolucionário — o Segundo 5 de Julho —, marcando o reinício do ciclo tenentista. As articulações entre civis e militares, iniciadas no primeiro semestre de 1923, desembocaram na capital paulista no levante de um milhar de homens do Exército e da Força Pública, sob o comando do general Isidoro Dias Lopes. Bernardes restabeleceu imediatamente o estado de sítio, sob o qual tomara posse e governara até o final de 1923. Dias depois, ordenou à artilharia que bombardeasse diversos bairros de São Paulo, recusando-se em seguida a negociar com os revoltosos. Os “tenentes” acabariam por abandonar a cidade em 27 de julho, rumando para o interior.

Dutra participou da repressão à revolução paulista de 1924 como agente de ligação do EME com as forças do governo em operação na área. No final de julho, assumiu a chefia da 3ª seção do estado-maior das forças de terra e mar que constituíam o Destacamento do Norte, sob o comando do general João de Deus Mena Barreto. A tarefa de Mena Barreto era debelar a insurreição irrompida em Manaus no dia 23 de julho, e que se irradiara para o Pará. À frente de uma esquadra, Mena Barreto tomou Óbidos (AM) no dia 20 de agosto e retomou em seguida, para o governo federal, Manaus, dirigida durante um mês por uma prefeitura nomeada pelos rebeldes.

Em fevereiro de 1925, o capitão Dutra foi designado para servir no estado-maior do general Otávio de Azeredo Coutinho, comandante das forças do Exército sediadas no Paraná e Santa Catarina que combatiam os rebeldes paulistas que se haviam refugiado na região de Foz do Iguaçu (PR) e Catanduvas (PR). O chefe do estado-maior de um dos destacamentos era o capitão Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Tendo combatido a chamada Coluna Paulista, parcialmente derrotada em Catanduvas no final de março, Dutra não chegou a combater a Coluna Miguel Costa-Prestes, resultado da junção, ocorrida em abril de 1925, entre os rebeldes paulistas e gaúchos — estes últimos sublevados em outubro de 1924.

Sob o comando do major Miguel Costa e tendo o capitão Luís Carlos Prestes na chefia de seu estado-maior, a Coluna Prestes dirigiu-se para Mato Grosso, passando pelo Paraguai, e iniciou a sua longa marcha.

De volta ao Rio, Dutra foi requisitado para servir no estado-maior da 1ª Região Militar (1ª RM).

Em maio de 1927, foi promovido a major e deslocado para o 9º RCI, sediado em São Gabriel (RS), cujo comando exerceu interinamente até 1928. Depois de ter ocupado a presidência do Conselho Permanente de Justiça da circunscrição judiciária militar sediada no Distrito Federal, voltou ao EME em novembro de 1928. Promovido a tenente-coronel em maio de 1929, passou a exercer o comando do 15º RCI, concomitantemente com o comando da Escola de Cavalaria, ambos no Rio.

Muito solicitado a participar da Revolução de 1930, recusou-se peremptoriamente a fazê-lo, preferindo participar da defesa do governo de Washington Luís. A revolução foi deflagrada no dia 3 de outubro em Porto Alegre e Belo Horizonte e no dia seguinte no Nordeste. Em 21 de outubro, Dutra seguiu para Três Rios (RJ) à frente do 15º Regimento de Cavalaria, com o objetivo de invadir Minas Gerais e combater as tropas rebeldes que tinham sua base de operações na região de Barbacena e Juiz de Fora. No dia 24, porém, uma junta militar depôs Washington Luís e assumiu o governo da República, determinando a cessação dos combates.

Getúlio Vargas, o candidato da Aliança Liberal derrotado nas eleições presidenciais de 1º de março de 1930 e chefe do movimento revolucionário, assumiu a presidência do Governo Provisório no dia 3 de novembro. Segundo Nélson Werneck Sodré, falou-se muito, no final de 1930, “na reforma, por iniciativa do governo, dos mais conhecidos legalistas tradicionais”, entre os quais Dutra, “dos mais ameaçados de serem retirados da ativa contra a vontade”. Entretanto, o castigo aplicado a Dutra pelo novo governo consistiu em sua transferência, assinada em 27 de novembro, para o comando do 11º RCI, sediado em Ponta Porã (MS), num trecho inóspito da fronteira com o Paraguai. A circunscrição militar era comandada pelo general Bertoldo Klinger, que havia intercedido por ele junto ao governo e o nomeou chefe de seu estado-maior.

 

A recomposição com o governo

A carreira militar de Dutra não chegou a ser prejudicada pelos acontecimentos de 1930. Em dezembro de 1931, foi promovido a coronel, assumindo logo em seguida o comando do 4º Regimento de Cavalaria Divisionária (4º RDC), sediado em Três Corações (MG). Nesse posto, combatendo em nome da nova ordem a Revolução Constitucionalista de São Paulo, teria ocasião de prestar importantes serviços ao governo chefiado por Vargas.

A motivação de Dutra ante o movimento constitucionalista foi menos de lealdade à ordem legal do país do que de lealdade pessoal, retribuição de favores recebidos. “Na noite de 4 para 5 de julho de 1932”, escreveu Dutra, citado por Hélio Silva, “procurou-me o então capitão Benjamim Ribeiro da Costa, no hotel em que eu residia, em Três Corações, e declarou-me que, como emissário do coronel Euclides Figueiredo, me convidava a tomar parte na revolução que iria explodir dentro de poucos dias. Respondi-lhe não poder aceder ao convite porque, por princípio, até então tinha sido legalista. Demais, havia sido classificado no comando do 4º RCD pelo ministro Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso, a pedido de seu filho Dulcídio Cardoso, que assim me retiravam de Mato Grosso, para onde fora mandado após a Revolução de 1930, e eu desejava ser leal para com ambos.”

A Revolução Constitucionalista teve início em 9 de julho de 1932, com a tomada de São Paulo pelos insurretos. As forças do governo distribuíram-se em três grupos. O primeiro se deslocou ao encontro dos rebeldes pelo vale do Paraíba, usando a rodovia e a ferrovia. O segundo marchou do Sul, atravessou a fronteira do Paraná com São Paulo e estacionou na parte meridional desse estado, junto ao rio Paranapanema. O terceiro, operando em Minas, ameaçou o flanco esquerdo dos paulistas na serra da Mantiqueira, entre as cidades de Passa Quatro (MG) e Cruzeiro (SP), onde há um túnel ferroviário. Foi na região do Túnel que combateu o regimento de Dutra, integrante do Exército do Leste, comandado por Góis Monteiro, que já havia alcançado o generalato graças à sua atuação na Revolução de 1930 como chefe do estado-maior das forças revolucionárias. As forças paulistas estavam sob o comando supremo do general Bertoldo Klinger.

No dia 13 de julho, Dutra promoveu o deslocamento do 4º RCD em direção ao sul, ocupando Itanhandu (MG) e Passa Quatro nos dias 14 e 15, respectivamente. Nesse último dia, teve o primeiro contato com os revolucionários, na zona do Túnel. Mas seu regimento recebeu ordem de seguir para Itajubá (MG), deixando suas posições no Túnel entregues ao 1º Batalhão da Força Pública de Minas Gerais. Os paulistas se aproveitaram do momento de substituição de uma tropa por outra para atacar, estabelecendo o pânico entre os soldados da Força Pública mineira. Dutra resolveu sustar o deslocamento do 4º RCD para dar apoio aos milicianos mineiros, e retomou todas as posições perdidas. Segundo Euclides Figueiredo, os paulistas foram derrotados pelo elemento surpresa, decorrente não de uma manobra audaciosa de Dutra, mas do fato de não saberem com certeza de que lado ele estava. Euclides Figueiredo havia mandado novamente um emissário confabular com Dutra, que avisara: “Vou seguir para aí” e, a uma pergunta do emissário, completara: “Certamente, como amigo.” Euclides Figueiredo afirma em seu livro que, na dúvida, deu ordem para que seus soldados não atirassem contra o 4º RCD, mas Dutra veio “como inimigo, e dos mais decididos”, e os paulistas, surpreendidos, perderam sua posição na boca norte do Túnel. Em seguida, o 4º RCD teve permissão para recolher-se a Três Corações.

Em 30 de julho, o regimento de Dutra recebeu ordem de regressar a Itajubá para nova missão. No dia 4 de agosto, progredindo em direção ao rio Sapucaí, ocupou as áreas elevadas situadas a leste do rio Eleutério, sob o fogo cerrado dos rebeldes paulistas. Um dia depois, o 4º RCD foi descansar em Jacutinga (MG), sendo substituído pelo 29º Batalhão de Caçadores (29º BC) que cedeu terreno, permitindo a infiltração dos constitucionalistas nas posições das tropas legalistas. No dia 6, Dutra recebeu ordem para socorrer o 29º BC, conseguindo deter a ofensiva dos paulistas e fazê-los retroceder das posições que haviam conquistado.

Dutra permaneceu com seu regimento na região limítrofe da serra da Mantiqueira até a rendição dos paulistas no dia 2 de outubro. O 14º Corpo de Provisórios do Rio Grande do Sul, comandado por Benjamim Vargas, irmão de Getúlio, e integrado por vários parentes deste, inclusive seu filho Lutero Vargas, e pelo fiel servidor Gregório Fortunato, estava sob suas ordens. Nasceu daí uma amizade com Benjamim Vargas que lhe valeu a aproximação com o presidente da República. Sua promoção, recomendada formalmente a Vargas pelo ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, que estivera em missão de observação no vale do Paraíba, não tardou: passou a general-de-brigada ainda no dia 4 de outubro, sendo destacado para o comando da 2ª Brigada de Infantaria, no Rio de Janeiro. Não se tratava, ainda, da ascensão nos meios militares e governistas, mas a situação de Dutra alterara-se substancialmente desde a designação para Ponta Porã. Uma prova disso foi sua eleição para a presidência do Clube Militar no período 1933-1934, numa fase, é verdade, de muito discreta participação política da entidade.

Em julho de 1933, Dutra foi nomeado diretor da Aviação Militar. Iniciou a organização das unidades aéreas — reorganizando o regimento de aviação do Distrito Federal e criando novos regimentos em São Paulo, no Rio Grande do Sul e no Paraná — e a remodelação do ensino e da instrução relativos à arma. Deu início também, em São Paulo, à montagem de uma grande oficina de revisão de motores, construiu as primeiras companhias de preparadores de terrenos e fundou o Parque Central de Aviação (fábrica de peças de reposição), que começou a funcionar em 1934.

Em abril de 1935, passou a comandar a 1ª Brigada de Infantaria, na Vila Militar do Rio de Janeiro, em substituição ao general João Guedes da Fontoura, envolvido numa movimentação antigovernista baseada em reivindicação de reajuste dos vencimentos dos militares. Foi instruído a tomar medidas de segurança na Vila Militar, mas ficou poucos dias no seu comando, pois logo no início de maio foi promovido a general-de-divisão, posto máximo da carreira, na época e, ao mesmo tempo, designado comandante da 1ª RM, aí substituindo o general João Gomes, nomeado ministro da Guerra. Nos meses seguintes, fez o curso de informações para altas patentes do Exército.

 

A repressão em 1935 e a ida para o Ministério da Guerra

A reconstitucionalização do país iniciada com as eleições de 1933 não abriu um período de estabilidade política mas, ao contrário, de ainda maior instabilidade, que iria desembocar no golpe de 10 de novembro de 1937 e na implantação do Estado Novo. A solução golpista começou a se desenhar, como hipótese, com a promulgação da Constituição de 1934, em 16 de julho, e a confirmação de Getúlio Vargas na chefia do Executivo, um dia depois, pelos constituintes. A propensão a romper a legalidade constitucional, presente em primeiro lugar nas forças armadas, foi estimulada pelos acontecimentos de 1935.

No dia 30 de março desse ano, foi constituída a Aliança Nacional Libertadora (ANL), movimento antifascista e nacionalista animado pelos comunistas. A ANL teve como presidente de honra o ex-capitão Luís Carlos Prestes, que se recusara a ser o chefe militar da Revolução de 1930 sob o comando supremo de Vargas, aderira ao comunismo e passara alguns anos na União Soviética. Dias depois (4 de abril), foi sancionada a Lei de Segurança Nacional, reforçando o clima repressivo que ia se alastrando no país. No dia 11 de junho, a ANL, que adquirira dimensões de um amplo movimento de massas, foi fechada por decreto. Os comunistas, liderados por Prestes, decidiram reagir com uma tentativa insurrecional de caráter militar. A revolta começou em Natal no dia 23 de novembro, repetindo-se em Recife no dia seguinte.

No dia 26, escreveu Afonso Arinos de Melo Franco, “todo o meio político sabia, no Rio de Janeiro, que graves acontecimentos deveriam ocorrer, dentro de horas, na capital da República. O governo estava perfeitamente informado da marcha dos acontecimentos, desde a dissolução da ANL. O chefe de polícia, Filinto Müller, o ministro da Guerra, general João Gomes (...) e o comandante da 1ª Região, general Eurico Dutra, tinham os seus elementos em rigorosa prontidão”.

A rebelião comunista começou simultaneamente no 3º Regimento de Infantaria (3º RI), na Praia Vermelha, e na Escola de Aviação Militar, no Campo dos Afonsos, contígua à Vila Militar, às primeiras horas de 27 de novembro. Na véspera, à tarde, Dutra mandara prender, no próprio quartel-general da 1ª RM, o tenente Augusto Pais Barreto, que viera da Vila Militar à frente de uma companhia do 2º RI requisitada pelo comandante da região, e tentara aliciar um oficial para o apoio ao movimento que deveria eclodir horas depois. Entretanto, nem ele, nem o ministro da Guerra, nem o presidente da República tomaram qualquer providência destinada a impedir a eclosão da tentativa insurrecional.

Quando recebeu as primeiras notícias do levante, Dutra mandou para o bairro da Urca, onde fica a Praia Vermelha, o Batalhão de Guardas e o 1º Grupo de Obuses. A revolta na Escola de Aviação Militar foi enfrentada inicialmente pelo vizinho 1º Regimento de Aviação, sob o comando do tenente-coronel Eduardo Gomes, ao qual se juntaram, por ordem de Dutra, a 1ª Brigada de Infantaria, da Vila Militar, e o 2º BC.

Dominada no início da manhã do dia 27 a rebelião no Campo dos Afonsos, Dutra deslocou o 2º BC para a Urca, onde se encontrava no comando das operações, juntamente com o ministro João Gomes. As guarnições dos fortes de São João, Laje e Leme foram encarregadas de tomar as saídas do 3º RI para o lado do mar, e a polícia civil arremessou bombas de gás contra o quartel, que foi metralhado e depois bombardeado por aviões militares. Com o prédio do 3º RI parcialmente destruído pela artilharia e em chamas, os rebeldes renderam-se no início da tarde. Segundo relatório feito logo em seguida por Dutra, os combates na Praia Vermelha e no Campo dos Afonsos deixaram um saldo de 19 militares mortos e 159 feridos, de ambos os lados. Sabe-se, entretanto, que o número de vítimas fatais foi superior (22 apenas do lado legalista, segundo José Campos de Aragão), havendo quem fale, como Robert Levine, em cerca de 50 mortos.

Para Alzira Vargas do Amaral Peixoto, a rapidez com que agiu Dutra circunscreveu à Praia Vermelha e à Escola de Aviação Militar a rebelião, que poderia se alastrar a outros corpos de tropa. Luís Vergara, secretário de Vargas, escreveu em suas memórias que o general João Gomes estaria decidido a passar pelas armas os prisioneiros, sendo dissuadido pelo presidente da República e por Dutra. Este, no entanto, contestaria a veracidade da acusação a João Gomes quando da publicação do livro de Vergara, em 1961.

O estado de sítio, aprovado pelo Congresso Nacional logo após a eclosão da revolta aliancista em Natal, trazendo em seu bojo a censura à imprensa, foi transformado no mês seguinte em estado de guerra. Pedidas inicialmente por 90 dias, as medidas de exceção foram prorrogadas sucessivas vezes a partir de março de 1936, enquanto prosseguia a repressão a civis e militares comunistas, aliancistas ou simplesmente acusados de simpatia à tentativa insurrecional de novembro de 1935. No mês de março de 1936 foram presos um senador e quatro deputados federais.

Ainda no início de 1936, o conflito entre o governador gaúcho José Antônio Flores da Cunha e o presidente Vargas, que vinha num crescendo desde 1933, chegou ao ponto de ruptura. Getúlio, para garantir sua influência no Rio Grande do Sul, planejou uma intervenção militar no estado. O general João Gomes se opôs a essa manobra, embora a cúpula militar não escondesse seu descontentamento com o poderio da Brigada Militar, a força armada subordinada ao governador gaúcho, o qual vinha mobilizando grande número de batalhões provisórios num evidente desafio ao poder central. A posição de João Gomes como ministro, objeto de uma ação de desgaste desenvolvida por seu antecessor, Góis Monteiro, ficou insustentável depois que um informe da polícia demonstrou ter ele perdido a confiança do corpo de generais, porque seu comportamento diante de Flores da Cunha era considerado muito brando.

No dia 3 de dezembro de 1936, finalmente, João Gomes pediu demissão da pasta da Guerra. Dois dias depois, Vargas nomeou Dutra — tido como o general mais ligado a Góis Monteiro — para substituí-lo, passando o comando da 1ª RM ao general Valdomiro Lima, tio afim do presidente. O prestígio de Dutra crescera muito após a repressão à Revolta Comunista, coincidindo com a volta do prestígio de Góis Monteiro. Passaram os dois a constituir o poderoso vértice da cúpula militar que se associaria a Vargas numa duradoura porém não isenta de crises intestinas, geralmente dissimuladas, aliança autoritária.

Dutra foi para o Ministério da Guerra num momento de fechamento progressivo do regime, dentro de um duplo processo: de centralização do poder nacional no governo federal e de crescimento da influência da corporação armada. A influência crescente das forças armadas pode ser aferida através de dois indicadores. Em primeiro lugar, o aumento de seus efetivos — de 38 mil homens, em 1927, para 75 mil, em 1937, e 93 mil, em 1940 — e, em segundo, a elevação da parcela destinada aos ministérios da Guerra e da Marinha no orçamento federal — 19,4% em 1931 e 30,4% em 1938. Por outro lado, o Exército havia sofrido, sob a direção de João Gomes, um grande expurgo de aliancistas e comunistas. Caberia a Dutra, antes de mais nada, a tarefa de preservá-lo de infiltrações revolucionárias.

No primeiro ano de sua permanência à frente da pasta da Guerra — muito mais longa que qualquer outra desde a criação do cargo por d. João VI, em 1808 —, Dutra tomou medidas destinadas a prover o Exército de armamento moderno e munições, medidas essas que seriam desdobradas e ampliadas nos anos seguintes. Mas a história de sua atuação no Ministério da Guerra em 1937 é sobretudo a história de sua participação na preparação do golpe de 10 de novembro, que liquidou com as liberdades democráticas e com o cambaleante ordenamento constitucional de 1934, impondo a ditadura do Estado Novo.

 

A preparação do golpe de 1937

Ao longo de 1936, ganhara alento a candidatura do governador paulista Armando de Sales Oliveira às eleições presidenciais previstas para janeiro de 1938. Essa candidatura foi lançada extra-oficialmente nos últimos dias de dezembro de 1936, quando Armando Sales deixou o governo de seu estado para se desimcompatibilizar. Paralelamente, a hipótese de golpe se transformava em tendência, e esta em articulação consciente a partir da hierarquia militar e do governo federal.

Getúlio, que conduzia com tato e habilidade o desdobramento da perspectiva golpista, e precisava ganhar tempo, fixou-se, depois de examinar outros nomes, na candidatura de José Américo de Almeida, lançada oficialmente em 25 de maio de 1937. Mas já então o ex-ministro da Educação Francisco Campos trabalhava num projeto de constituição a ser outorgada após o golpe.

Foi ainda em maio de 1937 que Dutra autorizou a polícia do Ceará a destruir — com a utilização inclusive de aviões cedidos pelo Exército, no que foi o primeiro bombardeio aéreo sobre um ajuntamento civil no país — o acampamento dos seguidores do beato José Lourenço remanescentes do sítio de Caldeirão, no município de Juazeiro do Norte (CE). A comunidade do Caldeirão fora destroçada pela polícia em setembro anterior, mas José Lourenço, antigo protegido do padre Cícero Romão Batista, escapara com muitos de seus companheiros, internando-se na serra do Araripe. Foi aí que ocorreu a nova investida, nas proximidades da localidade chamada Mata dos Cavalos, onde um capitão e cinco soldados da Força Pública haviam sido emboscados e mortos por uma ala dos seguidores de Lourenço. A repressão à comunidade messiânica de Caldeirão fez de quinhentas a mil vítimas fatais, entre homens (quase todos desarmados), mulheres e crianças. Um dos pretextos para a ação repressiva foi uma inexistente infiltração de pessoas envolvidas na Revolta Comunista de Natal (de novembro de 1935) entre os camponeses de Caldeirão, vindos em sua maioria do Rio Grande do Norte.

Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, Dutra assumira o Ministério da Guerra comprometido com a deposição de Flores da Cunha do governo do Rio Grande do Sul, cuja neutralização, necessária para o sucesso do golpe projetado, “só seria possível com a dissolução dos corpos provisórios”. No final de abril de 1937, Vargas transferiu de Flores da Cunha para o general Emílio Lúcio Esteves, comandante da 3ª RM, sediada no Rio Grande do Sul, a execução do estado de guerra nessa unidade da Federação.

Góis Monteiro, que no início do ano se tornara inspetor das regiões militares do Sul, cargo que lhe permitira montar o cerco ao governo estadual gaúcho (e que, por isso mesmo, lhe fora negado por João Gomes, mas concedido por Dutra), chegou ao mês de maio com todos os seus planos prontos: “Algumas tropas que deviam ficar à minha disposição, como reforço”, afirmou em seu depoimento a Lourival Coutinho, “já se achavam em movimento em São Paulo, Paraná e Santa Catarina.” Chamado por Dutra, que nesse momento se encontrava em São Paulo, foi entretanto informado, segundo o mesmo relato, de que o ministro estava demissionário: “que o sr. Benedito Valadares [governador mineiro] se indispusera com o governo e retirara o apoio prometido de 30 mil homens de Minas Gerais: que vários generais, capitaneados pelo general Valdomiro Lima, já convidado para chefe do Estado-Maior do Exército, iriam protestar contra o emprego de forças no Rio Grande do Sul; que os militares dissidentes e os políticos agiam em combinação; e, assim, [que Dutra] sentia que o governo estava muito fraco e ele não poderia continuar como ministro, pois nem sequer poderia atender ao envio de tropas para o Sul, como estava assentado.”

Dutra pediu a opinião de Góis Monteiro, que propôs um recuo tático em relação ao Rio Grande do Sul, já que “não se podia combater em duas frentes, simultaneamente”. O ministro da Guerra concordou em se manter à frente da pasta desde que Góis Monteiro assumisse a chefia do EME, passando o comando geral das tropas do Sul a um general de sua confiança. Em seguida, vieram ambos ao Rio, onde discutiram a situação com Vargas. Góis Monteiro sugeriu ao presidente que usasse de firmeza com o general Valdomiro Lima, dando assim, com uma “solução à Floriano”, um exemplo para os demais generais recalcitrantes.

Segundo Edgar Carone, “o episódio contra o general Valdomiro Lima e outros oficiais [era] parte do jogo contra os neutros ou favoráveis à eleição [presidencial de 1938]”. No início de junho, Góis Monteiro, aludindo a uma reunião na casa do general José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, que teria tido caráter conspirativo, acusou o anfitrião e Valdomiro Lima de inimigos do regime. Este, imediatamente, escreveu a Vargas e a Dutra, pedindo demissão do comando da 1ª RM, e fez chegar ao ministro da Guerra uma petição para que Góis Monteiro fosse processado por falsas declarações a seu respeito.

Substituído pelo general Almério de Moura no comando da 1ª RM, Valdomiro Lima foi preso em 16 de junho e recolhido à Vila Militar. No dia seguinte, Dutra avocou a si o inquérito policial-militar destinado a apurar os fatos alegados na representação de Valdomiro Lima. No dia 18, entregou a presidência do inquérito ao general Firmino Borba, enquanto o então Supremo (atualmente Superior) Tribunal Militar (STM) negava um pedido de habeas-corpus apresentado pelo ex-comandante. A representação deste contra Góis Monteiro acabaria não tendo êxito, apesar da carta aberta que o general José Pessoa entregou aos jornais, contestando as acusações de Góis, e que lhe valeu igualmente a prisão na Vila Militar, ainda no dia 18.

Também no início de junho, José Carlos de Macedo Soares, que assumira o Ministério da Justiça em 30 de maio, ordenou, no episódio que ficou conhecido como a “macedada”, a libertação de centenas de presos políticos sem processo formado, vítimas da repressão à Revolta Comunista de 1935. Em julho, houve no Rio de Janeiro grandes manifestações em favor de Pedro Ernesto Batista, ex-prefeito do Distrito Federal que, pelas mesmas razões, fora preso em abril de 1936. As manifestações pela libertação dos presos se estenderam a outras cidades. “A luta pela liberdade”, escreveu Edgar Carone, “é condenada abertamente pelas autoridades, sendo acusada de ameaça comunista ao regime. É assim que uma onda dirigida de anticomunismo se desencadeia violentamente.” Dutra foi então um dos expoentes desse movimento.

Com o afastamento do general Valdomiro Lima, Góis Monteiro assumiu, em julho, a chefia do EME. No início de agosto, a ofensiva contra Flores da Cunha recrudesceu. O general Lúcio Esteves, que se mostrava contrário ao desarmamento completo das forças estaduais gaúchas, demitiu-se do comando da 3ª RM e foi substituído pelo general Manuel Daltro Filho, até então comandando tropas aquarteladas nas divisas do Rio Grande do Sul, e favorável aos planos de Góis Monteiro. Ao mesmo tempo, o general João Guedes da Fontoura foi substituído no comando da 5ª RM, sediada no Paraná, pelo general José Meira de Vasconcelos.

Simultaneamente, Dutra exigiu de Flores da Cunha a devolução de armamento da União fornecido ao governo gaúcho quando da Revolução de 1930 e, sobretudo, para a repressão à Revolução Constitucionalista de 1932: mais de duzentas metralhadoras pesadas e fuzis-metralhadoras, quase 15 mil fuzis e mosquetões, outro tanto de sabres, espadas e lanças. Flores da Cunha contestou os números apresentados e propôs a criação de um tribunal de arbitragem, o que não foi aceito por Dutra. O que o ministro da Guerra aparentemente aceitou foi a formação de uma comissão para examinar o problema, integrada por representantes de ambas as partes. Entretanto, a disposição de Dutra em relação ao governador gaúcho não se modificara, como atesta o telegrama cifrado que enviou no final de agosto ao general Daltro Filho: “Questão material bélico não restituído esse estado continua sem solução; por outro lado, acontecimentos políticos aí vão se desenrolando podem acarretar interferência forçada Exército. Torna-se assim necessário cogitardes reforçamento guarnição Porto Alegre, onde precisamos estar fortes em qualquer situação, ainda mesmo sem idéia agressão a quem quer que seja. Vou dar ordem destacamento [coronel] Mário Xavier cerrar sobre Araranguá e Tubarão, de modo poder qualquer momento deslocar-se direção Torres e mais além.”

No curso do mês de setembro, circularam nas altas esferas militares e governamentais cópias de um suposto plano comunista de tomada do poder, batizado de Plano Cohen. Elaborado na verdade pelo capitão Olímpio Mourão Filho — chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB) e oficial lotado no EME —, o documento, cujos acenos anti-semitas eram indisfarçáveis, foi usado por Góis Monteiro como argumento para a ultimação do golpe de estado. De início, discretamente, e, no fim do mês, publicamente, com estardalhaço.

Em seu diário inédito, transcrito parcialmente pelo Jornal do Brasil no dia de sua morte, Dutra escreveu: “O impasse em que se encontravam os políticos para resolver a sucessão favorecia os planos de Getúlio Vargas de permanecer no governo além do prazo.” No dia 18 de setembro, ele teve uma conversa com Vargas. O presidente da República recapitulou a situação: 1) malograra a tentativa de Benedito Valadares de rever a Constituição, de modo a permitir a prorrogação do mandato presidencial; 2) era inviável a escolha de um candidato único, porque tanto José Américo como Armando Sales a isto se opunham; 3) podia-se considerar como certa a vitória de Armando Sales, o que seria, na opinião de Getúlio, um desastre para a nação.

“Passou, em seguida”, prossegue o diário de Dutra, “a referir-se ao regime democrático, que tantos males vinha causando, e ao Congresso, que nada produzia e criava dificuldades às iniciativas do governo. Para sanar tudo isso só via uma solução: mudança do regime e reforma radical da Constituição. Era preciso reagir contra a situação deplorável do momento que atravessávamos, que só tendia a piorar. Tal reação precisava ser tentada por meio de uma verdadeira revolução de cima para baixo, isto é, desencadeada pelo próprio governo. Para esse movimento contava com o auxílio de Minas Gerais; mas tudo seria inútil sem o apoio do Exército. Exposta assim, resumidamente, a sua idéia, passou o presidente a fazer-me um apelo para auxiliá-lo na empresa, adiantando que, se eu não estivesse de acordo, nada tentaria ele, deixando que os acontecimentos evoluíssem em qualquer direção.” Dutra respondeu que “estava de acordo com o que acabava de dizer-me e que contasse comigo, pessoalmente. No momento não podia hipotecar a solidariedade do Exército, mas faria todo o possível para que grande parte dele nos acompanhasse, na ocasião oportuna. Uma única restrição existia: não lançaria o Exército contra o Exército, numa luta armada”.

No dia seguinte, Benedito Valadares confirmou a Dutra o apoio de Minas Gerais: “Seguiria brevemente para Minas Gerais com a intenção de duplicar os efetivos da Força Pública e organizar algumas unidades de forças irregulares. Nessa oportunidade declarou que Getúlio Vargas iria receber a cooperação dos integralistas. Deixou-me um esboço de manifesto a ser lançado pelo presidente e o projeto da nova Constituição. Mais tarde telefonou-me para dizer que Plínio Salgado havia assegurado ao presidente inteira adesão.”

 

O consenso dos generais

O clima de agitação anticomunista que se instalara após a adoção de medidas liberalizantes pelo ministro da Justiça em junho de 1937 foi reforçado pela antecipação, para o dia 22 de setembro, da homenagem às vítimas da rebelião comunista de novembro de 1935. Organizaram-se romarias ao cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, enquanto o comércio e a indústria tiveram de fechar suas portas. Getúlio compareceu à cerimônia acompanhado por Dutra, pelo ministro da Marinha, almirante Aristides Guilhem, por Francisco Campos e pelo general Newton Cavalcanti, integralista notório e comandante da 1ª Brigada de Infantaria, da Vila Militar.

Cinco dias depois, em 27 de setembro, Dutra cumpriu a decisiva parte que lhe cabia, convocando, na esteira da circulação das cópias do Plano Cohen, uma reunião de generais no Ministério da Guerra. Ao encontro compareceram, segundo Edgar Carone, “todos os elementos ligados ao esquema militar do golpe”: Góis Monteiro, Almério de Moura, Newton Cavalcanti, José Antônio Coelho Neto, diretor da Aviação Militar, e Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal. A reunião, afirmou Dutra aos presentes, não era para tratar de política, “mas exclusivamente de repressão ao comunismo”, acrescentando que “as nossas leis, como se acaba de ver, são ineficazes, inócuas. Só têm servido para pôr em liberdade aqueles que a polícia apanhou em flagrante delinqüência... Ante a ameaça ostensiva dos elementos comunistas, publicamente caracterizados, o ministro da Guerra já fez tudo quanto estava ao seu alcance.

O crime de lesa-pátria praticado em novembro de 1935 está prestes a ser repetido, provavelmente com maior energia e mais segurança de êxito. Impõe-se, contra a ação nefasta e iminente, a ação honesta e saneadora das instituições nacionais. É questão de iniciativa: quem perdê-la estará comprometido, pelo menos no primeiro instante. É preciso, portanto, agir, e agir imediatamente”. Terminada a reunião, Dutra e Góis Monteiro foram ao Ministério da Marinha, onde obtiveram a concordância do almirante Guilhem. A cúpula militar se comprometeu com a iniciativa do golpe e apoiou a idéia de que o Exército e a Marinha deviam funcionar como forças auxiliares dos civis, permanecendo o comando nas mãos de Getúlio Vargas.

A contagem regressiva para a realização do golpe de Estado começou a partir do consenso obtido na reunião dos generais, que deu a Vargas o argumento definitivo para pressionar as forças políticas vacilantes. No dia seguinte, o presidente recebeu Dutra e Guilhem. Ficou assentado que os ministros militares lhe enviariam uma mensagem solicitando nova decretação do estado de guerra (que havia deixado de vigorar em junho anterior). Nessa ocasião, Getúlio declarou que, se o ministro da Justiça não estivesse de acordo, seria substituído. A mensagem foi enviada no dia seguinte, vazada em termos muito semelhantes aos da fala de Dutra na reunião do dia 27.

No dia 30 de setembro, o EME anunciou a “descoberta” do Plano Cohen, contendo “instruções da Internacional Comunista (Komintern) para a ação de seus agentes no Brasil”. O chefe do Gabinete Militar da Presidência, general Francisco José Pinto, determinou que o suposto plano fosse divulgado através do programa radiofônico oficial Hora do Brasil. Na mesma data, o ministro da Justiça enviou ao Congresso mensagem — onde mais uma vez eram reproduzidas expressões de Dutra — pedindo a reimplantação do estado de guerra.

Enquanto a medida era votada no Congresso Nacional — foi aprovada pela Câmara dos Deputados no dia 1º de outubro e ratificada pelo Senado Federal no dia seguinte —, Dutra concordou em receber Plínio Salgado, o chefe nacional da AIB. Plínio já estivera em meados de setembro com Francisco Campos, que lhe submetera o projeto da Constituição a ser outorgada, e foi levado a Dutra por intermediação de Filinto Müller. Na carta que enviou a Getúlio em 28 de janeiro de 1938, queixando-se do não-cumprimento das promessas feitas antes do golpe pelo presidente da República, Plínio Salgado relata seu encontro com Dutra o qual, segundo lhe dissera Filinto Müller, estava aborrecido com a possibilidade de não ser aprovado no Congresso o estado de guerra. “Saí dali convencido de que nada tinha a temer no futuro;... fôramos sempre sinceros e o sr. ministro da Guerra nos compreendia. Ele me afastava quaisquer temores. Elogiava os oficiais integralistas. Mostrava-se grato pelo apoio que a massa civil dos camisas-verdes dava a quaisquer providências de salvação pública.” No mesmo relato, Plínio afirma que, em encontro posterior com Getúlio, colheu impressão igualmente positiva.

Na seqüência da reinstauração do estado de guerra, o governo criou por decreto em 7 de outubro uma comissão para superintender sua execução em todo o território nacional. Além de José Carlos de Macedo Soares, que, como ministro da Justiça, era membro nato da comissão, foram nomeados para constituí-la, na mesma data, o general Newton Cavalcanti e o almirante Dario Pais Leme de Castro, também ligado ao integralismo. As normas de ação aprovadas pela comissão, parcialmente transcritas por Edgar Carone, previam a organização de “colônias agrícolas para reeducação moral e cívica e aproveitamento dos elementos comunistas considerados não-perigosos”, de “campos de concentração militares, destinados a receber os jovens que, porventura, se tenham transviado de seus deveres cívicos”, e de “um campo de concentração, em moldes de escotistas nacionais, destinado a educar e reeducar (...) os filhos dos comunistas presos”. Previa também, entre outros itens, “a possibilidade de deter, com ou sem estado de guerra, todos os praticantes e simpatizantes de doutrinas comunistas, sem que possam valer-se, para reconquista de suas liberdades, dos recursos oferecidos pelas atuais leis do pais; esses comunistas só serão reconduzidos à liberdade depois de considerados reeducados”.

Ainda em 7 de outubro, foram publicados os decretos de nomeação dos executores do estado de guerra nas unidades da Federação, assinados três dias antes: o cargo cabia aos governadores dos estados, com exceção dos partidários da manutenção da ordem constitucional, ou seja, os governadores do Rio Grande do Sul, de São Paulo, de Pernambuco e da Bahia. Para assessorá-los foram nomeados oficiais do Exército. Muitas das pessoas que haviam sido libertadas em junho porque não tinham culpa formada foram presas novamente, o mesmo acontecendo com Pedro Ernesto, libertado por decisão judicial em setembro. Segundo Edgar Carone, “o general Dutra [mandou] apressar os processos, tentando evitar a repetição dos fatos passados, quando a lentidão da Justiça permitiu que o prazo legal de julgamento fosse ultrapassado”.

Na vigência do novo estado de guerra, Dutra reiniciou a ofensiva contra Flores da Cunha. Em 14 de outubro, após entendimentos com o general Daltro Filho, assinou o decreto de requisição da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. No dia 17, Flores da Cunha colocou a Brigada à disposição da 3ª RM e renunciou ao governo do estado, partindo no dia seguinte para o Uruguai. Em 19 de outubro, Vargas decretou intervenção no estado e nomeou Daltro Filho para responder pela interventoria. Estava afastado o derradeiro obstáculo de monta à imposição do Estado Novo. Por outro lado, as requisições de polícias militares estaduais não se limitaram ao Rio Grande do Sul. A notificação da requisição foi feita simultaneamente a Flores da Cunha e ao governador paulista José Joaquim Cardoso de Melo Neto, enquanto Dutra requisitava igualmente dois batalhões da Força Pública de Minas Gerais. Nos dias seguintes, as forças policiais dos demais estados foram sendo incorporadas às forças armadas federais.

Em 27 de outubro, com o golpe já marcado para 15 de novembro, teve início a chamada Missão Negrão de Lima. A missão do deputado federal Francisco Negrão de Lima consistiu em contactar os governadores do Norte e do Nordeste (exceto os de Pernambuco e Bahia), comunicando-lhes os pontos básicos das mudanças institucionais em preparação e sondando-os a respeito de suas posições em face do golpe. Todos os governadores consultados por Negrão de Lima se declararam de acordo com o golpe, e ele voltou ao Rio em 1º de novembro.

Nessa mesma data, Plínio Salgado promoveu no Rio de Janeiro um desfile de milhares de integralistas, da praça Mauá ao palácio Guanabara, de cujo balcão Vargas, o general Newton Cavalcanti e o almirante Dario Pais Leme de Castro passaram em revista os manifestantes. O chefe integralista retirou então sua candidatura à presidência da República, lançada em maio anterior. Dutra enviou um relatório a Getúlio advertindo-o de que, no Exército, mais de 1/4 dos oficiais da ativa podiam ser classificados como integralistas ou simpatizantes do integralismo, e, na Marinha, cerca de metade.

A natureza da Missão Negrão de Lima foi divulgada pelo Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, no dia 5 de novembro, mas Getúlio armou um esquema para desmentir a denúncia. No próprio dia 5, alegando fadiga, José Carlos de Macedo Soares entregou ao presidente uma carta de demissão do Ministério da Justiça.

Horas depois, Vargas comunicou aos altos chefes militares que o novo ocupante da pasta seria Francisco Campos.

Em 7 de novembro, Dutra foi visitado por José Américo de Almeida. Este, segundo escreveu Dutra em seu diário, “disse saber da trama de um golpe e da outorga de uma Constituição de caráter fascista. Isso levaria o país à ruína; e, acima de tudo, chamaria a antipatia dos Estados Unidos contra nós”. Declarou-se pronto a retirar sua candidatura e trabalhar no sentido de que Armando Sales fizesse o mesmo. Trabalharia em seguida por um candidato único, o qual, insinuou, deveria ser um general. Dutra repeliu a idéia.

No dia seguinte, o texto da Constituição a ser outorgada foi examinado na casa de Francisco Campos por Dutra, Góis Monteiro e Aristides Guilhem. Os homens fortes da hierarquia militar concordaram com o teor da Carta, introduzindo pequenas modificações nos dispositivos atinentes às forças armadas.

Em 9 de novembro, foi lido na Câmara e no Senado e distribuído nos quartéis, impresso em volantes, um manifesto de Armando Sales dirigido “aos chefes militares do Brasil”. O documento exprimia “as inquietações dos que sentem que outros graves perigos, além do comunismo, conspiram contra o Brasil. Se alguma força poderosa não intervier a tempo... um golpe terrível sacudirá a nação, abalando os seus fundamentos até às últimas camadas e mutilando cruelmente as suas feições”. E concluía em tom patético: “A nação está voltada para os seus chefes militares; suspensa, espera o golpe que mata ou a palavra que salva.”

O resultado da derradeira tentativa do candidato paulista foi a antecipação do golpe, decidida imediatamente por Vargas, Dutra e Góis Monteiro. O relato é do ministro da Guerra: “Ordenei, pela madrugada [de 10 de novembro], prontidão para todas as forças do Rio, Minas e São Paulo. Visitei algumas unidades sediadas na cidade. Desde o alvorecer, a Câmara e o Senado foram ocupados por forças da Polícia Militar... O general Pompeu Cavalcanti enviou-me uma carta em que expõe seu ponto de vista contrário ao movimento. Mandei prendê-lo e o destituí do comando do Distrito de Artilharia de Costa... Fora esse pequeno incidente, tudo se processou normalmente.”

A nova Constituição foi promulgada no mesmo dia 10, em reunião do ministério. Odilon Braga, ministro da Agricultura, recusou-se a subscrevê-la e pediu demissão. É ainda de Dutra, em seu diário, o comentário: “Foi assim proclamado o Estado Novo, sem agitação, sem tiros, sem tropas nas ruas, sem prisões, sem nenhuma tentativa de reação. Com igual tranqüilidade o movimento foi recebido em todos os estados.” Além do Congresso Nacional, foram fechadas as assembléias estaduais e as câmaras de vereadores.

À tarde, os vespertinos publicaram uma proclamação de Dutra ao Exército: o choque das “paixões partidárias”, os “conflitos ideológicos”, a defesa de “interesses pessoais e de agrupamento” podiam ter curso, mas a corporação militar deveria permanecer à margem de tudo isso, resistindo à “contaminação”. “Não lhe cabe, ao Exército, influir nos destinos políticos, de que os políticos se incumbem”, mas “salvaguardar os interesses da pátria”, permanecendo as forças armadas como “guardiãs da ordem interna, atentas e vigilantes, isentas de paixões e ódios, prontas para atender ao chamado dos chefes”. À noite, Vargas falou à nação condenando a “democracia de partidos”, que, “nos períodos de crise, como o que atravessamos,... subverte a hierarquia, ameaça a unidade pátria e põe em perigo a existência da nação”, e pregando ainda o restabelecimento “do prestígio do governo central”.

 

O golpe integralista

A corporação militar recebeu tranqüilamente a nova situação. Cinco generais, entre os quais João Guedes da Fontoura, Pantaleão Pessoa e Pompeu Cavalcanti, protestaram contra a ruptura da ordem constitucional de 1934 e foram transferidos para a reserva com base no artigo 177 da nova Carta, que dava a Vargas um prazo de 60 dias para aposentar funcionários civis ou militares, “no interesse do serviço público ou por conveniência do regime”.

No dia 2 de dezembro, esgotadas as gestões que vinham sendo feitas por Góis Monteiro e Newton Cavalcanti junto a Dutra no sentido de evitar que a dissolução iminente dos partidos políticos atingisse igualmente a AIB, Cavalcanti escreveu ao ministro da Guerra protestando contra a medida e pedindo demissão do comando da 1ª Brigada de Infantaria. A dissolução dos partidos foi decretada por Vargas no dia seguinte e o general Newton Cavalcanti recebeu punição disciplinar.

A implantação do Estado Novo implicou mudanças no Exército, sob a direção de Dutra e Góis Monteiro, que nos meses seguintes depuraram as fileiras dos descontentes, estruturando, como escreveu Edgar Carone, “toda uma nova composição nos quadros de comando; mais ainda, muitos postos civis ou da polícia [foram] preenchidos por militares”. Mas a consolidação do regime passaria ainda por um episódio de contornos até hoje mal definidos, a fracassada tentativa integralista de golpe contra Vargas, em maio de 1938, e a conseqüente marginalização dos camisas-verdes”.

O novo regime — que segundo o jornal integralista A Ação, de São Paulo, nascera “prestigiado pelo Exército, pela Marinha, pela AIB” — não se limitou a proibir a organização integralista. Desencadeou ampla perseguição policial contra os aliados da véspera, dissolvendo seus núcleos, proibindo sua propaganda e fechando seus jornais. A maior parte dos integralistas desconhecia os contatos de seu chefe com Getúlio, assim como sua carta ao ditador queixando-se do descumprimento das promessas feitas antes do golpe. Não foram poucos os que, tendo em vista os rumos que tomava a repressão à extinta AIB, passaram a conspirar contra o regime, estimulados por liberais inimigos de Vargas, como o coronel Euclides Figueiredo, um dos chefes da Revolução Constitucionalista de 1932.

No dia 11 de março de 1938, houve uma tentativa de golpe chefiada pelo médico Belmiro Valverde no então Distrito Federal e no estado do Rio. Centenas de integralistas foram presos em vários estados. Segundo Edgar Carone, “[foi] extensa e profunda a reação governamental contra o primeiro golpe integralista, mas [existiam] muitos membros do governo simpáticos ao Sigma, como Filinto Müller, Eurico Dutra, Góis Monteiro”. O fracasso da primeira tentativa não dissuadiu os camisas-verdes, que prepararam novo golpe, dessa vez com o apoio mais ativo de liberais oposicionistas, como Flores da Cunha, exilado no Uruguai, Otávio Mangabeira, ex-ministro de Washington Luís, Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de S. Paulo, o general José Maria de Castro Júnior e o tenente Severo Fournier.

O plano abrangia ataques ao palácio Guanabara, residência de Vargas, às casas de Dutra e de outros generais, a repartições públicas e a estações de rádio a partir das primeiras horas do dia 11 de maio, mas fracassou na maior parte. O apartamento de Góis Monteiro chegou a ser cercado e alvejado, mas só por 15 minutos. Havia um plano minucioso para matar Dutra, mas os integralistas destacados para a missão viram o ministro da Guerra sair de sua residência (quando soube que o palácio Guanabara estava sofrendo assédio) e, à espera do chefe do grupo, nada fizeram. O ataque ao Ministério da Marinha foi vitorioso no primeiro momento, mas os revoltosos se renderam na manhã seguinte.

Envolto em mistério permanece o ataque ao palácio presidencial, que Severo Fournier empreendeu à frente de algumas dezenas de homens, sem entretanto chegar a invadir o prédio para assassinar Vargas mesmo tendo condições para fazê-lo. Enquanto Vargas e um punhado de parentes e auxiliares se defendiam com pistolas de pequeno calibre, as autoridades policiais e militares, solicitadas desde logo por sua filha Alzira a socorrê-lo, não conseguiram reunir efetivos suficientes, na cidade que dispunha da maior concentração de tropas do país. O ataque durou horas e só cessou quando Severo Fournier, por razões até hoje não esclarecidas, resolveu abandonar a empreitada e fugir. Dutra chegou a participar da refrega. Ao sair de sua casa, não rumou para o Ministério da Guerra nem se comunicou com os comandantes de tropas: foi para o forte do Leme, a algumas centenas de metros, reuniu alguns soldados num caminhão para o Guanabara. Ao chegar, colhido em meio ao fogo cruzado, foi ferido de raspão na orelha e resolveu ir para o gabinete do chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, e de lá para o Ministério da Guerra. Alzira Vargas do Amaral Peixoto deixou no ar significativas interrogações, quando escreveu: “Não fiquei sabendo como nem por que o general Eurico Gaspar Dutra foi o único membro do governo que conseguiu atravessar a trincheira integralista. Não pude apurar também o que aconteceu depois que se retirou com um arranhão na orelha, novamente transpondo o cerco do inimigo. Teria ido buscar reforços que não chegaram? Libertar o chefe do Estado-Maior do Exército? Socorrer o seu chefe de gabinete? Ou, como medida de segurança, teria ido inspecionar as tropas sob seu comando?”

O fracasso do golpe deu a Getúlio a oportunidade de se livrar dos integralistas mais incômodos, atingindo ao mesmo tempo expoentes            da oposição liberal, que foram deportados — como Armando Sales, Júlio de Mesquita Filho e Otávio Mangabeira —, e permitiu-lhe também fortalecer o aparato jurídico-repressivo à disposição do governo. Em 16 de maio, foram promulgadas as leis constitucionais números 1 e 2. A primeira estabelecia a pena de morte para os atos de subversão e a segunda recolocava em vigor, prorrogando-lhe indefinidamente o prazo, o artigo 177 da Constituição.

Enquanto a polícia perseguia a arraia-miúda integralista, desenrolava-se uma farsa em relação aos chefes, notadamente Plínio Salgado, dado como “desaparecido” mas morando em endereço conhecido das autoridades, em São Paulo, desde março. Ao passo que Dutra e Góis Monteiro mostravam agora ânimo punitivo, Filinto Müller e Vargas continuavam mantendo relações diretas ou indiretas com Plínio, Gustavo Barroso e outros próceres do movimento desbaratado. Só depois que Dutra pediu a Vargas providências, e este acionou o interventor em São Paulo Ademar de Barros, foi que Plínio Salgado e José Loureiro Júnior, seu genro, além de Miguel Reale e outros dirigentes, foram presos. Isto só ocorreria, porém, em janeiro de 1939, e Plínio passou apenas três dias na prisão.

Em fins de junho de 1938, Osvaldo Aranha, que assumira a pasta das Relações Exteriores em março anterior, pediu demissão do cargo após um atrito com Dutra. O incidente começou quando seu irmão, o capitão Manuel Aranha, foi reformado do Exército por ter ajudado o tenente Severo Fournier a se refugiar na embaixada da Itália. Dutra também pediu demissão em 6 de julho de 1938, mas Vargas rejeitou ambos os pedidos.

 

O reaparelhamento do Exército

Logo depois da instauração do Estado Novo, o governo brasileiro apressou-se em desmentir qualquer vinculação com o Eixo, constituído pela Alemanha e a Itália (o Japão passaria a integrá-lo em 1940). “Ainda mais importante que o desmentido”, escreveu Gérson Moura, “foi a designação de Osvaldo Aranha, até então embaixador em Washington e considerado amigo dos Estados Unidos, para o posto de ministro das Relações Exteriores do Brasil. Com isso, Vargas não apenas agradava o governo Roosevelt, mas também reequilibrava sua equipe ministerial, num momento em que os militares adquiriam um peso político excepcional. Tinham grande influência no governo o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e o chefe do Estado-Maior do Exército, Góis Monteiro, ambos tidos como ‘pró-alemães”’.

As posições germanófilas de Dutra e Góis Monteiro foram apontadas por historiadores e personalidades de inclinação política diversa, como Edgar Carone, Hélio Silva, Afonso Arinos de Melo Franco e Osvaldo Cordeiro de Farias. Dutra e Góis Monteiro eram admiradores do Exército alemão e simpáticos ao regime de Adolf Hitler. Vargas, mais pragmático e voltado para a realidade brasileira, procurava tirar partido da disputa entre o regime democrático de Franklin Roosevelt e o regime nazista — no caso, disputa pela hegemonia nas relações internacionais com os mais importantes países sul-americanos. Os três coincidiam, com ênfases diferentes, na vontade de rearmar o Exército brasileiro, em estado calamitoso de despreparo naquele ano de 1938, marcado por uma situação internacional em franca deterioração e pelas sucessivas crises européias.

A produção nacional de armamento, munição e equipamento militar era mínima. Por falta de divisas, seria quase impossível importar esse material dos Estados Unidos. Já a Alemanha praticava com o Brasil o sistema dos marcos de compensação. Em termos bastante simplificados, esse sistema permitia a utilização de produtos de exportação brasileiros para a compra de produtos alemães, através de caixas de compensação criadas em cada país com suas respectivas moedas.

Em março de 1938, repetindo de forma muito ampliada o que se fizera um ano antes, o governo brasileiro assinou com a empresa Krupp, da cidade alemã de Essen, um grande contrato de fornecimento de material de artilharia, a ser pago em libras esterlinas e em marcos de compensação. No final de fevereiro, Dutra distribuíra comunicação interna indicando ao Exército a conveniência de preferir os artigos de procedência nacional. Posteriormente, um boletim da Diretoria de Material Bélico do Exército recomendara: “Desde que a indústria se for mostrando capaz, deve o Exército reduzir as atividades de seus estabelecimentos ao mínimo.” Essa política seria estimulada pelas autoridades militares norte-americanas a partir do segundo semestre de 1939. Mas, até que pudesse frutificar, o armamento considerado como o mínimo indispensável tinha de ser buscado no exterior.

Desde o início de sua gestão, por outro lado, Dutra procurou reformar e ampliar as fábricas do próprio Exército. Ainda em 1937, completou a instalação da fábrica de projetis de artilharia, no bairro carioca do Andaraí, assim como a da fábrica de estojos e espoletas de artilharia, em Juiz de Fora (MG). Foram ampliadas também a fábrica de canos e sabres de Itajubá (MG) e a fábrica de pólvora Estrela, no estado do Rio de Janeiro. O problema das pólvoras de base dupla, usadas na artilharia moderna, só seria resolvido com a inauguração da nova fábrica de Piquete (SP), no início de 1941, mas já em 1937 as antigas instalações foram reformadas. Ainda em 1937, foi definitivamente instalado o Arsenal de Guerra (Arsenal General Câmara) do Rio Grande do Sul, iniciando-se as reformas do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro e da Fábrica de Realengo. Foi igualmente iniciada a construção do novo prédio do Ministério da Guerra, hoje quartel-general do I Exército, no Rio de Janeiro.

Dutra remodelou também a fábrica de viaturas militares de Curitiba e a fábrica de máscaras contra gases de Bonsucesso, no Rio. Nos anos seguintes, os estímulos a empresas privadas foram surtindo efeito, com vários projetos chegando à fase de produção a partir de 1943-1944, entre os quais os da Laminação Nacional de Metais S.A. (metralhadoras Madsen), da Companhia Brasileira de Cartuchos (munição de infantaria), da Companhia Nacional de Forjagem de Aço Brasileiro (Confab), cujo parque de usinagem foi importado dos Estados Unidos com o auxílio do Ministério da Guerra, e da D. F. Vasconcelos (binóculos e outros instrumentos óticos). Em maio de 1938, Dutra promoveu uma reforma de estrutura do Ministério da Guerra que concentrou em suas mãos plenos poderes de decisão. Ficaram inteiramente subordinados ao ministro o Conselho Superior de Guerra, o Estado-Maior, as regiões militares e outros órgãos.

Segundo Edgar Carone, “pequenas reformas em 1941 e 1943 alteram parte mínima do sentido primeiro do decreto, mas só em 1946 é que a centralização excessiva sofre mudança. Entretanto, o substrato verdadeiro do decreto de 1938 é o de dar ao ministro da Guerra poder político e decisório nas forças armadas. E isto vai se ilustrar, entre outras coisas, nas medidas profissionalizantes aplicadas a partir de 1939”.

Em 1939, o ministro da Guerra determinou que só os oficiais seriam profissionais; aos sargentos com menos dez anos de serviço naquele momento, isso passava a ser vedado. Aos demais, era permitida a permanência, escreveu Nélson Werneck Sodré, “desde que, para os sucessivos reengajamentos, satisfizessem exigências, entre elas as dos cursos de acesso; aos de menos de dez anos de serviço, findo o reengajamento, deveria ser dada baixa, sem exceção”.

As medidas de modernização do Exército haviam começado em agosto de 1937, com a aprovação do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) e, no mês seguinte, do Regulamento da Inspetoria Geral do Ensino do Exército. As medidas relativas ao ensino militar prosseguiram em 1938, com o início da construção da Escola Militar de Resende (RJ), atual Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), que começou a funcionar em 1944, quando foi fechada a Escola Militar do Realengo, e com o início da construção das novas instalações da Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Engenharia (IME).

Em 1939, Dutra adotou a política de fechar os colégios militares que funcionavam em diversas cidades do país para substituí-los por escolas preparatórias. Os candidatos, antes de serem inscritos para o concurso de admissão, deveriam ter suas vidas — e as de seus pais — minuciosamente examinadas. “Era proibida”, segundo Nélson Werneck Sodré, “a inscrição de pessoas de cor, negros ou mulatos; de filhos de estrangeiros; de filhos de pais que exercessem atividades humildes, artesanais ou proletárias; de candidatos pertencentes a famílias cuja orientação política inspirasse suspeitas; de judeus; de filhos de casais desquitados, desajustados ou cuja conduta, particularmente do membro feminino, discrepasse das normas morais; de não-católicos.” Essas eram as instruções sigilosas, comunicadas aos responsáveis pela seleção, que era controlada diretamente pelo gabinete do ministro. Em dezembro de 1940, numa conferência sobre o Exército em dez anos de governo de Vargas, Dutra afirmou publicamente: “Condições severas regulam o recrutamento de candidatos ao oficialato. Além das qualidades morais e intelectuais, são exigidas também outras de ordem física, que selecionem tipos eugenicamente fortes e sadios... Para admissão nas escolas e cursos de formação de oficiais... é mister que o candidato prove que as condições de ambiente social e doméstico, constituído pela nacionalidade de seus progenitores, não colidem com as obrigações e deveres impostos aos militares nas garantias da ordem interna e da defesa externa do Brasil.” A política de extinção dos colégios militares seria entretanto posteriormente abandonada.

Em sua longa permanência no Ministério da Guerra — que coincidiu com a preparação e a vigência do Estado Novo, do qual foi o “condestável”, como se passou a dizer em 1945 —, Dutra aprovou ainda diversas leis básicas, como o Estatuto dos Militares, a nova Lei do Serviço Militar, a Lei de Organização do Exército e a Lei do Ensino Militar. Criou novas unidades e novos serviços e construiu dezenas de quartéis, sete hospitais militares, vilas militares e vilas operárias, depósitos, fábricas, estabelecimentos dos serviços de remonta e veterinária, e estradas de ferro e de rodagem (em ambos os casos, apenas nos ou entre os estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso).

 

Entre Alemanha e Estados Unidos

A solução do verdadeiro problema do reequipamento militar brasileiro transcendia entretanto todas essas medidas e dependia de fornecimentos estrangeiros em grande escala. Ainda em abril de 1938, o governo brasileiro fez o primeiro pagamento da parcela em libras esterlinas do contrato com a Krupp.

Por outro lado, ao longo de 1938, a convicção de que haveria guerra foi se robustecendo na Europa. O governo norte-americano estava convencido de que o conflito não seria apenas europeu e que, conseqüentemente, era preciso preparar-se em todos os planos para o confronto, inclusive mediante o estabelecimento do pleno controle estratégico da América Latina, o que implicava a eliminação da influência alemã.

No Brasil, as relações diplomáticas com a Alemanha foram perturbadas pelas conseqüências das medidas nacionalistas adotadas por Vargas contra os núcleos de colonização alemã do Sul, especialmente a repressão às organizações do Partido Nazista e os decretos de nacionalização das escolas, muitas delas alemãs. Em setembro de 1938, o embaixador da Alemanha no Brasil, Karl Ritter, foi declarado persona non grata. As relações diplomáticas entre os dois países só seriam normalizadas em junho de 1939. Nesse ínterim, as relações comerciais não foram afetadas.

Em fevereiro de 1939, Osvaldo Aranha seguiu para os Estados Unidos com uma comitiva, a convite do presidente Roosevelt, que o recebeu e pediu-lhe para transmitir a Vargas a certeza de que o Brasil poderia contar com os Estados Unidos. As negociações da Missão Aranha com as autoridades norte-americanas se prolongaram até março, quando foram assinados vários acordos, com escassos resultados econômico-financeiros. As conseqüências da missão foram sobretudo políticas, segundo Gérson Moura: “Se houve um resultado positivo imediato, este foi o início de um processo de colaboração militar, que se consubstanciou nas visitas do general George Marshall ao Brasil, em maio de 1939, e do general Góis Monteiro aos Estados Unidos, em junho do mesmo ano. O primeiro considerou sua visita um êxito completo, enquanto o segundo foi alvo das maiores atenções das autoridades norte-americanas.”

Foi também em junho de 1939 que se realizou uma reunião do Conselho de Segurança Nacional para examinar a perspectiva iminente de guerra na Europa. A determinação da neutralidade brasileira nessa reunião foi decidida por unanimidade — de fato, o Brasil decretaria sua neutralidade em 4 de setembro, logo após a eclosão do conflito, adotando uma posição coincidente com a dos Estados Unidos. “As preferências políticas manifestaram-se, porém, no momento de decidir onde comprar armas”, escreveu Gérson Moura. “Vargas opinou pelo abandono dos países europeus enquanto vendedores. O general Francisco José Pinto, chefe interino do Estado-Maior, optava por comprar nos Estados Unidos, enquanto o general Dutra preferia a Alemanha. O ministro da Marinha, Aristides Guilhem, não queria deixar de comprar na Inglaterra. Procedeu-se à votação e foi majoritária a proposta de continuar comprando nos países europeus.”

Em sua viagem aos Estados Unidos, Góis Monteiro ficou entusiasmado com as possibilidades de melhorar o potencial militar brasileiro e escreveu a Getúlio: “Não teremos jamais outra oportunidade como a que se nos depara agora”, manifestando ao mesmo tempo seu temor de que a Argentina fosse eleita o grande parceiro militar dos Estados Unidos na América Latina. De volta ao Brasil, escreveu ao general Marshall afirmando a disposição brasileira de colaborar com os EUA em caso de guerra, mas reiterando que o país precisava se armar, e que os americanos deviam oferecer condições mais vantajosas que as oferecidas pelos alemães. Afirmou também que Dutra autorizara a ida de oficiais brasileiros aos EUA para realizarem estágios e cursos. Em outubro, Marshall respondeu: “Pela lei existente, temos autorização para vender a um país amigo qualquer material excedente e não mais necessário para fins militares. Lamento que esse material seja limitado em quantidade e qualidade, devido às nossas deficiências em material de guerra.”

As negociações com o governo norte-americano envolviam também o financiamento da implantação da grande siderurgia no Brasil, já em 1938 considerada por Vargas como “o problema capital da nossa expansão econômica”. Nesse setor, tanto quanto no do reequipamento militar, as negociações chegaram a 1940 emperradas. No início desse ano, fracassaram as conversações para a implantação da siderurgia mediante a associação ao capital privado estrangeiro, e o governo brasileiro se decidiu pela constituição de uma companhia estatal, passando a pleitear a colaboração de agências governamentais norte-americanas no financiamento do projeto. Em fins de maio, o governo norte-americano se dispôs a ajudar, mas de forma relutante.

Ao mesmo tempo, as promessas norte-americanas de fornecer armas eram vistas pelas forças armadas brasileiras com ceticismo. A estratégia global dos Estados Unidos não previa, na verdade, a contribuição dos países do continente através da participação no conflito propriamente dito com a Alemanha, que viria cedo ou tarde, mas sim através do suprimento de matérias-primas e da manutenção da ordem em cada país, de modo a assegurar a coesão do sistema como um todo. Foi nesse contexto — marcado ainda pelos problemas decorrentes do bloqueio comercial marítimo imposto pela Inglaterra à Alemanha em novembro de 1939, e que vinha afetando a entrega do armamento encomendado à Krupp — que Getúlio Vargas pronunciou o famoso discurso de 11 de junho de 1940 a bordo do encouraçado Minas Gerais, para uma platéia constituída exclusivamente pela cúpula da hierarquia militar.

“Violento e sibilinamente pró-Eixo”, segundo Edgar Carone, o discurso mereceu análise diferente por parte de Gérson Moura: “Se, como sabemos, Vargas já tinha feito chegar ao governo americano a notícia de que algumas empresas alemãs estavam dispostas a implantar a siderurgia no Brasil, o discurso assume o significado de um último aviso. O Brasil era pan-americanista em princípio, mas havia problema de solução urgente. O governo estava disposto a implementar a industrialização (siderurgia) e a reaparelhar as forças armadas. Para isso se valeria de todos os recursos disponíveis, inclusive mirar-se na organização política dos ‘povos vigorosos’, ou seja, a Alemanha.”

O discurso provocou acesa polêmica, mantida em surdina devido à censura e ao controle policial exercido sobre as forças políticas. Ainda assim, ministros como Osvaldo Aranha e Artur de Sousa Costa, da Fazenda, manifestaram sua contrariedade, o mesmo fazendo alguns oficiais, como o general Manuel Rabelo, os capitães Juraci Magalhães e Rui Almeida, e o comandante Átila Soares. Na Alemanha, o pronunciamento foi saudado como “clara indicação de afastamento da política norte-americana”. Nos Estados Unidos, foi contraposto ao discurso que Roosevelt fizera na véspera — no momento em que a Itália declarava guerra à França —, por sua aparente adesão ao fascismo, em oposição à liberal-democracia.

No fim do mês, Vargas discursou novamente, reafirmando os pontos principais do pronunciamento anterior, cujo eixo fundamental, segundo Gérson Moura, não era o que lhe atribuíra, e sim a revelação de que “a colaboração pretendida pelos EUA tinha um preço e sua não-aceitação implicaria a manutenção de uma neutralidade rígida”. Roosevelt reagiu com moderação e discretamente começou a tomar providências. “Quando amainou a polêmica gerada pelos discursos”, prossegue Gérson Moura, “retomaram-se as negociações sobre a siderurgia (julho), agora em termos de propriedade e controle estatal, mediante financiamento do Eximbank [Export and Import Bank] e tecnologia de empresas privadas dos EUA. Em setembro assinaram-se os acordos de financiamento e nos dois anos seguintes o governo de Roosevelt facilitou a produção e o transporte do equipamento necessário à instalação da planta siderúrgica de Volta Redonda.”

Ainda em 1940, Dutra obteve um crédito especial para encomendar material de artilharia de costa nos Estados Unidos. Suas simpatias pelo Eixo, que ia acumulando vitórias guerreiras na Europa, e as oscilações de Góis Monteiro entre os dois pólos não os impediam de procurar material bélico onde fosse possível obtê-lo. Como observou Gérson Moura, o Exército era um elemento fundamental da luta política que então se travava no Brasil, mas as inclinações ou simpatias eventuais de oficiais e de sua cúpula pelo Eixo ou pelos Estados Unidos não tinham importância decisiva. O que contava era o esforço do Exército em se afirmar como corporação e obter seu fortalecimento no interior do Estado.

O rompimento da eqüidistância ocorreu em função da intermediação norte-americana no atrito entre os governos brasileiro e britânico, causado pelo bloqueio marítimo à Alemanha. O Brasil encomendara à Krupp um total de 1.080 canhões de diversos tipos, para serem entregues ao longo de três anos. Em junho de 1940, já havia desembolsado seis prestações, no valor de quase um milhão e seiscentas mil libras esterlinas, e recebera apenas algumas dezenas de canhões, numa primeira remessa. As remessas seguintes deveriam vir pelos navios Almirante Alexandrino, Siqueira Campos e Bajé, mas todos tiveram que enfrentar dificuldades crescentes: o primeiro foi ameaçado de retenção pelos ingleses, o segundo chegou a ser apresado no Atlântico, depois de passar o estreito de Gibraltar, sendo obrigado a retornar a Lisboa, onde ficou retido, e o terceiro não obteve das autoridades britânicas permissão para zarpar. Em dezembro, Vargas convocou o ministério para discutir medidas de represália contra os ingleses. Correram rumores sobre a possibilidade de desapropriação de empresas britânicas no Brasil. Dutra e Góis Monteiro desencadearam uma campanha contra a Inglaterra. O ministro da Guerra propôs uma pressão contra o governo britânico que chegasse eventualmente ao rompimento das relações diplomáticas, e mais uma vez apresentou um pedido de demissão, que não foi aceito por Vargas.

Osvaldo Aranha, que defendia a insistência nas negociações, teve seu ponto de vista vitorioso, com o apoio de Getúlio, mas o problema só foi definitivamente resolvido em meados de 1941, através da interferência do governo norte-americano junto aos ingleses. A última remessa retida de armamento acabaria chegando ao Brasil no segundo semestre do mesmo ano, via Nova Iorque. Meses depois, com o rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha, a parte restante das compras deixaria de ser entregue pela Krupp. A posição de Osvaldo Aranha nesse episódio foi reforçada com a criação do Ministério da Aeronáutica, em janeiro de 1941, e com a nomeação para a pasta de um civil, Joaquim Pedro Salgado Filho, que já fora ministro do Trabalho de Vargas e se afinava com Aranha em matéria de política externa.

Em março de 1941, o presidente Roosevelt sancionou o Lend and Lease Act, lei de empréstimo e arrendamento de armas e munições, à Inglaterra e aos países vítimas de agressão. Foi esta a base legal dos acordos de fornecimento de material bélico feitos pelos Estados Unidos nos meses e anos seguintes. Em maio, o governo norte-americano assinou com o Banco do Brasil um contrato de crédito para a compra de armas no valor de 12 milhões de dólares.

Em junho, as autoridades norte-americanas passaram a sondar o governo de Vargas no sentido de obter seu consentimento para o envio de tropas do Exército e da Marinha dos Estados Unidos a Natal e, posteriormente, Recife e Fernando de Noronha. No início de julho, paralelamente às negociações de um primeiro contrato de empréstimo e arrendamento no montante de cem milhões de dólares, Roosevelt propôs a Vargas o envio de tropas brasileiras para se estabelecerem junto com os norte-americanos no Suriname (então Guiana Holandesa) e nas ilhas dos Açores e de Cabo Verde (que continuariam sob a jurisdição de Portugal). Getúlio colocou a questão para o ministério, provocando manifestações contrárias de Dutra e de Salgado Filho. Em novembro, o governo brasileiro acabaria concordando em mandar uma missão militar para o Suriname. A hipótese do envio de tropas brasileiras fora descartada pelo governo holandês no exílio, que via com preocupação a própria ida de uma missão militar brasileira, porque os relatórios desta poderiam “cair em mãos dos alemães, através de algum elemento do Ministério da Guerra do Brasil”.

Finalmente, em 24 de julho de 1941, um acordo regulando as atividades da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos de Oficiais de Estado-Maior foi assinado por Dutra e pelo chefe da missão militar norte-americana no Brasil, coronel Lehman Miller. O Brasil se comprometia a ajudar a defender as Américas, a construir bases aéreas e navais e autorizar o seu uso por outros países do continente e a organizar a defesa da costa brasileira. Os Estados Unidos, por seu turno, prometiam empregar suas tropas em defesa do Brasil e auxiliar o país com armamentos. As cláusulas do acordo foram mantidas em segredo devido à neutralidade dos dois países.

 

O alinhamento com os EUA

Mas a situação ainda não estava definida. As reuniões da Comissão Mista, que se realizavam no Ministério da Guerra sob a presidência de Góis Monteiro, prolongavam-se em discussões infrutíferas. Os norte-americanos estavam muito mais interessados em enviar tropas para o Nordeste do que em armar os brasileiros para defender a extremidade leste da região, que tinha grande importância estratégica.

A definição brasileira a favor dos Estados Unidos começou a se corporificar a partir de outubro de 1941. Vargas, compreendendo que a entrada dos Estados Unidos na guerra se aproximava, em virtude da tensão entre este país e o Japão, e que isso iria acelerar o processo brasileiro de tomada de decisões, passou a prestigiar Osvaldo Aranha e seus aliados (Salgado Filho e Vasco Leitão da Cunha, este, ministro interino da Justiça) em seus conflitos com o EME. No dia 19 de outubro, foi assinado em Washington o acordo de empréstimo e arrendamento no valor de cem milhões de dólares que vinha sendo negociado desde julho.

Os norte-americanos apresentaram a Vargas, no início de novembro, uma lista de queixas. O Departamento de Guerra mostrava-se perplexo diante do fato de não ter Dutra utilizado, até então, o crédito de 12 milhões de dólares disponível desde maio anterior. Além disso, as autoridades brasileiras tardavam em entregar ao governo norte-americano a lista das encomendas a serem atendidas pelo recente contrato de crédito de cem milhões de dólares. No dia 10 de novembro, Getúlio discursou advogando uma política de franca solidariedade continental, mas condicionando a adesão brasileira aos planos norte-americanos à estruturação de um Exército forte, capaz de exercer suas tarefas próprias.

O ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, e a subseqüente entrada dos Estados Unidos em guerra contra o Japão (dia 8), a Alemanha e a Itália (dia 11) precipitaram os acontecimentos. No próprio dia 7, Vargas convocou o ministério, que resolveu, por unanimidade, declarar a solidariedade brasileira aos Estados Unidos. Nos dias seguintes, Roosevelt solicitou a Vargas, que respondeu positivamente, permissão para enviar pessoal técnico às bases aéreas de Belém, Natal e Recife. Em lugar do “pessoal técnico”, porém, os Estados Unidos mandaram fuzileiros navais armados, o que teve repercussões negativas nos meios militares brasileiros.

Em discurso pronunciado no dia 31 de dezembro perante a oficialidade das três armas, Vargas insistiu na solidariedade brasileira aos Estados Unidos, mas também no recado ao governo norte-americano para que atendesse aos pedidos brasileiros de material bélico. A III Conferência de Chanceleres das Repúblicas Americanas, convocada para o Rio de Janeiro depois da entrada dos Estados Unidos na guerra, foi que deu margem à superação definitiva do impasse. O encontro, no qual os norte-americanos pretendiam obter um imediato e unânime rompimento das relações com o Eixo, foi aberto no dia 15 de janeiro de 1942. No dia 19, Roosevelt telegrafou a Vargas prometendo entregar o armamento desejado pelo Brasil. Osvaldo Aranha, eleito presidente da conferência, empenhou-se a fundo, juntamente com o representante norte-americano Sumner Welles, em obter a resolução unânime de rompimento com o Eixo, mas isso não foi possível devido à resistência oposta pela Argentina. Conseguiu-se apenas, para salvar a unidade continental, aprovar em 23 de janeiro uma moção que recomendava o rompimento de relações.

Dutra e Góis Monteiro opuseram sua resistência ao rompimento das relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo, argumentando que o país não estava suficientemente aparelhado, em termos militares, para assegurar a defesa de seu território. No dia seguinte, entretanto, coincidindo com o encerramento da conferência, o Brasil rompeu suas relações diplomáticas com os três países. O compromisso assumido por Roosevelt dera a Vargas o necessário respaldo para dobrar as resistências da alta cúpula militar, em cujo comportamento influíam, mais que as afinidades ideológicas internacionais, e de forma crescente, considerações de ordem interna, relativas ao futuro político do país e ao papel nele destinado à corporação militar. Uma comparação entre Vargas e Dutra indica que ambos tiveram motivações nacionalistas, mas enquanto o nacionalismo de Vargas se traduziu primordialmente na luta pela implantação da siderurgia pesada, o de Dutra estava voltado para o reforço do poder militar no país.

 

O Brasil na guerra

Tendo recebido sinal verde de Roosevelt, Vargas enviou o ministro Sousa Costa, da Fazenda, em missão aos Estados Unidos, com a tarefa principal de acelerar a entrega de material bélico norte-americano ao Brasil. Sousa Costa e sua comitiva chegaram aos Estados Unidos no princípio de fevereiro de 1942 e deram início a uma série de conversações. Em 15 e 19 de fevereiro, dois cargueiros brasileiros foram bombardeados por submarinos alemães ao largo da costa dos Estados Unidos, tornando mais premente o desenlace das negociações. Em 25 de fevereiro, mais um navio brasileiro foi afundado. Três dias depois, o governo dos EUA pediu novamente permissão a Vargas para enviar “técnicos” ao Nordeste, esclarecendo que eles viriam uniformizados, mas seu armamento permaneceria em depósitos. No dia 3 de março, finalmente, foi assinado por Sousa Costa e pelas autoridades norte-americanas novo acordo com base na Lei de Empréstimo e Arrendamento, reformando o anterior (assinado em outubro de 1941), de modo a dobrar para duzentos milhões de dólares o crédito destinado à compra de armamento: cem milhões para o Exército e a outra metade dividida em partes iguais entre a Marinha e a Aeronáutica. Pouco depois, os norte-americanos começaram a construir bases no Nordeste.

Em 23 de maio, os dois países assinaram o Convênio Político-Militar para regularizar os problemas de defesa. O acordo criava duas comissões mistas de defesa Brasil-Estados Unidos, mas só a que teve Washington por sede foi inicialmente concretizada (a comissão sediada no Rio seria criada no final do ano). Para chefiar a delegação brasileira foi designado o general Leitão de Carvalho, que recebeu ordens de Dutra para se entender apenas com o ministro das Relações Exteriores, já que a comissão nada tinha a ver com o Ministério da Guerra. Osvaldo Aranha explicou a Leitão de Carvalho que o acordo fora a fórmula encontrada por ele e pelo embaixador Jefferson Caffery para contornar as dificuldades criadas pelo EME à colaboração com os norte-americanos.

Na mesma ocasião, Góis Monteiro apareceu no gabinete de Osvaldo Aranha. “Em vez de tratar do assunto que ali nos reunira”, descreveu Leitão de Carvalho, transcrito por Hélio Silva, “engajou-se numa calorosa discussão com o ministro do Exterior, suscitada pela afirmação deste de que se estava movendo, nos meios militares, injusta oposição à política do Itamarati, oposição reconhecível em documentos saídos do próprio gabinete do ministro da Guerra. Exaltado, o ministro Aranha declarava ter recebido cópia de um boletim secreto expedido pelo general Dutra, a ele enviado de Pernambuco, de que constavam referências depreciativas à sua gestão na pasta do Exterior e, mesmo, à sua pessoa.” Serenados os ânimos, Góis Monteiro se opôs à elaboração de instruções especiais para a delegação chefiada por Leitão de Carvalho, afirmando que os termos do acordo de 23 de maio bastariam para orientá-la. Leitão de Carvalho acabaria partindo no início de agosto para os Estados Unidos, sem levar instruções específicas.

Os choques de Osvaldo Aranha com Dutra, Góis Monteiro e, sobretudo, Filinto Müller vinham se intensificando e se tornando cada vez mais abertos desde fevereiro. O ministro do Exterior condenava a repressão policial empregada contra o movimento estudantil, o qual, sob a direção da União Nacional dos Estudantes (UNE), assumira a vanguarda da luta contra o nazi-fascismo e em favor da adesão total do Brasil à causa dos Aliados (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética). Em julho de 1942, a realização, no Rio, de uma marcha pública a favor dos Aliados, a Passeata Estudantil Antitotalitária, fez explodir a primeira crise interna ostensiva no regime, tendo como resultado a demissão de Filinto Müller, Vasco Leitão da Cunha, Francisco Campos, ministro licenciado da Justiça, que deixou o cargo definitivamente, e Lourival Fontes, chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Dutra não foi pessoalmente afetado pelo remanejamento da equipe governamental, embora a extrema-direita do regime tenha perdido terreno.

Do início de junho ao final de julho, cinco navios brasileiros foram torpedeados nas proximidades do mar das Antilhas. O problema se tornou mais grave a partir de 15 de agosto, quando dois navios de cabotagem — e não mais transportando mercadorias entre Brasil e Estados Unidos, como havia sido o caso dos anteriores — foram postos a pique no litoral de Sergipe por um submarino alemão: o Baependi e o Araraquara. Na madrugada do dia seguinte foi a vez do Aníbal Benévolo, na mesma região. No dia 17, foram torpedeados no litoral da Bahia o Itagiba e o Arará. Em três dias foram mortas assim 610 pessoas (mais do que o total de perdas das tropas brasileiras na Itália, em 1944-1945), entre as quais muitas mulheres e crianças.

Em 18 de agosto, grandes manifestações ocuparam as ruas das principais cidades brasileiras. Na capital da República, o cortejo terminou no palácio Guanabara, onde discursaram Vargas e Osvaldo Aranha. Surgiu nessa ocasião a palavra de ordem de “união nacional” contra a agressão do Eixo, aproximando desde comunistas até conservadores antifascistas. No dia 22, Vargas reuniu o ministério. Diante da comprovação de atos de guerra contra a soberania brasileira, foi reconhecida a situação de beligerância entre o Brasil e as nações agressoras — Alemanha e Itália. Três dias depois, Góis Monteiro se licenciou do EME por motivo de saúde, ficando o expediente por conta de um dos subchefes. No dia 31 de agosto, como o estado de beligerância estivesse dando margem a interpretações confusas, o governo decretou o estado de guerra em todo o território nacional.

Em 12 de setembro, a Marinha brasileira, quase toda em operação no Nordeste, foi posta sob o comando do almirante norte-americano Jonas Ingram, chefe das forças navais aliadas no Atlântico Sul. No fim do mês, mais três navios mercantes brasileiros foram afundados, no litoral do Pará, e o secretário da Marinha dos Estados Unidos, Frank Knox, veio ao Brasil acertar medidas mais eficientes para a defesa do Atlântico Sul.

Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, “enquanto a sorte das armas esteve indecisa, houve esperança entre os partidários da Alemanha, sendo que alguns dos mais renitentes encontravam-se nos altos comandos militares”. Mas essa esperança recebeu golpes mortais a partir de novembro de 1942. Entre o início da retirada dos exércitos alemães na África, após a derrota de El-Alamein, no Egito, em 4 de novembro, e a capitulação do VI Exército alemão sob o comando do marechal Friedrich von Paulus, depois da batalha de Stalingrado, na URSS, em 31 de janeiro de 1943, a balança da guerra efetuou decisivo movimento em favor dos Aliados.

Em 31 de dezembro de 1942, Vargas discursou em almoço de confraternização das forças armadas, no Rio, deixando antever que o Brasil participaria da guerra na Europa: “O dever de zelar pela vida dos brasileiros obrigados a medir as responsabilidades de uma possível ação fora do continente. De qualquer modo, não deveremos cingir-nos à simples expedição de contingentes simbólicos.”

O ano de 1943 se abriu revelando uma significativa mudança da tendência da sociedade brasileira em relação aos dois campos em guerra no mundo. A declaração de guerra do Brasil à Alemanha e à Itália estimulara as forças pró-Aliados a uma ação mais incisiva, facultada ainda por sua maior aglutinação. Esse processo teve reflexos nas forças armadas, onde uma facção pró-Aliados já esboçava seu antagonismo ao grupo dominante de Dutra e Góis Monteiro desde 1941, em meio aos conflitos que antecederam a definição brasileira pelo alinhamento com os Estados Unidos. Fora ultrapassado o tempo em que o ministro da Guerra e o chefe do EME, alternando-se em solenidades e pronunciamentos, representavam o pensamento oficial incontrastado do Exército, que era, em sua aliança com Vargas, o penhor da solidez do regime.

Agora, militares como os generais Manuel Rabelo, presidente do STM, e Júlio Horta Barbosa, e o coronel Newton Estillac Leal, não escondiam suas posições, ao passo que o general Leitão de Carvalho colaborava, em Washington, com as autoridades militares norte-americanas. No dia 1º de janeiro de 1943, foi fundada no Rio a Sociedade dos Amigos da América, sob a presidência do general Manuel Rabelo e contando com a participação de personalidades de prestígio militares, como os generais Horta Barbosa e Cândido Rondon, ou civis, como os irmãos Virgílio e Afonso Arinos de Melo Franco. Também a velha Liga de Defesa Nacional, fundada em 1916 pelo poeta Olavo Bilac e pelo general Caetano de Faria, foi revitalizada por uma coalizão de liberais e comunistas.

Dutra reagiu à fundação da Sociedade dos Amigos da América. Em carta a Getúlio datada de 12 de janeiro fez carga contra o general Rabelo, que, “valendo-se das imunidades de ministro do Supremo Tribunal Militar, critica em termos desairosos a atuação de altos órgãos deste Ministério”. Rabelo acusara oficiais do Exército de serem ativamente simpáticos ao Eixo e referira-se ao perigo comunista como “espantalho e duende imaginário, preparado para distrair-nos a atenção e deixar-nos desprevenidos contra o inimigo real”. Dutra, em sua carta, classificava a situação como “bastante semelhante à que enfrentamos em 1935”.

Manuel Rabelo escreveu a Vargas no dia seguinte, acusando o ministro da Guerra de responsável pela má organização militar do país, revelada na compra de armamentos alemães às vésperas da guerra e nas escassas perspectivas de reabastecimento. Defendeu-se da acusação de ser comunista e afirmou que “o general Dutra não é o dono do Brasil, nem pode obrigar os brasileiros a pensarem pela sua cabeça. As suas simpatias pelos totalitários correm mundo como certas, mas a nação não quer acompanhá-lo nessa direção... Em suas manifestações públicas, em seus discursos, com exceção de um ou dois em que Sua Excia. foi mais explícito, o senhor general Dutra deixa sempre obscura a idéia do inimigo com que temos de lutar. Nunca se ouviu de sua boca a palavra nazismo ou fascismo”.

 

A Força Expedicionária Brasileira

Nesse início de 1943, a decisão de enviar tropas brasileiras para combater fora do território nacional ao lado dos norte-americanos já estava tomada. Embora não correspondesse aos ditames da estratégia norte-americana para a participação militar dos demais países da América no conflito, a formação de uma força expedicionária brasileira não era vista com maus olhos pelas autoridades dos Estados Unidos. De toda forma, essa articulação foi muito mais “o resultado do processo político interno (em que ressalta o peso cada vez maior do estabelecimento militar na arena das decisões) do que de necessidades do sistema de poder norte-americano”, como escreveu Gérson Moura. Cada passo foi objeto de dificultosas negociações entre a cúpula militar norte-americana e o governo brasileiro — a bem dizer, as duas alas do governo, entre as quais manobrava com a costumeira competência Getúlio Vargas.

A posição de Dutra ao longo de todo o processo foi clara: procurar obter o máximo de poder e prestígio para a corporação militar brasileira em troca do alinhamento (incontornável) com os aliados, ou, mais concretamente com os Estados Unidos. Reforçado o poder das forças armadas — agora com conotação oposta à do processo de instauração do Estado Novo —, o ministro da Guerra, situado no vértice da pirâmide hierárquica militar, iria atravessar ileso o processo de desmonte e de ajuste de contas com o regime, sem propor um deslocamento do eixo de alianças sociais e políticas, como fez Getúlio. Daí a relativa facilidade com que se apresentaria, em 1945, como candidato do establishment estado-novista à presidência da República.

Dutra insistiu no reforço das defesas do Nordeste mesmo quando a ameaça de invasão por parte do Eixo já havia sido eliminada pela completa derrota alemã na África do Norte e no front russo. Quis enviar para a Europa um corpo de exército inteiro — três divisões, e não apenas uma, como acabou acontecendo —, e quis ser seu comandante. Tentou obter dos norte-americanos que fornecessem armamento moderno para equipar, no Brasil, um número de soldados equivalente ao do corpo expedicionário, a fim de reforçar o aparato militar. Essas pretensões se chocaram quer com os interesses dos Estados Unidos, quer com a tendência democrática crescente na sociedade brasileira e com a sagacidade de Vargas. Chocaram-se, de modo geral, com a convergência desses tantos fatores adversos, e só se concretizaram parcialmente.

Entre janeiro e agosto de 1943, a Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos, sediada em Washington, discutiu a defesa do Norte e do Nordeste brasileiros, a forma de colaboração norte-americana em caso de ataque a outras regiões do país e a possibilidade do envio de tropas brasileiras para fora do continente, examinada por Dutra e pelo EME já em fins de janeiro. Em relação ao primeiro ponto, solucionado em abril, os norte-americanos sugeriram a eliminação da hipótese de invasão alemã, mas concordaram em completar o equipamento de três divisões brasileiras, imaginando que essas tropas é que seriam enviadas à Europa. Quanto às outras regiões, foi decidido que o Brasil receberia material para nove regimentos de artilharia antiaérea e dez grupos de artilharia de campanha, e que as bases aéreas do Centro e do Sul seriam ampliadas.

Em maio — mês da derrota definitiva dos alemães na África —, Dutra, Vargas e Góis Monteiro (embora ainda licenciado do EME) recepcionaram a comissão no Rio de Janeiro. Dutra, que desde o início de abril havia manifestado a Vargas sua disposição de comandar a força expedicionária, permitiu o anúncio de uma visita que faria aos Estados Unidos. Nas discussões com o presidente da comissão, general J. Garesché Ord, e com Leitão de Carvalho, ficou assentado que o Brasil enviaria um corpo de exército constituído de três divisões de infantaria (mas não uma divisão motorizada proposta por Dutra), elementos orgânicos indispensáveis (artilharia, engenharia, comunicações — transmissões, como se dizia na época —, saúde etc.) e forças aéreas correspondentes. Essa força expedicionária seria estruturada segundo os padrões e meios do Exército norte-americano. Do armamento fornecido pelos Estados Unidos — dentro do sistema de empréstimo e arrendamento —, metade seria entregue no Brasil, para facultar o treinamento da tropa, e metade no teatro de operações, onde esta teria de combater.

No dia 9 de agosto de 1943, Dutra convidou o general João Batista Mascarenhas de Morais, então comandante da 2ª RM, para comandar a primeira das divisões que comporiam o corpo expedicionário: a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE), criada na mesma data por portaria ministerial reservada, que acabaria por ser a única divisão enviada e se tornaria conhecida como Força Expedicionária Brasileira (FEB). Outros generais — entre os quais Valentim Benício, Amaro Bittencourt e Francisco Gil Castelo Branco — teriam sido sondados em vão para comandar a divisão. O general Leitão de Carvalho, ao contrário, que contava com a simpatia de Osvaldo Aranha pelo seu bom entendimento com os norte-americanos, teria proposto a Dutra sua própria indicação. Mascarenhas de Morais, general de discretíssima, para não dizer nenhuma, participação política, telegrafou a Dutra no dia seguinte, 10 de agosto, aceitando a indicação. Nessa data, Góis Monteiro reassumiu a chefia do EME.

Dutra chegou aos Estados Unidos em 15 de agosto e foi alvo de especiais atenções, inclusive por parte de Roosevelt, que o recebeu. Foi condecorado com a Legião do Mérito do governo norte-americano e, no dia 21, participou da reunião plenária da Comissão Mista de Defesa, sediada em Washington, que aprovou o plano geral de participação de tropas brasileiras na guerra. Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, foi nessa ocasião que Dutra viu derrotada sua exigência de que, “além da força expedicionária a ser enviada, o governo norte-americano se incumbisse de aparelhar, também, outras tropas do Exército, em número equivalente, que continuariam no território nacional”.

Ficou resolvido que, em princípio, a FEB se deslocaria para a Europa — mais precisamente para o teatro de guerra do Mediterrâneo — em junho e julho de 1944, e que os oficiais brasileiros que a integrariam fariam estágios de três meses na Escola de Comando e Estado-Maior de Fort Leavenworth, no estado de Kansas. Dutra permaneceu ainda um mês nos Estados Unidos. Na véspera de sua partida, declarou em Miami que já havia cem mil soldados brasileiros prontos para embarcar, o que — não obstante ter sido o voluntariado para o Exército brasileiro aberto dois meses antes — era inteiramente fantasioso.

Em outubro, a 1ª DIE (25.334 homens) foi efetivamente organizada e formalmente colocada sob o comando de Mascarenhas de Morais, cujo quartel-general passou a ter autonomia administrativa. Seus maiores problemas foram a padronização do armamento em relação ao que era utilizado pelos Aliados, a substituição dos métodos franceses de luta e a falta de rigor dos critérios de seleção do contingente, oriundo de quatro diferentes regiões militares. Havia ainda obstáculos interpostos por elementos do governo simpatizantes do Eixo e, segundo Floriano de Lima Brayner, pelo próprio chefe do EME, Góis Monteiro. Segundo Osvaldo Cordeiro de Farias, “a FEB, por exemplo, foi organizada à revelia do Estado-Maior do Exército, isto é, à revelia de Góis. O Dutra precisou criar um grupo especial para organizar a FEB, diante da indiferença do Estado-Maior”.

Em dezembro de 1943, Góis Monteiro foi substituído na chefia do EME pelo general Maurício Cardoso (em janeiro seguinte, Góis seria nomeado delegado do Brasil no Comitê Consultivo de Emergência para a Defesa Política do Continente, com sede em Montevidéu, tomando posse em março). Ainda em janeiro de 1944, Dutra autorizou a abertura do voluntariado especificamente para a FEB.

O 1º Escalão da FEB, comandado pelo general Zenóbio da Costa, embarcou para a Itália no dia 30 de junho de 1944. Depois de marchas e contramarchas — suas divergências com Dutra quase o impediram de embarcar — Mascarenhas de Morais embarcou junto com esse 1º Escalão. Os primeiros contingentes brasileiros desembarcaram em Nápoles no dia 16 de julho e entraram em combate dois meses depois.

Os 2º e 3º escalões da FEB embarcaram para a Itália em 22 de setembro. Na mesma data, Dutra partiu para a Europa de avião, chegando a Nápoles dois dias depois, na companhia do general Wooten, comandante das forças aéreas americanas no Atlântico Sul, baseadas em Natal. Depois de ter visitado o front, Dutra viajou para Londres, a convite do governo britânico. Retornando à Itália, inspecionou em Pisa os 2º e 3º escalões, que haviam chegado à península em 6 de outubro, e fez nova viagem ao front, onde passou três dias. Quando voltou ao Brasil, na segunda quinzena de outubro, tomou conhecimento de que, por determinação de Vargas, haviam sido suspensas as providências para a constituição das 2ª e 3ª divisões que deveriam compor a FEB. Segundo Cordeiro de Farias, Dutra, que já estava pensando na presidência da República, ficou assim privado de um cargo — comandante-geral de um corpo de exército expedicionário — que lhe daria muito prestígio político.

Entre 24 de novembro e 12 de dezembro de 1944, a FEB sofreu repetidas e pesadas derrotas tentando conquistar Monte Castelo. Houve nova pressão do Ministério da Guerra contra Mascarenhas de Morais, que, no início de 1945, decidiu viajar para o Rio a fim de se reunir com Getúlio e Dutra. A alta oficialidade da FEB pediu-lhe, porém, que desistisse. Foi enviado o coronel Lima Brayner, com duas cartas de Mascarenhas de Morais — uma para Vargas e outra para Dutra — solicitando que o escalão seguinte, de cerca de cinco mil homens, como os demais (o 4º Escalão chegara a Nápoles no início de dezembro), fosse o último a ser enviado à Itália, como de fato aconteceu.

No Brasil, Lima Brayner encontrou um ambiente conturbado pelo desgaste do Estado Novo e o pessimismo em relação à atuação da FEB. Segundo ele, Vargas recebia informações deformadas da frente de batalha, como parte de uma articulação voltada para destituir Mascarenhas de Morais do comando da FEB. De volta à Itália no fim de janeiro, Lima Brayner transmitiu a confiança de Vargas nos chefes da FEB.

A tropa brasileira conseguiu várias vitórias expressivas a partir da conquista de Monte Castelo. Em 2 de maio de 1945, ao cessarem as hostilidades na Itália com a capitulação do último corpo de exército germânico, a FEB encerrou suas atividades. A guerra terminou na Europa seis dias depois, com a rendição incondicional da Alemanha. Em 6 de junho, para que não cessassem os fornecimentos norte-americanos de armamento, o Brasil declarou guerra ao Japão, que assinaria sua rendição incondicional em 14 de agosto, após a destruição das cidades de Hiroshima e Nagasaki por bombas atômicas norte-americanas.

Mascarenhas de Morais chegou a Natal no dia 8 de julho. Pouco depois, foi designado para representar o governo brasileiro na posse do novo presidente do Peru, José Luis Bustamante y Rivero. Segundo o coronel Lima Brayner, essa medida estava ligada a uma articulação que visava à dissolução imediata da FEB, com a desmobilização de seus integrantes e o desmembramento de seu estado-maior, para anular o impacto da chegada dos combatentes sobre a situação política do país, marcada pelo crescimento das forças democráticas de oposição ao Estado Novo. Com efeito, o ministro da Guerra determinou, antes da chegada do 1º Escalão, que as unidades da FEB fossem subordinadas à 1ª RM para a imediata realocação de seu pessoal nas atividades que exerciam antes da guerra.

O 1º Escalão da FEB regressou ao Brasil em julho de 1945, desembarcando no Rio de Janeiro no dia 18. Os “pracinhas” tiveram apoteótica acolhida. Mais que a todos, porém, a multidão reunida na avenida Rio Branco ovacionou Getúlio Vargas, cujo carro fechava o cortejo.

 

O declínio do Estado Novo

A participação do Brasil na guerra ao lado dos Aliados, contra as tropas nazistas, acelerou poderosamente a decomposição do Estado Novo, que começara paralelamente à definição, no alvorecer de 1942, dos rumos da política externa brasileira. No início, as oposições agiam timidamente, porque o governo correspondera aos sentimentos largamente majoritários da opinião pública ao romper relações e, depois, declarar guerra à Alemanha e à Itália, e adquirira, conseqüentemente, uma imagem positiva ligada ao esforço de guerra. Além disso, a força de inércia do clima repressivo instalado havia mais de cinco anos inibia os impulsos contestatórios.

Decorreram seis meses das passeatas pela entrada do Brasil na guerra até que, no início de 1943, as forças antifascistas lançassem novas iniciativas como a fundação da Sociedade Amigos da América. Daí por diante, porém, os acontecimentos se sucederam em cadência irregular, diminuída ora pelo aumento do prestígio do governo — com a formação da FEB — ora pela incidência de espasmos repressivos, mas afetando de forma cada vez mais profunda o núcleo do poder.

Em outubro de 1943, com data de 24 (aniversário da Revolução de 1930), circulou clandestinamente o Manifesto dos mineiros, assinado por 76 personalidades desse estado, pedindo, em tom moderado mas com certeiro impacto, a redemocratização do país. Pouco depois, Dutra foi sondado por líderes oposicionistas no sentido de depor Vargas e assumir a chefia do governo. Sem aceitar, o ministro da Guerra não repeliu liminarmente seus interlocutores.

Getúlio, por seu turno, reagiu com represálias econômicas e administrativas contra os signatários do manifesto. Sua reação política não tardou. No dia 10 de novembro, discursou na solenidade de inauguração do novo prédio do Ministério da Fazenda, comemorando também o sexto aniversário da promulgação da Constituição. Em seu discurso, afirmou que “quando terminar a guerra, em ambiente próprio de paz e ordem, com as garantias máximas à liberdade de opinião, reajustaremos a estrutura política da nação, faremos de forma ampla e segura as necessárias consultas ao povo brasileiro”.

No fim de novembro, em meio a um baile dedicado às Américas, o presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Hélio Mota, bradou “Morra Getúlio! Viva a democracia!”. Foi preso no dia seguinte e os estudantes da capital paulista mobilizaram-se para libertá-lo. Não o conseguindo, promoveram semanas depois uma passeata. Reprimida a bala por ordem do chefe de polícia do Distrito Federal, Coriolano de Góis, a manifestação deixou um saldo de dois mortos e 25 feridos, entre estudantes e populares. A repressão provocou indignação geral mas, ao mesmo tempo, um derradeiro semestre de retração do movimento oposicionista aberto, coincidindo com o período de adestramento da FEB. Somente prosperaram, nesse período, as articulações de personalidades e cúpulas oposicionistas.

A segunda grande crise ostensiva do regime ocorreu em agosto de 1944, marcando o início de um processo acelerado e irreversível de decomposição do organismo da ditadura. No início do mês, Osvaldo Aranha foi reeleito vice-presidente da Sociedade Amigos da América, sempre presidida pelo general Manuel Rabelo. A solenidade de posse da diretoria foi marcada para 11 de agosto no prédio do Automóvel Clube do Brasil, no Rio, onde a entidade possuía sua sede. No dia 10, agentes policiais instruídos por Coriolano de Góis fecharam a sede da Sociedade, mas sua diretoria resolveu manter a solenidade de posse, transferindo-a para o amplo salão do Automóvel Clube.

No dia 11, com o salão repleto (era o dia da reunião semanal dos rotarianos) e na presença de Osvaldo Aranha, a polícia voltou à carga: evacuou o salão e fechou o Automóvel Clube. Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, a ação de Coriolano de Góis foi apoiada “por Dutra e o seu dispositivo militar”. Em carta a seu amigo Góis Monteiro, o ministro das Relações Exteriores afirmou tratar-se de “uma ação deliberada e premeditada, em todos os lances”, para levá-lo a deixar o governo. No dia 21, Aranha pediu demissão do cargo. “Entre os dois ministros, Dutra e Aranha”, escreveu Afonso Arinos de Melo Franco, “Vargas foi levado, pelas contingências políticas, a sacrificar o que era seu amigo de longos anos.” Osvaldo Aranha deixou o Itamarati em 24 de agosto.

Góis Monteiro, solidário com Aranha e influenciado pelo contato continuado com oficiais norte-americanos, pediu dispensa da missão em Montevidéu, e, sem receber resposta positiva de Getúlio, acabou abandonando o posto e voltando para o Rio, em fins de outubro. Voltou de trem e, segundo seu depoimento a Lourival Coutinho, “ao longo do trajeto desde a fronteira do Uruguai, foram ao meu encontro generais e oficiais superiores, que, em contatos comigo, me informavam da situação interna, desejosos de uma orientação”. Chegando à capital, confirmou suas informações de que “no Nordeste se processava, em estado adiantado, uma conjuração contra a permanência do Estado Novo e da ditadura... tendo à frente o brigadeiro Eduardo Gomes”. Agamenon Magalhães, interventor em Pernambuco, mantinha Getúlio informado dessas articulações e o advertia sobre suas possíveis conseqüências — especialmente a tendência ao lançamento de uma candidatura militar, a do próprio Eduardo Gomes, para a presidência da República, que começava a se esboçar.

“As defesas internas da ditadura”, escreveu Afonso Arinos de Melo Franco, “começavam a ruir, ao choque com as novas realidades. A mais forte destas era a transformação, que o tempo ia operando, nas posições dos comandantes mais comprometidos com a instalação do Estado Novo, a começar por Dutra e Góis. Elementos civis democratas mantinham contatos indiretos com o ministro da Guerra e o seu colega, com aquele principalmente por intermédio do futuro senador pelo Rio Grande do Norte Georgino Avelino, e com este por Juraci, Juarez [Távora] e alguns civis amigos: contatos através dos quais se iam conhecendo as disposições favoráveis dos altos comandos, no sentido da marcha ordenada e pacífica para a legalidade.”

Ao voltar da frente de batalha da FEB, na segunda quinzena de outubro de 1944, Dutra já havia compreendido que boa parte da hierarquia militar, representada pela oficialidade da FEB, tanto quanto os norte-americanos, desejava o fim do regime varguista. Assim corno a Alemanha nazista, acossada pelas tropas aliadas a oeste e a leste, o Estado Novo estava com seus dias contados.

O ministro da Guerra esteve com Góis Monteiro, que lhe transmitiu o sentimento dominante entre os militares no Sul, lhe falou da articulação em curso no Nordeste e informou ter estado com Vargas para aconselhá-lo a promover a mudança do regime. A exemplo de Góis, Dutra procurou Getúlio e, segundo suas próprias palavras, transcritas por Osvaldo Trigueiro do Vale, disse-lhe que, “como seu principal colaborador na implantação do Estado Novo e na sua manutenção, cabia-nos o dever de alertá-lo no sentido de orientar a sua política em novos rumos, ou, mais claramente, no sentido da redemocratização do Brasil. Era preciso acabar definitivamente com o regime de governo pessoal, discricionário, por maiores que pudessem ser os méritos do presidente e o vulto da obra realizada. Adiantamos, ainda, termos a certeza de que era essa, também, a opinião do Exército”. Por fim, manifestou o desejo de que Getúlio se candidatasse à presidência em eleições a serem convocadas num futuro próximo.

Vargas disse estar de inteiro acordo com o que ouvira, e que se entenderia com Marcondes Filho para que o ministro da Justiça examinasse com Dutra e Góis Monteiro o problema das eleições. Quando Marcondes Filho lhe apresentou seu esboço de ato convocatório das eleições, que seriam realizadas pelo sistema corporativo, Dutra retrucou: “Não é isso, não, dr. Marcondes, é eleição mesmo.” Nas semanas seguintes, os dois e Góis Monteiro fizeram várias reuniões, decidindo, em traços gerais, que a Constituição de 1937 deveria ser modificada a fim de permitir a convocação de eleições. Em fins de novembro, Francisco Campos sugeriu que fossem preparadas emendas à Constituição para serem submetidas a uma assembléia constituinte dotada de poderes para elaborar inclusive uma nova Carta. Getúlio encaminhou essas recomendações a Dutra, que as aprovou inteiramente. Em 31 de dezembro de 1944, Dutra afirmou num discurso que a nação ansiava “por se embriagar do ideal de liberdade e das esperanças de um mundo onde operem a lei e a justiça”, e referiu-se aos soldados brasileiros que estavam “vertendo o sangue e dando a vida, não por uma ordem material, que se alcança facilmente, mas por uma ordem íntima e de consciência que só se obtém através da segurança dos instrumentos do direito”. No dia seguinte, o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, saudou em editorial essa tomada de posição, que seria inspirada na “grande lição de Caxias”.

Na segunda quinzena de janeiro de 1945, mais um golpe foi assestado contra o regime, com a realização em São Paulo do I Congresso Brasileiro de Escritores. Sua unânime declaração de princípios, fruto de uma aliança entre liberais e comunistas, pedia a legalidade democrática, “o sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal direto e secreto” e o “pleno exercício da soberania popular”. A declaração não pôde ser publicada na imprensa devido à censura, mas esta começou a ser derrubada em 1º de fevereiro, por uma entrevista de Góis Monteiro à Folha Carioca. A entrevista, que defendia a realização das eleições prometidas por Vargas, funcionou como catalisador da pressão que vinha sendo exercida pelos donos de jornais e pelas forças oposicionistas a favor da liberdade de imprensa.

No dia seguinte, vários outros jornais, como o Diário Carioca, reproduziram a entrevista em primeira página. Outras declarações de oposicionistas pedindo eleições diretas (José Américo de Almeida, Flores da Cunha, Odilon Braga, Virgílio de Melo Franco) se sucederam. Em 16 de fevereiro, passando pelo Brasil de volta da Conferência de Yalta, na URSS, o subsecretário de Estado norte-americano Edward Sttetinius entrevistou-se com Vargas, manifestando o interesse dos Estados Unidos na democratização do Brasil e no reatamento de suas relações diplomáticas com a União Soviética (seriam de fato restabelecidas em 1º de abril seguinte, depois de um processo de reaproximação iniciado mais de um ano antes).

Enquanto Marcondes Filho, instruído por Vargas, preparava a lei eleitoral, cresciam as suspeitas de que havia um projeto continuísta de Getúlio. Nesse momento, no dia 22 de fevereiro, o Correio da Manhã publicou uma entrevista de José Américo que circulava há dias entre proprietários de jornais do Rio. José Américo abria a entrevista referindo-se à declaração de princípios dos escritores. Dizia haver três brasileiros que não poderiam ser candidatos à presidência da República — ele mesmo, Armando de Sales Oliveira e Getúlio Vargas — e acrescentava: “As forças políticas nacionais já têm um candidato... As posições estão ocupadas para a batalha política.” A entrevista liquidou a censura à imprensa. Na tarde do mesmo dia, José Américo revelou através de O Globo o nome do candidato: o major-brigadeiro Eduardo Gomes.

Vargas havia convocado uma reunião do ministério para o mesmo dia 22 de fevereiro. Na reunião, Marcondes Filho apresentou uma exposição de motivos que, subscrita por todos os ministros, foi publicada, junto com fortes críticas, no dia seguinte. A declaração preconizava a realização de eleições gerais logo após o fim da guerra e a candidatura de Vargas a um “segundo período presidencial” sob a Constituição de 1937, rejeitando a idéia de se convocar uma assembléia constituinte, já que “a Carta de 1937 proclama e defende os princípios fundamentais que qualquer outra não poderia deixar de sustentar”. Osvaldo Aranha declarou a O Globo que a exposição de motivos, “publicada nos jornais traduzida para o alemão, poderia figurar entre as páginas mais lamentáveis do Mein Kampf”.

 

A candidatura à presidência

Já havia um candidato à presidência e as eleições estavam prometidas para depois da guerra, mas os políticos oposicionistas — e mesmo governistas que se afastavam de seu chefe — temiam que Getúlio quisesse perpetuar sua permanência no poder por meio de manobras políticas e artifícios jurídicos. Alguns setores desejavam que Vargas fosse candidato — para esmagá-lo, não nas urnas, mas através de uma intervenção militar —, ou que indicasse um candidato civil. O ministro da Guerra, de toda forma, passou a ser procurado por políticos oposicionistas que lhe sugeriam derrubar Getúlio com um golpe de Estado, convocando em seguida as eleições. José Américo, Artur Bernardes e Francisco Campos foram alguns desses interlocutores de Dutra. Para além das vicissitudes do jogo do poder político parecia delinear-se, desde então, a preocupação com o potencial de apoio popular — fruto da legislação social e de uma persistente propaganda praticada pelo regime — de que Getúlio poderia lançar mão, subvertendo os termos da equação sociopolítica vigente.

Em 28 de fevereiro de 1945, dando o primeiro passo concreto em direção a uma democratização, o governo promulgou a Lei Constitucional nº 9, que ficou conhecida como Ato Adicional, prevendo a realização de eleições para a presidência da República, os governos estaduais, a Câmara dos Deputados, o Conselho Federal (que substituiria o Senado, de acordo com a Constituição de 1937) e as assembléias legislativas em data a ser marcada 90 dias depois. A lei desencadearia, em março, o processo de elaboração da nova legislação eleitoral, abrangendo não só as normas eleitorais como também a formação de partidos políticos e a estruturação da Justiça Eleitoral. Nos arraiais oposicionistas dissidentes, a lei desencadeou, imediatamente, críticas. Góis Monteiro deu uma entrevista, publicada no dia seguinte, manifestando sua decepção com o fato de a nova lei não alterar a Constituição de 1937. No dia 2 de março, Francisco Campos deu significativa entrevista, explicando que reformar a Constituição através do Ato Adicional não resolvia nada, inclusive porque a própria Carta deixara de ter “vigência constitucional”, sendo “um documento de caráter puramente histórico e não jurídico”.

Foi nesse mesmo dia que Getúlio concedeu sua primeira entrevista coletiva em muitos anos, fazendo uma defesa tímida da lei que vinha de promulgar, cujo objetivo seria apenas o de reformar parcialmente a Constituição, a fim de “abrir campo para o pleito eleitoral”. No dia 3, nomeou Agamenon Magalhães para a pasta da Justiça, voltando Marcondes Filho a ocupar apenas o Ministério do Trabalho, enquanto em Recife eram assassinados pela polícia do novo interventor, Etelvino Lins, o estudante Demócrito de Sousa Filho e o operário Manuel Elias, durante um comício da campanha de Eduardo Gomes. No dia 4, Getúlio convocou Dutra ao palácio Rio Negro, em Petrópolis (RJ), onde costumava instalar o governo para fugir ao verão carioca. Dutra lhe deu sua opinião de que o ambiente era desfavorável ao governo, enquanto a oposição crescia. Vargas autorizou-o a transmitir aos demais chefes militares a garantia de que não seria candidato nas eleições presidenciais. O candidato sairia da convenção do partido que ia ser organizado, mas seria um candidato “capaz de enfrentar o dos adversários”.

Dias depois, num de seus encontros com Dutra, José Américo lhe propôs a substituição de Vargas por uma junta militar que seria presidida por ele, Dutra, como representante da arma mais poderosa, o Exército, e integrada ainda por Eduardo Gomes, pela Aeronáutica, e Ari Parreiras, pela Marinha. Agamenon Magalhães, que era ligado a Dutra e com ele mantinha conversações diárias, informou Getúlio das articulações em curso e, juntamente com o interventor mineiro Benedito Valadares, insistiu na idéia, apresentada dias antes por João Neves da Fontoura, embaixador do Brasil em Lisboa, de lançar a candidatura do ministro da Guerra à presidência: “Ou lança a candidatura de Dutra ou será deposto esta semana.” “Espada contra espada”, a candidatura Dutra poderia angariar para o cambaleante governo o apoio de muitos militares que, de outra maneira, se ligariam à oposição ou simplesmente evitariam contrapor-se às pretensões de Eduardo Gomes.

Em 9 de março, enquanto a Ordem dos Advogados do Brasil se pronunciava contra o Ato Adicional — igualmente criticado como “mistificação” num manifesto de apoio à candidatura Eduardo Gomes assinado por 121 jornalistas de variada coloração política, da esquerda à direita —, Getúlio nomeou João Alberto Lins de Barros para substituir Coriolano de Góis na chefia de polícia do Distrito Federal. No dia seguinte, deu mais um passo no sentido de tentar controlar o processo em curso e arrebatar a bandeira da democratização das mãos dos liberais. Sem se preocupar em consultar o principal interessado, confiou a Benedito Valadares a missão de ir a São Paulo buscar apoio para a candidatura de Dutra à presidência da República. Valadares, que, este sim, já havia discutido o assunto com Dutra, pediu a Gastão Vidigal, banqueiro paulista que era diretor do Banco do Brasil, que fizesse as sondagens preliminares em São Paulo. Buscando ancorar-se no mundo político e empresarial paulista, favorável a uma prudente democratização, a candidatura do ministro da Guerra enfrentava contudo a grita oposicionista, que acenava com a perspectiva da divisão das forças armadas. Em 12 de março, logo que soube da articulação da segunda candidatura militar, o coronel Juarez Távora escreveu à Dutra uma carta, que seria publicada no Diário Carioca dias depois, alertando-o de que sua candidatura provocaria uma cisão no Exército, podendo gerar também um perigoso antagonismo entre este e a Aeronáutica. Sugeriu ainda que Dutra, ao aceitar sua candidatura, deveria se afastar imediatamente do Ministério da Guerra, o que, por seu turno, o levaria a cair nas mãos dos políticos que estavam por trás da idéia, enquanto a imagem do Exército como “fiador das garantias de liberdade e seriedade eleitorais” ficaria sob suspeita. No dia 13, em encontro de Valadares com Fernando Costa, interventor em São Paulo, foi lançada oficialmente a candidatura do ministro da Guerra. Foi somente no dia seguinte que Getúlio disse a Dutra, no palácio Rio Negro: “Mandei o Valadares levantar a sua candidatura em São Paulo; a batalha está ganha. O senhor irá à presidência da República porque eu quero.” Segundo Dutra, citado por Hélio Silva, Getúlio falou “com algum constrangimento, até mesmo com azedume”. À saída da entrevista com Vargas, Dutra encontrou-se com Góis Monteiro, que o aconselhou a não considerar como definitivo o lançamento de sua candidatura.

Com efeito, a candidatura Dutra parece ter sido vista por Getúlio como um expediente destinado a evitar sua própria deposição e ganhar tempo. Raciocínio simétrico era adotado pelos governistas que não queriam a permanência do regime e de Vargas no poder: partindo-se da premissa de que a deposição de Getúlio acabaria não acontecendo, a candidatura Dutra seria o penhor da reconstitucionalização e das mudanças no poder; sozinha, a de Eduardo Gomes não sobreviveria à oposição de Vargas. De toda forma, Vargas iria evitar qualquer entendimento sobre o assunto com seu ministro da Guerra: “Dutra”, escreveu Hélio Silva, “ficou sem saber se o presidente não queria aparecer como autor da sua candidatura... ou se não pretendia realmente apoiá-lo. A partir de março, até agosto, quando Dutra ainda se encontrava à frente do Ministério da Guerra, mantendo contatos freqüentes com Getúlio, nos despachos semanais, este nunca falou no pleito que se aproximava, ou de qualquer outra medida que estivesse tomando ou pretendesse tomar, em apoio àquela candidatura. Dutra, por sua vez, não tocava no assunto.” Segundo Vitorino Freire, citado por Osvaldo Trigueiro do Vale, Dutra enfrentaria a campanha “com um olho em Getúlio e outro no gatilho”.

A candidatura de Dutra foi apresentada oficialmente em Belo Horizonte no dia 27 de março, por Benedito Valadares. No dia 3 de abril, Dutra concedeu sua primeira entrevista à imprensa como candidato oficial. Defendeu o retorno à legalidade constitucional, através de eleições livres e diretas, medidas de proteção às classes trabalhadoras, e de reorientação econômica, a completa liberdade de opinião, o estreitamente das relações com os Estados Unidos e o recente reatamento com a União Soviética. Defendeu, em particular, a anistia para os condenados por crimes políticos, à qual Getúlio já havia aludido em sua entrevista de um mês antes, de modo simpático, mas esquivo, pois remetia a decisão ao futuro parlamento.

Sua clara definição pela anistia favoreceu a realização da Semana Pró-Anistia, instalada no Rio de Janeiro em 6 de abril. No dia seguinte, Luís Carlos Prestes enviou da cadeia um telegrama a Vargas, pedindo a decretação da medida, ainda que para tanto seu caso pessoal devesse ser deixado à margem. No dia 11, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas-corpus aos exilados Armando de Sales Oliveira, Otávio Mangabeira, Valdemar Ferreira e Paulo Nogueira Filho, permitindo seu regresso ao país. No dia 17, Dutra respondeu por carta (publicada dois dias depois) a uma consulta do comandante Átila Soares: reconhecia “o pleno direito de existência legal” do Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB), “enquanto os comunistas mantiverem, entre nós, a linha de conduta que hoje assumem, de renúncia aos processos violentos e de acatamento às autoridades constituídas”. Essa carta foi levada a Prestes, na cadeia, por Átila Soares. Em 18 de abril, finalmente, foi decretada a anistia para todos os envolvidos nos crimes políticos posteriores a 16 de julho de 1934 (data da anistia anterior), e Luís Carlos Prestes foi posto em liberdade.

Também durante o mês de abril foram constituídos, em torno da máquina governamental e do candidato oposicionista, os dois maiores partidos que iriam disputar as eleições, respectivamente o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN). Em 5 de abril, foi organizada uma comissão provisória encarregada de elaborar os estatutos do PSD. A UDN foi fundada dois dias depois, no Rio. No dia seguinte, mais de cinco mil pessoas assinaram a ata de fundação do PSD, em Belo Horizonte; em função das definições que viriam com a lei eleitoral, o partido seria estadual ou nacional. Na mesma ocasião, a candidatura Dutra foi lançada pelo novo partido.

Em 16 de abril, Eduardo Gomes concedeu sua primeira entrevista coletiva como candidato, afirmando que Vargas não tinha condições legais para presidir as eleições e que a presidência da República deveria ser entregue ao presidente do STF, já que o poder legislativo tivera seu funcionamento interrompido em 1937. Foi nessa linha que a UDN lançou, pouco depois, seu slogan “Todo o poder ao Judiciário”. No dia 23, Eduardo Gomes teve um primeiro encontro com Luís Carlos Prestes, tentando obter seu apoio. Entretanto, em sua primeira entrevista coletiva à imprensa brasileira, concedida três dias depois, o dirigente comunista disse que “dificilmente poderia haver dois candidatos tão semelhantes”, acrescentando: “Do que tenho observado, aos trabalhadores não é simpática nenhuma candidatura militar neste momento.”

Em seu tradicional discurso de 1º de maio, no estádio de futebol de São Januário, no Rio, Vargas afirmou que a candidatura de Dutra merecia a confiança da nação e que ela já reunia “a maioria das forças políticas” nacionais. Ao mesmo tempo, disse que “o povo brasileiro está politicamente amadurecido para escolher o que lhe convém... Qualquer tentativa de perturbação da ordem será reprimida severamente. Sem temer ameaças, cumprirei o compromisso de garantir a todos a livre manifestação das opiniões e o exercício do direito de voto. Manterei a ordem, realizarei as eleições e passarei o poder a quem for legitimamente eleito pelo povo”. Em 15 de maio, foi fundado o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), como o PSD, criatura de Vargas, e cuja direção anunciou o apoio à candidatura do ministro da Guerra.

Em 23 de maio, no mesmo estádio de São Januário, o PCB organizou um grande comício, durante o qual Prestes afirmou que os comunistas não tinham compromisso com ninguém, a não ser com o povo. O governo foi reverenciado por “ficar com o povo — cortar relações com o Eixo, declarar-lhe guerra, estabelecer relações com o governo soviético e finalmente abrir as prisões e revogar na prática as restrições à democracia mais sensíveis ao nosso povo”. Dois dias depois, por outro lado, políticos ligados a Getúlio criaram em Porto Alegre o primeiro comitê de um movimento de defesa da sua candidatura às eleições presidenciais.

Em 28 de maio, o governo decretou a nova Lei Eleitoral, que fixou as datas de 2 de dezembro para as eleições presidenciais e dos parlamentares federais, e de 6 de maio de 1946 para os governos estaduais e as assembléias legislativas. Além de criar a Justiça Eleitoral, a lei respaldou juridicamente o fato consumado da criação dos partidos políticos nacionais (permitindo ainda a legalização do PCB), e estabeleceu que o presidente da República e seus ministros deveriam se desincompatibilizar até três meses antes do pleito (até 2 de setembro, para a primeira eleição), caso quisessem ser candidatos.

A candidatura de Dutra — por si mesma destituída de maior impacto eleitoral — atravessou o mês de junho e a primeira quinzena de julho em estado claudicante, a despeito da solidez e da capilaridade da máquina pessedista, em processo de montagem. Além do problema da desincompatibilização — quem ocuparia o posto-chave de ministro da Guerra após a saída do candidato? —, houve nesse período uma frustrada tentativa de Vargas de afastar do cenário os dois candidatos militares, mediante a escolha de um tertius, um candidato de conciliação, e houve ainda o desabrochar do movimento “queremista” (designação derivada do mote “Queremos Getúlio”).

Para todos os efeitos, a situação se tornou mais complexa quando Luís Carlos Prestes, que chegou a ser visto como uma espécie de fiel da balança eleitoral, na qualidade de “grande eleitor”, e como tal teve seu apoio cortejado pelos dois candidatos militares — fortaleceu a perspectiva de uma permanência de Vargas no poder. Em 15 de julho, num grande comício realizado pelo PCB no estádio do Pacaembu, em São Paulo, Prestes afirmou que os comunistas queriam chegar, “através da união nacional, à verdadeira democracia, antes e acima de tudo a uma assembléia constituinte”, e que apoiavam o governo porque ele estava marchando para a democracia. Se, em 1935, haviam “empunhado armas em defesa da democracia…, agora também a defenderemos apoiando o governo em defesa da ordem e desmascarando sem vacilações os agentes da desordem, todos aqueles que pregam os golpes ‘salvadores’ ou a guerra civil, falando em democracia, mas que não passam na verdade de instrumentos da provocação fascista”. A convicção dos dirigentes comunistas era de que seria perigoso eleger um presidente da República na vigência da Carta de 1937, a qual o eleito, fosse ele Dutra ou Eduardo Gomes, ou o próprio Getúlio, poderia usar de modo ditatorial.

Apesar da incidência de todos esses fatores sobre o quadro político-eleitoral, a candidatura de Dutra não sofreu modificações decisivas. O problema da desincompatibilização foi superado por meio de um acordo entre Dutra e Góis Monteiro, que assumiria o ministério com o compromisso de garantir a realização das eleições. Dutra resolveu antecipar para o início de agosto a sua saída do ministério, a fim de evitar o prolongamento da expectativa em relação à sua substituição, que Getúlio tenderia a explorar, manipulando as ambições dos generais ministeriáveis a fim de dividi-los. Além disso, o veterano ministro da Guerra completara oito anos à frente da pasta em dezembro anterior — tomou todas as providências para reforçar suas posições no Exército, promovendo trocas de comandos e fazendo nomeações para postos-chave da administração militar.

A candidatura Dutra foi ratificada oficialmente na primeira convenção nacional do PSD, realizada na capital da República em 17 de julho de 1945, com a participação de todos os ministros e interventores nos estados. Os trabalhos foram presididos por Benedito Valadares. Uma moção de integral apoio ao chefe do governo, apresentada por Nereu Ramos, interventor em Santa Catarina, foi aprovada por unanimidade. Vargas foi eleito presidente do partido, cuja comissão diretora ficou constituída ainda por Valadares (primeiro vice-presidente) e Fernando Costa (segundo vice-presidente). No dia seguinte, desembarcou no Rio o primeiro escalão da FEB. Se Getúlio foi a personalidade mais aclamada nas ruas, Dutra também tirou do episódio ponderáveis dividendos políticos, fazendo-se presente em todos os palanques, banquetes e desfiles, e em todos os atos cívicos e festivos relacionados com o retorno dos “pracinhas”.

Em 31 de julho, quando já havia pedido formalmente demissão a Getúlio, Dutra teve publicada uma entrevista sua, concedida em São Paulo, em que afirmava sua disposição de, caso fosse eleito, governar como um civil, “aceitando toda colaboração sem indagar-lhe a origem, desde que seja sincera e honesta”. No mesmo dia foi fundado o comitê queremista do Distrito Federal. O principal orador da solenidade, Jaime Boa Vista, criador do primeiro comitê do movimento, em Porto Alegre, sugeriu que Dutra retirasse sua candidatura e passasse a apoiar a de Vargas. O queremismo havia crescido muito, e iria crescer mais ainda nas semanas seguintes, apesar das reiteradas afirmações de Getúlio de que não seria candidato.

Depois de conceder nova entrevista, mais uma vez em São Paulo, afirmando não ser candidato do Exército, mas “do povo, das verdadeiras forças da democracia”, Dutra transmitiu o cargo de ministro da Guerra a Góis Monteiro, no dia 9 de agosto. O novo ministro assegurou que o Exército garantiria eleições livres. A passagem de Dutra à condição exclusiva de candidato não se traduziu numa dinamização de sua campanha. Ao contrário: ao longo de agosto, o que cresceu foi o movimento queremista, enquanto sua campanha se mostrava esvaziada.

Já no dia 13, trabalhadores queremistas realizaram uma marcha do largo do Russel ao palácio do Catete, para pedir a Vargas que se desincompatibilizasse. Dois dias depois, o chefe de polícia do Distrito Federal, João Alberto, suspendeu a proibição de comícios queremistas até então vigente, e o primeiro deles se realizou no dia 20, no largo da Carioca, de onde saiu uma passeata até o palácio do Catete. Durante a passeata — que, a exemplo do comício, foi transmitida pelas rádios Tupi e Tamoio para todo o país — ocorreram incidentes entre queremistas e brigadeiristas. No Catete, o chefe do governo discursou para a multidão, promovendo sua auto-exaltação e sem fazer nenhuma referência ao candidato governista. À noite, enquanto se realizava um comício queremista do PTB em Belo Horizonte, Dutra se reuniu com Góis Monteiro e Agamenon Magalhães, preocupado com o esvaziamento de sua candidatura. No dia seguinte, foi homenageado pelo Exército com um banquete. Góis Monteiro, que o saudou em nome da corporação, apresentou sua candidatura como o instrumento de que se serviria o Exército para a democratização, esconjurando ao mesmo tempo o fantasma da aliança populista que Vargas sugeria poder estabelecer: “Que as sombras que neste instante não pressagiam boas coisas para nós possam desaparecer definitivamente diante da coesão das forças armadas do país, que devem apresentar-se como sustentáculo das instituições que serão fundadas e da ordem que será mantida.”

Essa manifestação de apoio militar estimulou Dutra a marcar para o dia 1º de setembro o início de sua campanha eleitoral. Em 30 de agosto, entretanto, mais um comício queremista transformou-se em passeata do largo da Carioca até o palácio presidencial, desta feita o Guanabara, e com a cobertura de uma rede nacional de emissoras de rádio. Getúlio falou à multidão: “Estou vingado. Ao homem que se aproxima do fim de suas atividades públicas e que outro desejo não tem senão o de recolher-se à tranqüilidade de seu lar, é profundamente comovedor e eloqüente este movimento a que acabo de assistir... Está traçado o caminho das urnas. Ninguém poderá detê-las... Eu quero apenas presidir a essas eleições, em que o povo brasileiro escolha livremente os seus representantes.”

No comício de abertura oficial da campanha de Dutra, em Belo Horizonte, o primeiro orador foi Benedito Valadares e o segundo foi Juscelino Kubitschek, prefeito da capital mineira. Em seu discurso, o candidato esboçou apenas algumas linhas do que poderia ser uma plataforma de governo, defendendo a continuação da obra de Vargas, elogiou a Constituição de 1937 e tentou explicar sua participação na imposição do Estado Novo, mas afirmou, também, que “o problema constitucional é o mais importante e o mais urgente de todos os nossos problemas”, prometendo, se eleito, reconhecer no parlamento “a mais plena competência constituinte. Aceitarei, desde logo, em todos os seus termos, a reforma constitucional pelo parlamento empreendida”. O dia seguinte, 2 de setembro, passou sem que Getúlio se desincompatibilizasse. Daí por diante só havia uma possibilidade de ele não deixar o governo: o cancelamento das eleições presidenciais. Entretanto, Vargas respondera de maneira inflexivelmente desencorajadora às derradeiras pressões queremistas para que se desincompatibilizasse, e em 7 de setembro reafirmou seu desejo de conduzir o país às eleições.

Isso não o impediu contudo de tentar novamente eliminar do cenário as duas candidaturas militares já postas. Em conversa com João Neves da Fontoura, concordou que a melhor solução seria passar a presidência da República a Góis Monteiro, retirando-se do cenário político e propiciando, assim, a escolha de um tertius. A idéia foi bem recebida pelo ministro da Guerra, mas não pela UDN, que temia justamente a ascensão de Góis à chefia do governo. Ainda no início de setembro, houve uma reunião no gabinete de Agamenon Magalhães, com a presença de várias personalidades governistas. João Alberto, até então um dos grandes defensores da candidatura Dutra, aderiu à avaliação de que se tratava de uma candidatura “pesada”, com a qual era difícil trabalhar eleitoralmente. Benedito Valadares foi escolhido para ir a Dutra solicitar a retirada de sua candidatura, mas acabou não indo. Na verdade, ninguém se sentiu em condições de fazer tal pedido ao general-candidato.

Dutra, que não permaneceu insciente dessas tentativas de articulação, passou então por um período de dúvida e perplexidade. Em vista da hostilidade mal disfarçada do esquema governista, cogitou de retirar sua candidatura. Procurou o conselho de Artur Bernardes, que se mostrou convencido de que a retirada de sua candidatura abriria o caminho para um golpe de Getúlio. Vários outros líderes políticos e militares instaram-no a manter-se na disputa. Em 14 de setembro, reuniu-se com Eduardo Gomes, na presença de Virgílio de Melo Franco e Otávio Mangabeira. Dois dias depois, João Alberto promoveu uma reunião de altas patentes militares para discutir a gravidade da situação, a ameaça representada pelo movimento queremista e a procura de uma solução.

No dia 20, O Globo publicou declarações de Osvaldo Aranha afirmando que Dutra participara de duas conspirações para depor Getúlio. A versão foi confirmada por Oscar Stevenson, que afirmou ter sido emissário de Dutra junto aos políticos paulistas. O general Manuel Rabelo também fez declarações nesse sentido, precisando que a primeira tentativa ocorrera em 1943 e a segunda em fevereiro de 1945, quando o golpe só não teria sido desfechado porque Vargas anunciou a Dutra que ele seria seu sucessor na presidência. Correspondessem à verdade histórica, ou apenas projetassem especulações e tendências que não chegaram a se concretizar, o fato é que tais versões aumentaram o isolamento popular do candidato, embora pudessem valer-lhe o apoio de certos setores antigetulistas da sociedade.

 

A deposição de Vargas

Em 28 de setembro, Góis Monteiro reuniu no Ministério da Guerra vários generais e comunicou-lhes que Vargas assumira com ele o compromisso de não alterar a Lei Constitucional nº 9 e não contrariar a normalidade do processo eleitoral. Um dos generais presentes perguntou ao ministro se a declaração que acabava de fazer poderia ser comunicada a seus subordinados, o que foi autorizado, e perguntou também se ele abandonaria a pasta caso o chefe do governo não cumprisse o compromisso assumido. Góis Monteiro, cujo comportamento vinha sendo ambíguo, respondeu igualmente que sim, aceitando a pressão da cúpula do Exército contra quaisquer pretensões continuístas de Getúlio e, mais especificamente, contra uma eventual colaboração do ministro da Guerra nesse sentido. Por outro lado, estreitou seus contatos com a oposição udenista. O general Cristóvão Barcelos, chefe do EME, resumiu para a imprensa o que se passara na reunião, declarando taxativamente que “nunca, em transe tão delicado e tão decisivo de nossa evolução política, os chefes militares manifestaram a união e a unanimidade que apresentam agora... Todos estão dispostos a se opor a qualquer ação dos extremismos de credo e ambição que nos levem à anarquia, no momento em que precisamos de ordem e de paz”. Exatamente oito anos depois, com um dia de diferença, uma reunião de generais dava a temperatura reinante na corporação — desfavorável a Vargas, bem ao contrário de quando se tratara de dar os passos finais em direção ao Estado Novo.

No mesmo dia em que a imprensa noticiava o resultado da reunião dos generais, 29 de setembro, o embaixador americano Adolf Berle Junior (que substituíra Jefferson Caffery em janeiro anterior) discursou em Petrópolis, numa homenagem que lhe foi oferecida pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais. Antes, em audiência com Vargas, comunicou-lhe que falaria sobre democracia numa entrevista coletiva. Esse pronunciamento, que irritou profundamente Getúlio, ficou famoso, e foi visto por ponderáveis setores da política brasileira, à época e sobretudo depois, como uma orientação norte-americana para a deposição do chefe do Estado Novo.

Em 1º de outubro, Dutra realizou um comício de sua campanha em São Paulo, vencendo a indisfarçável hostilidade do interventor Fernando Costa. Ao deixar a capital paulista, na manhã seguinte, declarou à imprensa: “O chamado queremismo já não pode, é claro, ter finalidade eleitoral. É mais um movimento afetivo do que político... Já não restam dúvidas de que teremos eleições presidenciais a 2 de dezembro.” Chegando ao Rio, o ex-ministro da Guerra retomou as articulações militares em que vinha se empenhando.

A mais importante manifestação “queremista” aconteceu no dia 3 de outubro, em meio a boatos de golpe que circulavam em toda parte. A multidão, que mais uma vez se deslocou do largo da Carioca para o palácio Guanabara, era composta de “queremistas”, adeptos da “Constituinte com Getúlio”, e de comunistas, cuja fórmula poderia ser apresentada como “Constituinte, com ou sem Getúlio”. Em seu discurso — comemorava-se na data o 15º aniversário da eclosão da Revolução de 1930 —, Getúlio foi suficientemente ambíguo para autorizar todas as suspeitas. Reafirmando solenemente, perante Deus e o povo brasileiro, não ser candidato e só desejar “presidir eleições dignas da nossa educação política, entregando o governo ao meu substituto legalmente escolhido pela nação”, confessou entretanto estar atravessando “um momento dramático da minha vida pública em que preciso falar ao povo com prudência e lealdade. A convocação de uma constituinte é um ato profundamente democrático que o povo tem o direito de exigir. Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre fermentos de desordem e revolta. E nós precisamos resolver o nosso problema político dentro da ordem e da lei. Devo dizer-vos que há forças reacionárias poderosas, ocultas umas, ostensivas outras, contrárias todas à convocação de uma constituinte. Posso afirmar-vos que, naquilo que de mim depender, o povo pode contar comigo”.

Em 10 de outubro, Getúlio deu o passo que cristalizou a determinação das forças dispostas a depô-lo, as quais ficaram apenas à espera de um pretexto: por meio de um decreto-lei, antecipou para 2 de dezembro as eleições estaduais marcadas anteriormente para maio de 1946. Além de tumultuar o pleito, a medida projetaria para o futuro governo uma situação difícil. O decreto-lei dava aos interventores um prazo para promulgarem novas constituições estaduais e para se desincompatibilizarem, a fim de serem eles mesmos candidatos aos governos estaduais.

Os udenistas denunciaram o decreto como uma evidência da trama continuísta em marcha. Para Dutra, mesmo descartada a hipótese de vitória do “queremismo”, a situação criada seria incômoda, pois iria para o governo com 20 governadores “feitos” por Vargas. Não lhe terá sido difícil optar pela deposição do chefe do Estado Novo. Sua campanha estava esvaziada, enquanto o movimento “queremista” crescia em intensidade e amplitude. Perante os demais generais, a convergência de queremistas e comunistas em torno da constituinte e da permanência de Getúlio no poder tornava o chefe do governo “culpado”: justificava-se uma ação contra ele, ao passo que a omissão poderia custar caro em termos de prestígio na corporação. Finalmente, Dutra terá feito seu cálculo: fora do poder, com os dois candidatos militares disputando a presidência, Getúlio se veria obrigado a apoiar seu nome.

Em 15 de outubro, falando a operários da Estrada de Ferro Central do Brasil, Vargas recomendou o voto no PTB. No dia 20, Dutra realizou em Porto Alegre um comício sem nenhuma vibração. Protásio Vargas, irmão de Getúlio e presidente do PSD gaúcho, tivera dificuldade em encontrar um membro do diretório estadual disposto a saudar o candidato. Da mesma maneira que no comício do dia seguinte, em Florianópolis, Dutra tratou exclusivamente dos problemas que encontraria em seu governo, deixando de abordar a conjuntura política nacional.

Foi no mesmo dia 20 que começou a circular o rumor de que Getúlio iria nomear seu irmão Benjamim Vargas para a chefia de polícia do Distrito Federal, no lugar de João Alberto. Este iria para a prefeitura do Distrito Federal, trampolim para suas altas ambições na política nacional, no lugar de Henrique Dodsworth, que substituiria Pedro Leão Veloso no Ministério das Relações Exteriores. Benjamim Vargas teria dito numa roda de amigos que já encomendara trezentos colchões e camas para a chefatura de polícia, pois assim que assumisse o cargo pretendia prender todos os generais que estavam conspirando. Virgílio de Melo Franco, sabedor do fato, teria ido ao Ministério da Guerra colocar os generais a par do boato e com eles confabular. Os chefes do Exército resolveram se manter em contato permanente e ultimaram os preparativos de um movimento conspirativo para depor Vargas.

No dia 22, sem que tenha havido convocação por parte de Góis Monteiro, vários generais se dirigiram ao gabinete do ministro da Guerra para expor sua preocupação com a marcha dos acontecimentos. Góis reconheceu a necessidade de tranqüilizar o país e garantiu que se empenharia em achar uma saída para a situação. Na mesma data, uma carta de Protásio Vargas a Getúlio insistia nas dificuldades encontradas pela candidatura de Dutra no Rio Grande do Sul. Dois dias depois, em entrevista à imprensa, Góis Monteiro chamou a UDN de “corja de aventureiros” e “profiteurs do regime” que queriam “levar o país à guerra civil”. No dia 26, enquanto se desenrolava a derradeira manifestação “queremista” no Rio de Janeiro, lançou uma proclamação ao Exército garantindo a realização das eleições.

A decisão de nomear seu irmão Benjamim para a chefia de polícia e João Alberto para a prefeitura do Distrito Federal foi tomada por Vargas no dia 25, mas não foi tornada pública nem comunicada a Góis Monteiro, inteirado dela pelo general Odílio Denis, comandante da Polícia Militar da capital da República. Na manhã do dia 29 de outubro, João Alberto encontrou-se com Góis Monteiro, que rumava para o Ministério da Guerra, e comunicou-lhe tudo.

Segundo o relato de Dutra, Góis Monteiro assim que chegou ao ministério, chamou-o com urgência e o colocou a par do que estava acontecendo. Dutra foi para o Ministério da Justiça, onde encontrou Agamenon Magalhães reunido com João Alberto. Confirmadas as decisões de Vargas, Dutra disse que elas teriam sérias conseqüências e voltou ao Ministério da Guerra, transmitindo a confirmação a Góis Monteiro. Este decidiu se exonerar do cargo e enviar a todos os comandantes de regiões militares um telegrama dando conta de seu gesto e anunciando que iria “tomar uma atitude”. Ao mesmo tempo, Góis acionou o dispositivo militar previsto para situações de tumulto no país (Diretiva nº 1).

Enquanto as tropas entravam em prontidão, muitos generais acorreram ao Ministério da Guerra. No início da tarde, João Alberto e Benjamim Vargas foram ao gabinete de Góis Monteiro para a transmissão da chefia de polícia. Góis comunicou-lhes não estar mais à frente do ministério e recusou qualquer entendimento conciliatório. Em seguida, convocou ao seu gabinete altas patentes da Marinha e da Aeronáutica, inclusive o candidato Eduardo Gomes, e deu-lhes ciência de sua exoneração, mas foi instado a manter a condição de chefe do Exército.

Por outro lado, Dutra, acompanhado do general Canrobert Pereira da Costa, dirigiu-se aos quartéis do bairro de São Cristóvão, conseguindo a adesão de seus comandantes e providenciando o deslocamento de tropas para o Ministério da Guerra e suas imediações. O general Álcio Souto, a ele ligado, assumiu o comando de duas unidades motorizadas aquarteladas onde hoje fica o estádio do Maracanã e foi cercar o palácio Guanabara. Em suas providências de caráter militar, Dutra (que já não administrava mais o Exército, mas demonstrou que ainda podia comandá-lo), contou também com o auxílio de seu enteado, o tenente-coronel José Pinheiro Ulhoa Cintra, e de outros oficiais com comando de tropa.

Getúlio, fazendo uma derradeira tentativa de conciliação, chamou ao palácio Guanabara o ministro da Guerra e Dutra (ambos tinham audiências marcadas desde a véspera com o chefe do governo). A ida de Góis Monteiro à audiência seria suspeita aos olhos dos generais que estavam no Ministério da Guerra, e ele não foi. Dutra foi, combinando antes com Góis Monteiro que, se não voltasse dentro de duas horas, o movimento deveria ser levado adiante. Agamenon Magalhães, que se fizera presente no gabinete de Góis, ficou detido até o regresso de Dutra.

Embora Getúlio tivesse podido contar com o apoio dos generais Denis e Renato Paquet (comandante da Vila Militar), que a ele permaneceram fiéis, preferiu evitar um confronto militar. Dutra lhe apresentou o quadro da situação militar, com unidades do Exército já nas ruas, algumas rumando para o palácio. O chefe do governo dispôs-se a voltar atrás da nomeação de Benjamim Vargas e a nomear para o Ministério da Guerra um general indicado por Dutra. Este retornou ao gabinete de Góis Monteiro e apresentou as propostas de Vargas, que foram rechaçadas. Estava selada a deposição do ditador.

Góis Monteiro e Dutra repeliram sugestões de alguns dos generais no sentido de punir Getúlio com a prisão ou o exílio, argumentando que, nesse caso, eles deveriam ser igualmente punidos. Tendo sido decidido que Vargas deveria apenas abandonar o palácio e retirar-se para o Rio Grande do Sul, o general Osvaldo Cordeiro de Farias foi encarregado de transmitir-lhe o ultimato militar, e partiu para o palácio Guanabara acompanhado por Agamenon Magalhães. Getúlio aceitou a imposição e, pouco depois de meia-noite, assinou sua renúncia formal.

No Ministério da Guerra, reunidas as mais altas patentes das três armas, restava decidir quem assumiria a presidência da República. Góis Monteiro desejava a investidura, mas Dutra suspeitava que, uma vez na chefia do governo, o ministro da Guerra seria tentado a assumir poderes ditatoriais e a cancelar o pleito de 2 de dezembro. Para se antecipar a qualquer manobra de Góis e evitar também a hipótese de uma junta militar, o general-candidato teve a iniciativa de fazer sua a tese udenista de “todo o poder ao Judiciário” e propôs que o presidente do STF, ministro José Linhares, fosse imediatamente empossado na presidência da República. A proposta foi aceita de pronto por Eduardo Gomes e a posse ocorreu algumas horas depois, no gabinete de Góis Monteiro, que permaneceu à frente da pasta da Guerra, mas só por algumas semanas, até se licenciar por motivo de saúde.

 

A vitória eleitoral

O presidente José Linhares formou seu ministério com adeptos do brigadeiro Eduardo Gomes, políticos hostis à candidatura de Dutra. Este, que não foi previamente consultado, como aconteceu com seu contendor, ficou particularmente irritado com o fato de Eduardo Gomes ter indicado o novo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Armando Trompowsky. Entretanto, a permanência de Góis Monteiro foi geralmente considerada como favorável a Dutra (após o licenciamento de Góis, a pasta foi assumida em caráter interino pelo secretário-geral do ministério, general Canrobert Pereira da Costa, que já exercia o cargo desde janeiro de 1944, e acompanhava Dutra desde 1937, pelo menos). O novo ministro da Marinha, vice-almirante Jorge Dodsworth Martins, era brigadeirista.

Todos os interventores nos estados foram substituídos, adotando-se como critério (houve sete exceções) a nomeação dos presidentes dos tribunais de justiça. Também nesse terreno a maioria era hostil a Dutra, que foi favorecido apenas no caso de São Paulo, com a nomeação do ex-ministro José Carlos de Macedo Soares. Benedito Valadares pretendeu não ser substituído (fora o único a conservar o título de governador ao longo do Estado Novo), depois pretendeu designar o novo interventor, Ovídio de Abreu, que num mesmo dia foi nomeado e destituído por José Linhares. Finalmente, a nomeação do desembargador Nísio Batista de Oliveira representou uma derrota pessoal de Valadares e deu alento aos brigadeiristas mineiros. Todos esses fatos levaram Dutra a comentar que o golpe militar de 29 de outubro fora desfechado mais contra ele próprio do que contra Vargas.

A partir de 12 de novembro, o governo de José Linhares adotou uma série de medidas legislativas com base no artigo 180 da Constituição de 1937, o mesmo que permitira a Vargas governar através de decretos. Revogou o artigo 177, que dava ao Executivo o direito de demitir ou reformar funcionários civis e militares. Revogou o decreto de 10 de outubro anterior: as eleições de 2 de dezembro seriam apenas para a presidência da República e para o Congresso Nacional, que se instalaria como constituinte 60 dias após o pleito, voltando depois os deputados e senadores eleitos a compor suas duas casas (o Senado Federal era restabelecido, em lugar do Conselho Federal previsto na Carta de 1937).

A campanha eleitoral atravessou o mês de novembro sem incidentes de maior gravidade, sobretudo porque as duas candidaturas principais (o terceiro candidato, o ex-prefeito de Petrópolis Iedo Fiúza, foi lançado pelo PCB no dia 17) eram militares. A candidatura de Dutra era apoiada por forças conservadoras incrustadas nos diversos níveis do aparelho de Estado, que eram as forças dominantes no PSD. Já Eduardo Gomes, embora tivesse o apoio de muitos liberais, de democratas e até de comunistas, era o candidato das forças conservadoras oposicionistas — inclusive o Partido Republicano (PR), liderado por Artur Bernardes —, as quais se mostraram distanciadas das massas populares. Contavam com a adesão de ponderáveis setores do eleitorado urbano de classe média, é verdade, mas a população das cidades com mais de dez mil habitantes representava pouco mais de 1/5 da população total.

O avanço da candidatura Dutra na última quinzena da campanha foi favorecido pela atividade dos líderes do queremismo, em particular Hugo Borghi, que investiram agressivamente contra Eduardo Gomes. Hugo Borghi atribuiu ao candidato udenista a frase “não preciso dos votos dos marmiteiros” (assim teria o candidato udenista se referido aos trabalhadores) e fez dela um mote de contrapropaganda. Ao mesmo tempo, trabalhou para que Getúlio desse seu apoio ao candidato do PSD. Também o ex-interventor no estado do Rio Ernâni Amaral Peixoto e o coronel Napoleão Alencastro Guimarães fizeram esforços nessa direção.

Quem mais insistentemente trabalhou pelo apoio de Getúlio a Dutra foi, na verdade, João Neves da Fontoura. Em carta a Vargas de 19 de novembro, João Neves argumentou que a escolha era entre a vitória do brigadeiro, “que seria a nossa irremediável derrota, e a do general Dutra, sob cujo governo é possível rearticular forças poderosas”, capazes de “impedir o regresso ao velho e emperrado conservantismo”. Argumentava ainda que “a democratização do país, para não se processar num ambiente de revanche, só nos é assegurada com a articulação entre o PSD e o PTB, em torno do general Dutra”.

No dia 21, Dutra enviou à direção do PTB um documento em que se comprometia a: 1) escolher seu ministro do Trabalho de comum acordo com o PTB, independentemente do rateio dos demais ministérios (excetuados os militares) proporcionalmente à votação recebida pelos partidos que o apoiassem; 2) apoiar o programa do PTB e procurar fazer com que “as justas aspirações dos trabalhadores sejam postas em prática pelo meu governo”; 3) reconhecer “as atuais leis trabalhistas e de amparo social e procurar melhorá-las e aperfeiçoar sua aplicação”. No dia 23, por outro lado, os integralistas, que haviam criado o Partido de Representação Popular (PRP), decidiram apoiar o general.

Em seus contatos pessoais ou epistolares, Getúlio mostrava-se hesitante, alegando também estar impedido de fazer pronunciamentos públicos, o que não deixava de ser verdade (chegou-se a cogitar, nesse período, de seu banimento; mas, com a oposição de Góis Monteiro e de Dutra, não havia força para tanto). No dia 24, João Neves voltou a insistir junto a Vargas, por carta: “Não haveria nem remota possibilidade de se articular uma terceira candidatura com possibilidade de êxito. Ao contrário, ela garantiria a vitória matemática do brigadeiro, pela dispersão de forças. Isto sem ter em conta o aspecto força, que ainda é preponderante. Duas únicas hipóteses nos restavam — deixar o brigadeiro ganhar, ou inclinarmo-nos para o general Dutra, malgré tout. Quando me entendi com este, de volta do Rio Grande, falei-lhe franco, como me cumpria, e disse-lhe que, se ele tinha queixas tuas anteriores e também nossas (do Rio Grande), nós igualmente poderíamos argüir-lhe a participação no 29 de outubro. Urgia, por isso, apagar toda a escrita, de lado a lado, e recomeçar lealmente. Acrescentei-lhe que o Rio Grande, em sua imensa maioria, era queremista mas estava disposto a sufragar-lhe o nome, com as cláusulas de lealdade recíproca. Disse-me ele que aceitava de bom grado a proposta. Ele deseja sinceramente uma aproximação, mas ainda receia, e com razão, os vínculos militares, acrescentando que não basta ser eleito, é preciso ter certeza de tomar posse. Isto diz tudo.”

O PTB já havia respondido positivamente à proposta de Dutra. Faltava o pronunciamento de Vargas, que saiu finalmente no dia seguinte e foi lido por Hugo Borghi no comício de encerramento da campanha do general, no largo da Carioca, em 27 de novembro. A diretiva de apoio a Dutra ficou conhecida como o “ele disse”: “Recentemente, em mensagem, aconselhei aos trabalhadores que cerrassem fileiras em torno do programa do Partido Trabalhista Brasileiro, representante e defensor dos seus interesses. O general Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD, em repetidos discursos e, ainda agora, em suas últimas declarações, colocou-se dentro das idéias do programa trabalhista e assegurou, a esse partido, garantias de apoio, de acordo com as suas forças eleitorais. Ele merece, portanto, os nossos sufrágios.”

Segundo Carlos Castelo Branco, em sua coluna do Jornal do Brasil (12/5/1982), “os interventores instalaram uma poderosa máquina política e, embora tenham contrariado seu inspirador”, fixando-se na candidatura de Dutra, “terminaram por obter de Getúlio o apoio indispensável para eleger seu candidato. Em 1950, o PSD, não sua cúpula mas suas bases, vinculadas historicamente ao Estado Novo e ao getulismo, retribuiu esse apoio, dando os votos necessários para que, sob a legenda do PTB, Getúlio voltasse ao poder”.

“O senhor irá à presidência da República porque eu quero.” A frase brutal de Vargas, proferida quase dez meses antes, não deixou de ter sentido após a abertura das urnas, pois tanto o PSD como o PTB, cuja união garantiu a vitória do ex-ministro da Guerra, eram criaturas de Getúlio. O próprio Dutra não se furtou a reconhecê-lo.

O eleitorado tinha passado de cerca de um milhão e meio de eleitores, em meados da década de 1930, para sete milhões e meio. Seis milhões (80%) compareceram às seções eleitorais. Dutra teve 3.251.507 votos (54,16% do total), enquanto Eduardo Gomes teve 2.039.341 votos (33,97%). O candidato do PCB, que não era comunista, teve 569.818 votos (9,49%). Mário Rolim Teles, que se apresentara na legenda do Partido Agrário Nacional, teve 10.001 simbólicos votos. Os votos em branco e nulos totalizaram o equivalente a apenas 2,2%.

Dutra ganhou em 16 estados, empatando com Eduardo Gomes em Sergipe e perdendo para ele apenas no Piauí, Ceará, Paraíba e Distrito Federal. Dos 1.212.166 votos que constituíram a diferença favorável ao general, 1.118.480 correspondiam à vantagem obtida nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Somente em São Paulo (mais de quatrocentos mil votos de vantagem) e no Rio Grande do Sul (quase 340 mil votos), Dutra registrou uma diferença de 739.951 votos em relação a Eduardo Gomes. Em São Paulo, o PTB elegeu os dois senadores e seis deputados federais (contra 16 do PSD, sete da UDN e quatro do PCB). No Rio Grande do Sul, o PTB elegeu apenas um deputado (contra 17 do PSD e dois da UDN), mas Vargas, candidato da coligação PSD-PTB, foi eleito senador com mais de 460 mil votos, contra 95 mil dados à chapa udenista e 37 mil à chapa comunista. Dos 320 parlamentares eleitos, 177 (55%) pertenciam ao PSD, 87 (27%) à UDN, 24 (7,5%) ao PTB e 15 (4,5%) ao PCB (todos os demais partidos tiveram representações pequenas ou mínimas). Juntos, PSD e PTB deteriam 62,5% das cadeiras da nova Constituinte. Mas os dois grandes partidos conservadores, PSD e UDN, cuja aproximação em torno de Dutra acabaria prevalecendo sobre a paternidade varguista do PSD e do PTB, tinham juntos 82% das cadeiras do parlamento.

Como estava previsto na legislação decretada por José Linhares, Dutra tomou posse no dia 31 de janeiro de 1946. Embora tivesse passado para a reserva dois dias antes, foi o único presidente desde 1930 — quando uma junta militar governou por dez dias — a tomar posse fardado. Durante a cerimônia, discursou afirmando desejar ser, no exercício de seu mandato, “o presidente de todos os brasileiros”, mas delimitou tal declaração de intenções com o complemento: “em tudo quanto se refira ao interesse nacional, ao deferimento da justiça, ao tratamento imparcial de meus compatriotas pelo reconhecimento de seus direitos e garantias.”

 

O governo Dutra

A composição do primeiro ministério de Dutra refletiu uma continuidade militar. Góis Monteiro reassumiu sua pasta e os dois outros foram conservados — bem como o respeito aos compromissos assumidos com o PSD, com Vargas e com o PTB na campanha eleitoral, apesar dos acenos feitos antes da posse à UDN, recebidos com agrado pela maioria da direção deste partido. Como fora prometido, o PTB ficou com o Ministério do Trabalho entregue ao mineiro Otacílio Negrão de Lima. Não lhe coube nenhuma outra pasta porque seus resultados eleitorais ficaram aquém do mínimo necessário para tanto. Todos os demais ministérios foram atribuídos ao PSD: para o da Fazenda foi o banqueiro paulista Gastão Vidigal; para o das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura; para o da Viação, o coronel Edmundo de Macedo Soares e Silva, carioca ligado à política fluminense; para o da Agricultura, o pernambucano Manuel Neto Campelo Júnior; para o da Justiça, o mineiro Carlos Luz, presidente da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro desde 1939, e para o da Educação, o baiano Ernesto de Sousa Campos.

Esses homens eram não só pessedistas, mas em geral ligados a Vargas, a seu longo governo ditatorial. No entanto, a partir de maio de 1946 — quando a UDN realizou uma convenção nacional e Dutra ofereceu a este partido dois ministérios, orientando definitivamente sua política na direção de uma aliança conservadora — ficou claro que eles eram sobretudo governistas. O governo agora era Dutra, e eles não tiveram maiores constrangimentos em seguir sua política de isolamento do PTB, de Vargas e, naturalmente, dos comunistas. A exceção foi João Neves, que deixou sua pasta em julho, sendo substituído em caráter interino por Samuel Gracie. Edmundo de Macedo Soares também deixaria o ministério, mas para se contrapor a Amaral Peixoto, que teve de apoiá-lo, no Rio de Janeiro, e ser eleito governador deste estado em 1947. Neto Campelo também contribuiu, com orientação antivarguista, para a divisão do PSD pernambucano, o mesmo acontecendo com Carlos Luz em Minas. Segundo Carlos Castelo Branco, “já na eleição de 1947 para escolha de governadores, os partidos iam perdendo sua identidade nas alianças locais mediante as quais o PSD elegeu alguns governadores udenistas e vice-versa. O próprio presidente Dutra descartou-se do PTB e aliou-se à UDN para tentar bloquear o retorno de Getúlio ao poder. A aliança frustrou-se mas a UDN habituara-se a participar dos sindicatos de poder”.

O caráter conservador e antivarguista do governo Dutra apareceu com maior nitidez, desde o início, na esfera dos demais cargos importantes de nomeação direta do presidente. O chefe do Gabinete Civil foi inicialmente Gabriel Monteiro da Silva, que faleceu num desastre de automóvel em dezembro de 1946. Para a chefia do Gabinete Militar foi nomeado o general Álcio Souto. Para a chefia de polícia do Distrito Federal, José Pereira Lira, que assumiu a chefia do Gabinete Civil após a morte de Gabriel Monteiro da Silva, passando a polícia do Distrito Federal — que se transformou nessa época em Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP) — ao general Antônio José Lima Câmara. Para a prefeitura do Distrito Federal, finalmente, Hildebrando de Góis, irmão do ex-chefe de polícia do Distrito Federal Coriolano de Góis.

A maior parte do ano de 1946 foi dominada politicamente pelos trabalhos parlamentares de elaboração e votação da nova Constituição. Governando por decretos, com base na Carta de 1937, emendada por Vargas e José Linhares, Dutra tomou algumas medidas sem esperar a conclusão dos trabalhos da Constituinte, além de, evidentemente, nomear novos interventores em todos os estados e territórios, interventores que, por sua vez, nomearam novos prefeitos para os municípios brasileiros, à época pouco mais de 1.650.

Em abril, Dutra criou o Estado-Maior Geral, que se transformaria posteriormente no Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA). No fim do mês (dia 30), decretou a proibição da prática de jogos de azar no país e ordenou o fechamento de todos os cassinos. Em junho, decretou a criação do Serviço Social da Indústria (Sesi), que seria seguida, em setembro, pela criação do Serviço Social do Comércio (Sesc). No terreno econômico, ensaiou um retorno aos princípios do liberalismo tipo laissez faire, suspendendo o controle das taxas de câmbio (o valor do cruzeiro foi mantido artificialmente alto); preocupado com a inflação, evitou tomar medidas para desenvolver a indústria, ao mesmo tempo que liberava a importação de bens manufaturados.

As medidas mais importantes, contudo, foram tomadas no terreno social e político. Diante da onda de greves que crescia desde a redemocratização do ano anterior, tendo como ponto de partida o baixo nível dos salários, congelados desde 1943, Dutra, já em 15 de março, aprovou um decreto-lei que tendia a suprimir o direito de greve, ou a tornar a greve uma forma inócua de pressão dos trabalhadores. O Decreto-Lei nº 9.070 garantiu a continuidade da legislação sindical de orientação corporativista, sobretudo na medida em que, pouco adiante, a Constituinte legislou com grande fluidez sobre as questões do mundo do trabalho, deixando intacto o sistema de tutela dos sindicatos pelo Estado, como observou Luís Werneck Viana. A tendência observada na legislação foi acompanhada por medidas repressivas aplicadas através do Ministério do Trabalho: a suspensão de eleições e as intervenções em sindicatos, e o fechamento do Movimento de Unificação dos Trabalhadores (MUT), que levou à criação da Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB), fechada por seu turno no ano seguinte.

Março de 1946 foi, por sinal, o mês que marcou o início político da “guerra fria”, com o discurso pronunciado em Fulton (EUA) pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill, lançando a expressão “cortina de ferro”. No Brasil, a hierarquia militar mal escondia seu descontentamento com a legalidade e o crescimento do PCB, que ostentava um efetivo de cerca de 150 mil filiados. No fim do mês, teve início a movimentação que iria resultar na legalização do PCB: o ex-procurador (do Tribunal de Segurança Nacional) Honorato Himalaia Virgulino e o recém-eleito deputado petebista Edmundo Barreto Pinto pediram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em denúncias separadas, o cancelamento do registro do partido, acusando-o de ser uma “organização internacional a serviço de Moscou”. Baseavam-se numa resposta desajeitada que Luís Carlos Prestes dera dias antes, em debate com Juraci Magalhães, sobre a posição dos comunistas na eventualidade de uma guerra entre o Brasil e a União Soviética. Embora o procurador-geral da República, Temístocles Cavalcanti, tenha opinado pelo arquivamento das denúncias, o TSE ordenou ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Distrito Federal que realizasse investigações. Quando estas tiveram início, em maio, Dutra estava demitindo do serviço público funcionários acusados de serem comunistas.

A atitude inicial do PCB em face do governo Dutra fora favorável. Em 5 de fevereiro, discursando numa sessão festiva da Constituinte, Prestes afirmara que, apesar de terem combatido a candidatura de Dutra — por eles considerada perigosa, dado o comprometimento do general com o Estado Novo —, os comunistas estavam “prontos a apoiar todos os atos democráticos do governo”. Olhavam para Dutra “como um brasileiro em cujo coração deve existir patriotismo”, disse o dirigente comunista, acrescentando: “Nós não lhe regateamos aplausos, não regateamos apoio a esse governo para resolver somente os graves problemas desta hora.”

Mas a proposta de “união nacional” de Dutra visava justamente a liberar seu governo da herança da campanha eleitoral (apoio de Vargas e das massas queremistas) e das pressões exercidas pelo movimento operário e sindical, onde petebistas e comunistas tendiam sistematicamente à convergência. A polícia de José Pereira Lira arremetia sem contemplação contra os participantes dos freqüentes movimentos sociais, que se viam incursos, com a concordância do ministro Carlos Luz, da Justiça, na Lei de Segurança Nacional. Na Constituinte, parlamentares dos mais importantes partidos protestaram contra o clima repressivo e tenso que se criara no país no momento em que se elaborava a nova Carta. Em fins de março, a polícia fechou diversas sedes do PCB, reabertas pouco depois.

 

O presidente e a Constituinte

A Constituinte instalou-se no dia 2 de fevereiro de 1946. Para redigir um anteprojeto de constituição, foi formada em março uma comissão constitucional de 37 membros, presidida pelo senador pessedista Nereu Ramos. Todos os partidos estavam representados na comissão, proporcionalmente a suas respectivas votações. Juntos, os partidos conservadores — PSD, UDN, PR, Partido Libertador (PL) e Partido Democrata Cristão (PDC) — formavam a esmagadora maioria de 32 integrantes da comissão. O PSD, com 19 membros, tinha sozinho maioria absoluta. Enquanto se desenrolava o trabalho de redação, o plenário da Constituinte entregava-se ao que Hamílton Leal chamou de “autópsia do Estado Novo”, aproveitando-se do restabelecimento da tribuna parlamentar, suprimida desde 1937, e da liberdade de imprensa.

O envio do anteprojeto de constituição ao plenário foi marcado para o dia 27 de maio. No dia 23, um comício convocado pelo PCB para comemorar o primeiro aniversário de sua legalidade, no largo da Carioca, foi violentamente dispersado pela polícia, com evidentes intenções provocativas, como documentou Edgar Carone. Quando os parlamentares começaram o trabalho de elaboração constitucional em plenário, com a apresentação de emendas ao anteprojeto da grande comissão, no início de junho, a polícia novamente fechou sedes do PCB em várias cidades. O mês de julho foi marcado por conflitos políticos e sociais violentos no Rio, em Santos (SP) e em outras cidades dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Piauí. No dia 15 de agosto, Carlos Luz mandou apreender a edição da Tribuna Popular, principal jornal comunista do Rio de Janeiro, e proibiu sua circulação durante 15 dias. No dia 23, proibiu a realização de comícios em todo o território nacional.

Na mensagem que enviou ao Congresso Nacional em março de 1947, Dutra atribuiu a seu governo a máxima lisura no relacionamento com a Constituinte. Os fatos que mencionou eram verdadeiros, mas as motivações, como observou Hélio Silva, foram diferentes das sugeridas. É verdade que o governo, pela primeira vez, não apresentou seu próprio projeto constitucional (o texto básico utilizado foi o da Constituição de 1934), mas isto se deveu à falta de tempo, pois Dutra tomou posse dois dias antes da instalação da Constituinte. O mesmo se aplica à não-decretação prévia de um regimento interno. Também a ausência de ministros do plenário (em 1933-1934 eles haviam tido direito a voto) decorreu da sistemática adotada e não da boa vontade presidencial. Dutra, entretanto, foi o único presidente brasileiro que reduziu seu próprio mandato. A Constituição de 1937 estabelecia um mandato de seis anos, e parlamentares do PSD tentaram fazer aprovar essa duração de mandato alegando que ela era determinada pelo texto constitucional que estava em vigor quando o general foi eleito. Sem tergiversar, Dutra manifestou seu desacordo, anunciando que, aprovada ou não a disposição, passaria o governo em 31 de janeiro de 1951 (cinco anos de mandato). Essa, finalmente, acabou sendo a data adotada pela Constituinte para o término de todos os mandatos decorrentes das eleições de dezembro de 1945 e das que lhes foram complementares.

Dutra mencionou fatos verdadeiros em defesa de sua conduta perante a Constituinte, mas omitiu qualquer referência ao clima de tensão política que acompanhou os trabalhos parlamentares em 1946. A votação em plenário dos títulos e artigos da Constituição começou em 13 de agosto. Na noite de 30 de agosto foram feitas muitas prisões, na sua quase totalidade de dirigentes comunistas, enquanto parlamentares do PCB tinham suas residências invadidas. No dia seguinte, porém, todos foram postos em liberdade e as sedes do PCB foram desinterditadas. A parte final da Constituição, das disposições transitórias, começou a ser votada em 7 de setembro, concluindo-se os trabalhos no dia 18, com a promulgação solene da nova Carta. No dia 19, antes de se separarem em Senado Federal e Câmara dos Deputados, os constituintes elegeram Nereu Ramos vice-presidente da República, com 178 votos, contra 139 dados a José Américo de Almeida, candidato da UDN. Nereu tomou posse no mesmo dia, passando a exercer automaticamente, de acordo com as novas normas constitucionais, a presidência do Senado.

O desenrolar dos trabalhos da Constituinte confirmou a tendência da política brasileira a uma convergência conservadora. O próprio texto da nova Carta refletiu isso quando incorporou os princípios liberais de 1934 e as chamadas conquistas sociais do Estado Novo, sem ir muito além. Entretanto, além de restabelecer os direitos e garantias individuais assegurados na Constituição de 1934, a Constituição de 1946 adotou para regime político postulados democráticos, como as eleições diretas para todos os níveis dos poderes Executivo e Legislativo. As primeiras eleições foram marcadas para 19 de janeiro de 1947, devendo-se votar para governadores, deputados estaduais (que inicialmente formariam as 20 constituintes estaduais), vereadores do Distrito Federal, terceiros senadores de todos os estados (com mandato até 1951), suplentes dos senadores eleitos em 1945 (com mandato até 1955) e ainda um pequeno número de deputados federais para preencher vagas suplementares em alguns estados.

 

A ruptura com Vargas

Para permitir a desincompatibilização de alguns de seus auxiliares que desejavam concorrer às eleições, e para refletir melhor a nova configuração do sistema de alianças políticas e sociais que iria caracterizar seu período de governo, Dutra promoveu uma grande reformulação ministerial após o ingresso do país no regime constitucional. No final de setembro de 1946, o almirante-de-esquadra Sílvio Noronha substituiu o vice-almirante Jorge Dodsworth no Ministério da Marinha. Em outubro, Góis Monteiro, candidato ao Senado, foi substituído pelo general Canrobert Pereira da Costa, antivarguista e anticomunista extremado, mas cuja ascensão era lógica, dado o importante papel que desempenhara junto a Dutra durante o Estado Novo. O PTB saiu do ministério: Otacílio Negrão de Lima foi substituído pelo advogado Morvan Dias de Figueiredo, indicado para ocupar a pasta do Trabalho pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). O primeiro passo rumo a um acordo do governo com a UDN foi dado com a ida de Daniel de Carvalho para o Ministério da Agricultura, no lugar de Neto Campelo. Daniel de Carvalho era membro influente do PR, aliado da UDN. Carlos Luz, candidato a uma cadeira extra de deputado criada pela repartição definitiva das representações estaduais, foi substituído no Ministério da Justiça pelo deputado Benedito Costa Neto do PSD de São Paulo. Sempre em outubro, Edmundo Macedo Soares, candidato ao governo do Rio de Janeiro, passou o Ministério da Viação a Clóvis Pestana. E Gastão Vidigal foi substituído no Ministério da Fazenda por Pedro Luís Correia e Castro.

Os convites de Dutra à UDN para compor seu ministério provocaram acesas discussões nesse partido ao longo de 1946. Seu secretário-geral, Virgílio de Melo Franco, via no governo do general a continuação do Estado Novo. Conseqüentemente, opunha-se de modo irredutível a um acordo. Mas estava isolado. Em dezembro, a aceitação pelos udenistas Raul Fernandes e Clemente Mariani do convite de Dutra para assumirem, respectivamente, os ministérios das Relações Exteriores e da Educação e Saúde, foi um fato consumado. Submetida à direção da UDN, a decisão foi aprovada por ampla maioria, mas provocou a demissão de Virgílio de Melo Franco da secretaria geral do partido. O udenista mais interessado no acordo com Dutra era o ex-ministro Otávio Mangabeira, justamente o presidente do partido e candidato ao governo da Bahia. Uma vez eleito, no início de 1947, ele passaria a estimular com vigor redobrado a política dita de “união nacional”, ou seja, de acordo entre os partidos conservadores. Queria chegar à presidência da República nas eleições de 1950 e sabia — em face do próprio resultado obtido por Eduardo Gomes em 1945 — que isso não seria possível apenas com o apoio de seu partido e de agremiações menores.

Consumado em dezembro o movimento de aproximação do PSD com a UDN e o PR, Getúlio Vargas rompeu suas relações políticas com Dutra (também ficaram bastante estremecidas as relações pessoais). Assim, as eleições de janeiro de 1947 foram disputadas com um novo alinhamento das forças políticas do país, em que o PTB, o PCB e o Partido Social Progressista (PSP), do ex-interventor em São Paulo Ademar de Barros, estavam em oposição ao governo. A UDN saiu vitoriosa das eleições para governadores em sete estados, entre os quais Minas Gerais, onde Mílton Campos recebeu o apoio de uma dissidência pessedista liderada pelo ex-presidente Venceslau Brás e por Carlos Luz. Em alguns estados, como o Rio de Janeiro, a vitória do candidato pessedista representou uma derrota para Vargas. Em Pernambuco, a vitória do pessedista Alexandre Barbosa Lima Sobrinho foi contestada por uma dissidência de seu próprio partido, da qual participou Neto Campelo, e que levou Barbosa Lima Sobrinho a demorar quase um ano para tomar posse. Em São Paulo, todavia, o PSD não cedeu ao interesse de Dutra. O presidente desejava que o candidato do partido ao governo do estado fosse o deputado Luís Novelli Júnior, marido de sua enteada Carmelita, mas o nome submetido ao eleitorado acabou sendo o de Mário Tavares.

 

A ilegalização do PCB

Outro dado importante das eleições de 1947 foram os resultados obtidos pelo PCB em algumas das cidades mais importantes do país. Além de terem visto seu percentual global decrescer apenas ligeiramente, a despeito do caráter mais local do pleito, os comunistas conseguiram eleger, na legenda do PSP, dois novos deputados federais nas eleições complementares de São Paulo, 46 representantes para as assembléias legislativas estaduais e 18 dos 50 vereadores do Distrito Federal. O PCB fez acordos eleitorais com Ademar de Barros, que se elegeu governador de São Paulo, e com Agamenon Magalhães, permitindo a eleição de Barbosa Lima Sobrinho em Pernambuco, além de ter apoiado a eleição de Mílton Campos em Minas Gerais.

O isolamento do PCB fazia parte da estratégia de “união nacional” de Dutra — antes de mais nada, para evitar a consolidação da aliança dos comunistas com os varguistas. Houve entretanto outras motivações para a obstinada determinação com que Dutra perseguiu os comunistas durante seu governo. Afonso Arinos de Melo Franco observou a seu respeito que, “militar conservador, sem preocupação com as formas de governo nem com as doutrinas políticas, sua fobia ao esquerdismo nunca se desmentiu”. Além disso, “a intolerância anticomunista chegou a extremos” em seu governo porque, “aos precedentes nacionais vindos de 1935, vinha somar-se a vaga antiesquerdista que, naquela época, submergia os EUA, e da qual a opressão terrorista exercida por um fanático sem categoria nem escrúpulos, o senador [Joseph] McCarthy, foi o vergonhoso coroamento”.

Em setembro de 1946, o TRE do Distrito Federal formulara contra o PCB a acusação de duplicidade de estatutos. Em janeiro de 1947, pouco antes das eleições, o ministro da Justiça, Benedito Costa Neto, tomou a iniciativa de enviar ao TSE documentação destinada a embasar a acusação formulada pelo TRE, enquanto Dutra, em entrevista coletiva à imprensa, manifestava-se contrário à legalidade do partido. Em fevereiro, foi divulgado um parecer do subprocurador-geral da República Alceu Barbedo (substituto ad hoc de Temístocles Cavalcanti, que se declarara impedido), que opinava pela procedência da acusação de duplicidade de estatutos e argüía a “inconstitucionalidade dos partidos extremistas”, com base no texto constitucional que acabara de ser aprovado. Em sucessivos pareceres, Alceu Barbedo advogou energicamente a tese do cancelamento do registro do PCB. O julgamento do feito pelo TSE, depois de estudos e debates que repercutiram intensamente no parlamento e na imprensa, ocorreu no dia 7 de maio de 1947. A posição do governo foi vitoriosa por três votos contra dois. Imediatamente, a polícia fechou todas as sedes e comitês do PCB no Distrito Federal e começou a fazer o mesmo nas outras cidades. No dia 10, Costa Neto determinou formalmente a cessação das atividades do partido em todo o país. A imprensa comunista, entretanto, não foi suprimida (só viria a sê-lo em 1964).

Restava o problema dos mandatos dos representantes comunistas, que, novamente por interferência de Dutra, foi suscitado nas semanas seguintes: em nome do conselho nacional do PSD, os senadores Georgino Avelino (um dos políticos mais ligados ao presidente da República), Dario Cardoso e Ismar de Góis Monteiro formularam à Justiça Eleitoral uma consulta sobre a maneira de preencher as vagas abertas com uma vindoura cassação daqueles mandatos. Os comunistas, com apoio dos petebistas e de boa parte da bancada udenista, contestavam o argumento de que os parlamentares, dado o caráter proporcional das eleições, eram eleitos pelos partidos, devendo perder os mandatos caso seu partido deixasse de ser reconhecido. Mesmo um jornal como o Correio da Manhã, do Rio, insistiu em editorial na tese de que os mandatos não eram dos partidos, mas “do corpo eleitoral do povo”. Tendo a Justiça Eleitoral se declarado incompetente, a decisão se transferiria para as duas casas do Congresso Nacional em setembro, quando o governo, através do senador Ivo d’Aquino, do PSD de Santa Catarina, encaminhou um projeto de lei mediante o qual se declaravam extintos os mandatos legislativos de deputados e senadores cujo partido tivesse tido o registro cassado por decisão da Justiça Eleitoral.

No plano da política interna, portanto, a atuação do governo Dutra em 1947 foi profundamente marcada pela intensificação da “guerra fria”, particularizando um fenômeno de amplitude internacional (os ministros comunistas dos governos francês e italiano foram demitidos também em maio de 1947). O mesmo aconteceu no plano da política externa.

Em fevereiro de 1947, Dutra enviou à segunda sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, o ex-chanceler Osvaldo Aranha, com quem tivera tantos atritos e cujas posições pró-americanas eram notórias. O representante brasileiro foi eleito presidente da assembléia e teve assim um dos momentos mais importantes de sua carreira de homem público. As novas simpatias de Dutra fizeram com que sua própria retórica se modificasse. Ele começou a revelar o vezo tardio de citar em seus discursos o exemplo ou a palavra de patriarcas ou estadistas modernos da nação norte-americana, como George Washington, Alexander Hamilton ou Franklin Roosevelt.

Entre 15 de agosto e 2 de setembro de 1947 realizou-se no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, a Conferência Interamericana de Manutenção da Paz e Segurança do Continente. Com a presença do presidente norte-americano Harry Truman, a reunião aprovou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que ficou conhecido como Tratado do Rio de Janeiro. Segundo declaração de Afonso Arinos de Melo Franco ao Jornal do Brasil (8/4/1982), “os Estados Unidos pressionaram para a assinatura deste tratado com o objetivo de classificar o comunismo como o inimigo externo a ser combatido”. O tratado estabelece que “um ataque armado de qualquer país contra um Estado americano será considerado como um ataque contra todos os Estados americanos”, mas, segundo Afonso Arinos, “é nitidamente ideológico”, destinando-se na verdade a impor na diplomacia interamericana a hipótese de uma agressão comunista.

O alinhamento com os Estados Unidos e o anticomunismo interno levaram finalmente o governo Dutra ao rompimento das relações diplomáticas com a União Soviética, que iria perdurar até 1962. Em maio de 1947, após o cancelamento do registro do PCB, o embaixador soviético Suritz enviou a Raul Fernandes uma carta lamentando o ocorrido, e retirou-se do Rio. Posteriormente, um artigo publicado na Gazeta Literária de Moscou foi considerado pelo governo brasileiro injurioso ao presidente Dutra. No início de outubro, o embaixador brasileiro na URSS, Mário de Pimentel Brandão, exigiu do governo soviético uma retratação, alegando que, na inexistência da liberdade de imprensa naquele país, a responsabilidade pelo artigo era do governo. Já falava na hipótese de rompimento de relações em caso de resposta negativa; esta veio dias depois. Em 21 de outubro, com a conivência da polícia, um grupo de pessoas invadiu a redação e as oficinas da Tribuna Popular, destruindo suas máquinas e ferindo vários empregados. Nos dias seguintes, diplomatas brasileiros e norte-americanos iniciaram as gestões para recambiar a seus países os representantes do Brasil e da URSS. O Congresso Nacional apoiou a ruptura das relações diplomáticas com a União Soviética, especialmente bem recebida pela cúpula militar, de indesmentida inclinação anticomunista. Ao longo de 1947, além disso, atestando o clima repressivo que se instalara, 143 sindicatos de trabalhadores sofreram intervenção do Ministério do Trabalho. Esse número se elevaria, no final do governo, a cerca de quatrocentos, para um total de 944 sindicatos existentes.

A opção por um governo forte, ainda que em detrimento da liberdade, emerge claramente na referência ao Duque de Caxias, em agosto de 1949, quando Dutra, que o transformara em patrono do Exército durante o Estado Novo, inaugurou seu retrato no palácio do Catete. Conduzindo uma política dita de “conciliação”, Dutra sugere estar ungido com o espírito do Pacificador. Mas lembra que Caxias “nunca transigiu com as forças subversivas. Conhece-se a sua sentença: ‘É preferível cometer uma injustiça a tolerar uma desordem’. Era bem o pêndulo da ordem, dando as horas da pátria”.

 

A mudança da política econômica

Apesar de ter mantido suas linhas básicas concordantes com o esquema da aliança PSD-UDN-PR, a política econômico-financeira de Dutra sofreu uma inflexão em 1947, quando se constatou ter o país esgotado rapidamente as reservas de divisas (pouco mais de setecentos milhões de dólares) amealhadas durante a guerra. Em junho, foram reintroduzidos os controles cambiais, de acordo com a orientação do Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo Thomas Skydmore, essa medida marcou o início da transição para um segundo período, “com o aceleramento da ‘industrialização espontânea’ e uma inclinação para formas rudimentares de planejamento geral dos gastos federais”.

A política do período 1946-1947, baseada em um mínimo de controles em cada setor, mostrou-se contraproducente. Além da dissipação das reservas cambiais, escreveu Skydmore, “a política de satisfazer a procura interna mantendo um alto nível de importações entrara em choque com o fato da limitada capacidade do Brasil para importar”. O restabelecimento dos controles cambiais resultou num “drástico sistema de importação, ao mesmo tempo que mantinha a alta valorização da moeda brasileira. Mesmo que o governo declarasse não se haver afastado da sua anunciada política de combate à inflação com a manutenção das importações, na prática os regulamentos trabalhavam contra os bens de consumo e em favor de artigos essenciais, tais como combustíveis, equipamentos e maquinaria. Já que a procura interna continuava elevada, havia forte incentivo para a expansão da indústria brasileira. Além disso, a manutenção de um alto valor oficial do cruzeiro agia como desestímulo do setor de exportação, desviando assim os investimentos para a produção destinada ao mercado interno”.

O surto de desenvolvimento econômico que resultou dessa política — um resultado não-intencional, pois as medidas destinavam-se à solução de problemas imediatos, como a inflação e o desequilíbrio da balança de pagamentos — foi chamado de “industrialização espontânea”. Nos dois últimos anos do governo Dutra, a industrialização foi ajudada por uma política de crédito mais liberal. Entre 1946 e 1952, a taxa média anual de crescimento do produto real foi de 6,2%, enquanto o produto industrial crescia 7,9%. A composição do Produto Interno Bruto (PIB) modificou-se: em valor, a parte da agricultura passou de 37%, em 1939, para 31,8%, em 1951, enquanto a renda nacional originada pela indústria evoluía, no mesmo período, de 17,5% para 19,6%. Com a entrada em funcionamento da usina siderúrgica de Volta Redonda (no início de 1946), a produção brasileira de aço passou de 205.935 toneladas, em 1945, para 788.557 toneladas, em 1950.

A não-intencionalidade governamental desse desenvolvimento industrial foi testemunhada pela opinião do ministro da Fazenda, Correia e Castro, em seu relatório anual datado de maio de 1947, referente a 1946. Qualificando o Brasil como um “país essencialmente agrícola”, acrescentava: “É da essência da economia latino-americana, e o Brasil nesse conjunto está integrado, certa concentração de esforços na exportação de matéria-prima e de gêneros alimentícios, bem como na importação de ampla variedade de artigos manufaturados e de comestíveis industrializados.”

Para o padrão de vida dos assalariados e das camadas pobres da população, de modo geral, não houve porém inflexão no governo Dutra. Segundo a revista O Cruzeiro, citada na publicação Nosso século (1945-1960), para viver com um mínimo de dignidade o trabalhador deveria ganhar, em julho de 1948, 4.090 cruzeiros antigos por mês. “Mas um ferroviário da Central do Brasil ganhava, em média, Cr$1.100,00, enquanto a maioria dos funcionários públicos recebia entre Cr$850,00 (letra A) e Cr$3.300,00 (letra K).” Durante o governo Dutra, o custo de vida sofreu uma elevação de 60%, mas o salário mínimo permaneceu o mesmo que fora fixado por Getúlio em dezembro de 1943 (de 240 cruzeiros antigos em Recife, a 380 no Rio de Janeiro). Vigorou durante 97 meses, pois só seria novamente aumentado por Vargas em 1º de janeiro de 1952, quando passou a ser de 1.200 cruzeiros antigos no Rio de Janeiro.

Em junho de 1947, Dutra nomeou para a prefeitura do Distrito Federal o general Ângelo Mendes de Morais, que iniciou a construção do estádio do Maracanã, inaugurado para a Copa do Mundo de Futebol de 1950. Mendes de Morais dirigiu a construção de vários túneis e obras viárias importantes no Rio de Janeiro.

Em novembro de 1947, o ministro Costa Neto, da Justiça, pediu exoneração e foi substituído pelo deputado federal do PSD gaúcho Adroaldo Mesquita da Costa. O episódio teve origem na eleição de Ademar de Barros para o governo de São Paulo. Ademar estava na alça de mira dos militares por ter sido eleito com o apoio de Vargas e do PCB. Quando a Constituição estadual determinou que as eleições para vice-governador seriam diretas, o candidato de Ademar era o deputado pessedista Carlos Cirilo Júnior, e o de Dutra, mais uma vez, Novelli Júnior. Para se recompor com Dutra e amainar as pressões contra sua pessoa, Ademar acabou indicando Novelli Júnior, que foi eleito. Solidário com o preterido Cirilo Júnior, Benedito Costa Neto se demitiu. A pressão contra Ademar, entretanto, não arrefeceu, e em 1948 Dutra cogitou de uma intervenção federal em São Paulo, desistindo da idéia em virtude da falta de apoio da UDN.

 

O Acordo Interpartidário

O ano de 1948 começou com a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas e com a formação da política de “união nacional” através do Acordo Interpartidário. Em fins de 1947, os tempestuosos debates em torno da cassação dos comunistas, que atrasaram a tramitação do projeto de Ivo d’Aquino, fizeram com que fosse convocada uma sessão extraordinária do Congresso. Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, “a divisão operada no Congresso superou, então, os quadros partidários; manifestou-se entre os que defendiam, na intangibilidade dos mandatos, as normas constitucionais e os princípios básicos da democracia representativa, e aqueles que, por espírito de intolerância ideológica ou por simples oportunismo político, atropelavam conscientemente a Constituição, expulsando do Congresso elementos a ele levados legalmente pelo voto popular”.

Aprovado em outubro de 1947 no Senado, o projeto Ivo d’Aquino foi remetido à Câmara durante a sessão extraordinária. Compareceram à votação, em 7 de janeiro de 1948, 243 deputados, dos quais 179 aprovaram e 74 se opuseram à cassação. Segundo Maria do Carmo Campelo de Sousa, “a aprovação dependeu diretamente do PSD e dos pequenos partidos, visto que a UDN se dividiu exatamente ao meio e o PTB inclinou-se pela rejeição da medida”. No mesmo dia 7, à noite, uma delegação do Congresso, tendo à frente Nereu Ramos, foi recebida “solenemente por Dutra e seus auxiliares diretos, no palácio do Catete, onde se processou, com pompa, a cerimônia de sanção da lei”, como escreveu Afonso Arinos.

Imediatamente, desencadeou-se em vários pontos do território nacional uma caçada policial aos ex-parlamentares comunistas, muitos dos quais foram presos. O senador Prestes, que estava na clandestinidade desde agosto de 1947, teve sua prisão preventiva decretada ainda no dia 5 de janeiro de 1948, antes da cassação. Permaneceria na clandestinidade até março de 1958, quando o mandado de prisão preventiva seria revogado. Mais graves que as repercussões da cassação na atividade e na vida de Prestes foram suas conseqüências políticas. Enquanto o PTB procurava preencher os espaços vazios resultantes da retração do PCB e preparava o retorno de Vargas, o ceticismo quanto aos caminhos legais e a descrença na efetividade do ordenamento constitucional da República dominavam o conjunto das esquerdas, empurrando-as de volta à perspectiva de uma aliança privilegiada com setores do aparelho de Estado, especialmente militares nacionalistas de variada coloração política. Dutra deu assim uma ponderável contribuição — que seria reforçada pela atuação de Getúlio a partir de 1951 — à polarização do debate político brasileiro entre “nacionalistas” e “entreguistas”. O curso do debate político nacional iria deixar isso claro já a partir dos meses seguintes.

O Acordo Interpartidário começou a ser preparado em novembro de 1947, quando os governadores udenistas Otávio Mangabeira e Mílton Campos discutiram seus termos com Dutra, no Rio. Foi assinado solenemente no palácio do Catete em 22 de janeiro de 1948 pelos presidentes dos três partidos envolvidos: Nereu Ramos (PSD), José Américo (UDN) e Artur Bernardes (PR). Ressalvada a autonomia de cada partido, o acordo estabelecia “bases de entendimento comum, entre si e contra o governo da República”, visando, entre os objetivos principais, “consolidar o regime e aperfeiçoar a sua prática”, especialmente “pelo estrito cumprimento da Constituição, como critério fundamental de toda a atividade pública”.

Os três partidos contavam, respectivamente, com 151, 77 e sete, somando 235 dos 286 deputados federais. Assim, o acordo garantia a Dutra folgada maioria para a aprovação das matérias mais relevantes no parlamento. Além de cristalizar o consenso dos grupos políticos conservadores em torno do governo, oferecia a cada um dos dois grandes partidos (ao PR caberia barganhar sua participação na composição) a esperança de ver resolvida a seu favor — sob a égide de Dutra e das autoridades militares — a questão da sucessão presidencial, com a indicação de um candidato comum e, assim, virtualmente imbatível. O acordo funcionou para dar a Dutra condições ímpares, em regime constitucional, de governar praticamente sem oposição parlamentar. Mas, como se veria depois, não funcionou para resolver justamente o problema que na verdade o motivara, o da sucessão presidencial, que, como de hábito, se apresentou precocemente, já no decorrer de 1948, quando o mandato de Dutra ia em meio. Com a polarização político-partidária articulada em função das eleições marcadas para 3 de outubro de 1950, outro divisor de águas ocupou o palco: a questão do petróleo.

 

A Campanha do Petróleo

Meses antes da deposição de Vargas, em 1945, o presidente do Conselho Nacional do Petróleo (CNP), coronel João Carlos Barreto, assinou uma exposição de motivos que, contrariando a Constituição outorgada em 1937, admitia a participação de capitais privados estrangeiros na indústria do petróleo, desde que integrados em empresas constituídas no Brasil. A medida não teve conseqüências práticas, mas na elaboração da Constituição de 1946 foi esse o critério adotado ao se tratar da matéria. Se tal fato preocupava as forças nacionalistas — das mais diversas colorações políticas, indo de um Artur Bernardes até os comunistas —, a situação criada também não atendia aos interesses das empresas estrangeiras, porque a legislação ordinária desestimulava o ingresso delas na pesquisa e lavra do petróleo.

Em fevereiro de 1947, Dutra designou uma comissão para, sob a direção do CNP, elaborar o Estatuto do Petróleo, de modo a definir a maneira como o país, cujo consumo do produto crescia rapidamente, iria equacionar o problema. Em abril, ainda durante a elaboração do Estatuto, que consumiria oito meses, uma vigorosa reação nacionalista tomou corpo através de uma série de conferências e debates realizados no Clube Militar. Foi o estopim da Campanha do Petróleo, uma das maiores campanhas políticas da história brasileira, que ficaria famosa por seu slogan: “O petróleo é nosso”. Os debates foram abertos com um pronunciamento do general Juarez Távora, favorável aos termos em que o governo ia definindo a questão. No pólo oposto encontrava-se o general Júlio Horta Barbosa, ex-presidente do CNP.

O Estatuto do Petróleo foi enviado ao Congresso por Dutra no início de 1948, sem uma opinião sua clara, como se fosse um estudo e não um projeto de lei. Estabelecia com nitidez o princípio da utilidade pública do produto, mas considerava impossível a completa nacionalização, por falta de verbas, de técnicos especializados e de condições gerais. Quando foi publicado, desagradou a todos. Aos nacionalistas, que adotavam a tese do monopólio estatal integral, e aos grandes trustes, que queriam explorar o petróleo brasileiro à maneira do venezuelano.

Em abril de 1948 foi criado o Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (CEDPEN), tendo Artur Bernardes e os generais Horta Barbosa, José Pessoa e Estêvão Leitão de Carvalho como presidentes de honra. O CEDPEN, articulando militares, estudantes, homens públicos e intelectuais, passou a dirigir a Campanha do Petróleo. Promoveu imediatamente a Semana do Petróleo e, em junho, o Mês do Petróleo. Em outubro, adotou formalmente, em convenção nacional, a tese do monopólio estatal para todas as fases da exploração do petróleo. Em dezembro, um projeto completo foi apresentado ao Congresso na escadaria da Câmara dos Deputados, junto à estátua de Tiradentes.

Depois de ter sido aprovado na comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o Estatuto do Petróleo teve sua tramitação truncada, e acabaria sendo arquivado, embora continuasse em debate pela opinião pública. Dutra desistiu dele, na prática, ainda em 1948, ao pedir ao Congresso recursos para a construção das refinarias estatais de Mataripe (BA) — que começaria a operar em dezembro de 1950, quando o país consumia três vezes mais petróleo do que em 1945 —, e de Cubatão (SP), para a construção do oleoduto Santos-São Paulo e para a aquisição de uma frota nacional de petroleiros.

O debate, entretanto, prosseguiu. As forças nacionalistas contavam quase que exclusivamente com pequenos órgãos de imprensa, inclusive os do PCB. O Diário de Notícias, do Rio, foi o único jornal da grande imprensa a acolher matérias em defesa da estatização do petróleo. A Campanha do Petróleo foi severamente reprimida durante todo o governo Dutra, sob o argumento de que se tratava de um movimento dominado pelo ilegal PCB. A polícia dispersava a cassetetes e a bala quer os comícios em praça pública, quer os atos em recintos fechados. Apenas o prédio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) era poupado. Mas a Tribuna Popular foi novamente invadida e empastelada em 1948, após um cerco armado e um tiroteio de que resultaram vários feridos, notadamente o dirigente comunista Salomão Malina. Em novembro de 1949, um comício em defesa do monopólio estatal e contra a Lei de Segurança Nacional realizado no Rio, na esplanada do Castelo, foi reprimido a bala pela polícia. A jovem comunista Zélia Magalhães foi morta e 20 pessoas ficaram feridas. Segundo afirmou Luís Carlos Prestes em seu depoimento a Dênis de Morais e Francisco Viana, 55 militantes comunistas foram mortos pela polícia no fim do governo Dutra, quando participavam das campanhas do petróleo, pela paz e pelo voto em branco nas eleições. Confirmada, esta seria a maior cifra de militantes do PCB vítimas fatais da repressão em toda a história brasileira.

Em agosto de 1948, Dutra foi promovido a general-de-exército na reserva. O posto fora criado por ele mesmo em decreto-lei de 4 de setembro de 1946 (dias antes da promulgação da Constituição). Durante os anos de 1948 a 1950, somente três militares ascenderam a esse posto na ativa: Góis Monteiro, Newton Cavalcanti e Salvador César Obino.

No mês de agosto de 1948, o presidente enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei do serviço nacional que sequer chegou a ser verdadeiramente discutido pelos parlamentares. Com base em estudos do EMFA (que ainda se chamava Estado-Maior Geral), a lei tornaria possível, se aprovada, “chamar ao serviço civil do país a grande parcela dos jovens que, por não ser necessária ao treinamento militar, deixa de prestar o tributo que a nação tem direito de exigir, na época própria”. O texto do projeto estabelecia também o “serviço voluntário a ser prestado pelas mulheres e pelos estrangeiros que pretendam integrar-se na vida do país”, esclarecendo que “o serviço civil para a defesa da pátria é prestado... em qualquer dos ministérios ou em organizações estatais, ainda que autárquicas, de finalidades econômicas, educacionais ou de assistência sanitária”. Organizações de finalidades econômicas seriam “as destinadas à produção industrial; ao fomento da agricultura e da pecuária; à construção, melhoramento e conservação de estradas de ferro e de rodagem; à construção de pontes, barragens, usinas” etc.

Foi também em 1948 que chegou ao Congresso uma mensagem de Dutra concernente à criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica. A idéia de criar um instituto capaz de fazer um levantamento completo sobre a realidade amazônica em todos os campos científicos fora lançada em 1946 pelo representante brasileiro na UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Paulo Carneiro.

Começou-se a ver a criação do instituto como parte de um projeto de internacionalização da Amazônia, ou de sua partilha por várias nações fortes. Tendo recebido parecer favorável da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o projeto chegou no início de 1949 à Comissão de Segurança Nacional, onde foi violentamente atacado por Artur Bernardes e outros parlamentares. A comissão decidiu pedir um parecer do EMFA, que julgou tratar-se de uma “autarquia internacional com jurisdição sobre território que incluía cerca de metade do Brasil”. Como a idéia do instituto fora objeto de um convênio assinado em Iquitos, Peru, o Itamarati, sob o impacto da opinião do EMFA, conseguiu das nações participantes um protocolo adicional, assinado no Rio em maio de 1950. Ainda assim, quando a matéria foi novamente enviada ao Congresso, acabou sendo arquivada, e o projeto do Instituto da Hiléia Amazônica abortou.

Em setembro de 1948, faleceu o general Álcio Souto. A chefia do Gabinete Militar foi então atribuída ao general João Valdetaro de Amorim e Melo, que servia na chefia da Comissão Mista Brasileira nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Morvan Figueiredo foi substituído por Honório Monteiro no Ministério do Trabalho.

Em outubro de 1948, acatando opinião do chefe do EMFA, general Salvador Obino, Dutra criou a Escola Superior de Guerra (ESG) e nomeou o general Osvaldo Cordeiro de Farias para comandá-la. Inspirada no National War College (criado nos EUA em 1946), cujas normas adotou, a ESG foi concebida inicialmente para ministrar só para militares o curso de alto comando. Subproduto da participação da FEB na Segunda Guerra Mundial sob o comando supremo de oficiais norte-americanos, subproduto também da “guerra fria” e da influência dos EUA, a ESG foi estruturada a partir de algumas idéias básicas: a substituição do conceito de defesa nacional pelo de “segurança nacional” (identificando a segurança interna do regime com a segurança da nação); a consciência de que o Brasil já possuía os requisitos para chegar a grande potência; a crença de que o desenvolvimento vinha sendo retardado por incapacidade de planejamento e de execução; a necessidade de dotar os grupos sociais dominantes, em aliança com a corporacão militar, de uma formulação da política nacional (e da metodologia para chegar a ela).

Depois de um estágio inicial de preparação com a assessoria de três oficiais norte-americanos, ainda em 1948, a ESG iniciou seus trabalhos no ano de 1949, em caráter experimental. Em agosto, uma lei deu-lhe feição definitiva e ampliou a participação em seus cursos para civis, escolhidos, segundo o regimento da escola, entre os atuantes na política nacional (especialmente na política externa) e os pertencentes à administração pública, ou convidados pelo chefe do EMFA.

 

O Plano Salte

Se o Estatuto do Petróleo teve sua tramitação no Congresso truncada e acabou sendo arquivado, o mesmo não aconteceu com o Plano Salte (das primeiras letras de saúde, alimentos, transporte e energia), que seria aprovado pelo Congresso, graças ao Acordo Interpartidário, mas teria sua aplicação abandonada. O Plano Salte, que foi apresentado ao Congresso por mensagem presidencial em maio de 1948, viria a ser aprovado exatamente dois anos depois, embora consubstanciasse o programa a ser executado no período de 1949 a 1953. Dentro da experiência brasileira de planejamento federal de âmbito plurissetorial, foi o único plano que recebeu exame e aprovação prévia (que Dutra sabia ser folgadamente garantida) do parlamento.

Apesar de ter feito essa primeira tentativa de coordenar os gastos públicos, de ter tentado se aproximar de um planejamento em escala nacional, o governo Dutra representou uma fase de diminuição da atividade, participação e intervenção econômica do Estado, em comparação com os 15 anos que o precederam e também com os governos subseqüentes. Era até uma questão de coerência com os postulados de um liberalismo clássico que, em princípio, orientava a ação de sua equipe em matéria econômica. Mas isso não impediu que algumas medidas de caráter regional fossem tomadas. Em dezembro de 1947, por exemplo, Dutra criou a Comissão Executiva de Defesa da Borracha, com a tarefa de amparar a indústria extrativa.

O planejamento em escala regional estava no texto da Constituição de 1946 e previa projetos para desenvolver o vale do rio São Francisco e a região Amazônica, assim como para combater a seca do Nordeste. A Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), prevista nas disposições transitórias da Constituição, foi criada apenas em 1949, mas a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF), criada por Vargas no dia 3 de outubro de 1945, foi constituída em março de 1948, para dar início à construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso (BA). O início da construção da maior usina de energia elétrica do Nordeste (que entrou em operação em janeiro de 1955) foi uma das iniciativas mais importantes do governo Dutra. Já a CVSF, que deveria promover o desenvolvimento econômico da região, quase nada fez nesse sentido.

Em matéria de planejamento, na verdade, o que contou foi o Plano Salte, mais como o início de uma prática governamental do que em função de seus resultados práticos, muito parcos. A história do Plano Salte começou em fevereiro de 1946, quando Dutra, ao extinguir o Plano de Obras e Equipamentos então vigente, resolveu reorientar os esquemas de planejamento do governo. Os estudos para a elaboração de um novo plano começaram no mesmo ano e foram intensificados em 1947, sob a coordenação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Após a assinatura do Acordo Interpartidário, no início de 1948, foi constituída uma comissão de representantes dos três partidos para fornecer assistência técnica e supervisionar a elaboração do plano, concluída no mês de maio.

Na área da saúde, o Plano Salte pretendia, abrangendo a Campanha Nacional de Saúde, elevar o nível sanitário da população, sobretudo a rural. Nesse terreno, independentemente do plano, o que o governo Dutra fez de mais importante foi uma campanha de erradicação da malária em 11 estados, na Baixada Fluminense e na bacia do São Francisco. Com a utilização de inseticidas de ação residual, a partir de 1948 foi possível colocar as áreas visadas sob controle sanitário. Nesse mesmo ano foi concluída a construção do Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro.

Na área dos transportes, o plano delineava um programa baseado nos planos ferroviários e rodoviários já existentes, e contemplava ainda o reaparelhamento dos portos, a melhoria das condições de navegabilidade dos rios, o aparelhamento da frota marítima e a construção de oleodutos. De concreto, e sempre à margem do plano, o governo Dutra concluiu a eletrificação da Estrada de Ferro Central do Brasil até Barra do Piraí (RJ), projetada desde o início da década de 1930, e a da Santos-Jundiaí (antes São Paulo Railway), ampliando ainda a rede suburbana eletrificada do Rio. Foi concluída também a ligação da rede ferroviária do Sul com a do Nordeste, garantindo-se a continuidade do transporte por via ferroviária do extremo sul até Recife. No conjunto, foram construídos mais de mil quilômetros de estradas de ferro, beneficiando sobretudo o Ceará e Goiás. Foram também colocados em tráfego 420 dos 650 quilômetros da estrada de ferro que liga Corumbá (MT) a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Com divisas bloqueadas na Inglaterra que haviam escapado à dilapidação de 1946-1947, Dutra encampou as deficitárias e obsoletas São Paulo Railway, Leopoldina Railway (DF, RJ, MG), Great Western (PE) e Ilhéus-Conquista (BA). Ampliou-se o cais do Rio de Janeiro e foram construídos 3.600m de cais no porto da capital gaúcha. Finalmente, foram abertos 2.800km de estradas de rodagem, completando-se (sem asfaltamento) a Rio-Bahia, com a inauguração do trecho Teófilo Otoni (MG)-Feira de Santana (BA). Mais relevante foi a construção da nova rodovia Rio-São Paulo, a mais importante do país, que ganhou o nome de rodovia Presidente Dutra, ou, como é geralmente conhecida, via Dutra.

A parte dedicada à energia era a mais densa e abundante do Plano Salte. A maioria das iniciativas relacionadas com a exploração da energia elétrica seria financiada pelo capital privado, inclusive estrangeiro, reservando-se o governo uma posição reflexa de amparo e de estímulo às empresas concessionárias. Foram adotadas as conclusões e recomendações gerais do Plano Nacional de Eletrificação, elaborado por uma comissão especial instituída em 1944. Além de iniciar a construção de Paulo Afonso, o governo Dutra amparou a realização de planos estaduais de eletrificação urbana e rural. Entre 1945 e 1950, a capacidade instalada de geração de energia elétrica passou, em todo o país, de 1.340 para 1.800 megawatts (aumento de 40%).

Quanto ao petróleo, era prevista uma pesquisa intensiva em extensa área, a aquisição de material necessário à perfuração de poços, a aquisição e montagem de refinarias para a produção diária de 45 mil barris, além da ampliação da capacidade da refinaria de Mataripe, e a aquisição de 15 petroleiros de 15 mil toneladas cada um, que viriam a constituir a Frota Nacional de Petroleiros (Fronape). Recursos substanciais — cerca de 2,5 bilhões de cruzeiros antigos — eram destinados a assuntos de petróleo, mas Dutra enviou o Plano Salte ao Congresso sem levar em conta o trabalho contido no problemático Estatuto do Petróleo. A prática do governo, como já se viu, trilhou os caminhos da iniciativa estatal, com a construção de refinarias e a aquisição de petroleiros.

A lei que instituiu o Plano Salte determinou a inclusão no orçamento da União, nos exercícios de 1950 e 1951, de dotações para sua execução no valor total de 11,650 bilhões de cruzeiros antigos. Em junho de 1950, Mário Bittencourt Sampaio foi designado o primeiro administrador-geral do plano, o que correspondia, na prática, à atribuição da coordenação do plano ao DASP. O abandono do plano, a partir de 1951, tornou letra morta todas as disposições.

 

A Missão Abbink

O debate parlamentar sobre o Plano Salte ainda prosseguia quando foi divulgado, em junho de 1949, o relatório da Missão Abbink, baseado em grande parte nos estudos desenvolvidos para a elaboração do próprio plano. A Missão Abbink representou a retomada da cooperação econômica com os Estados Unidos iniciada através da Missão Cooke, enviada pelo presidente Roosevelt em 1942. Em julho de 1947, o secretário do Tesouro dos EUA, John Snyder, visitou o Brasil a convite do ministro Correia e Castro, da Fazenda, que lhe apresentou um memorial pleiteando empréstimos destinados a “regularizar a situação financeira e a promover o desenvolvimento econômico do Brasil”. O resultado foi a instalação, no ano seguinte, da Comissão Técnica Mista Brasil-Estados Unidos.

A comissão foi co-presidida pelo representante brasileiro Otávio Gouveia de Bulhões e pelo representante americano John Abbink, de quem tomou o nome, e contou com a participação de técnicos e empresários de ambos os países. O relatório da Missão Abbink procurava definir quais seriam os principais “pontos de estrangulamento” da economia brasileira e oferecer soluções para esses problemas, mas não passou do diagnóstico. Não se desdobrou diretamente em nenhum projeto concreto, nem contribuiu para a concessão de nenhum empréstimo ou financiamento. Entretanto, influenciou a política governamental com sua visão conservadora, que privilegiava a estabilidade financeira, considerando-a o fator fundamental para o desenvolvimento econômico. Identificava nos aumentos salariais uma das causas principais da inflação e defendia, por outro lado, a restrição do crédito. Recomendava enfaticamente a cooperação do capital estrangeiro nos setores de combustíveis, energia e mineração.

A Missão Abbink realizou seus trabalhos e apresentou suas conclusões num período de definição da estratégia econômica do país, operando no sentido de uma adequação ainda maior da política de Dutra à estratégia econômica dos Estados Unidos. Em 1946-1947, a política econômica do governo brasileiro atendeu ao setor exportador. A cotação elevada do cruzeiro que havia prevalecido durante a guerra foi mantida para não provocar a queda dos preços externos do café. A reintrodução dos controles cambiais (mantendo-se elevada a cotação do cruzeiro), em junho de 1947, estancou a importação desenfreada de bens de consumo, em geral suntuários. Tornou-se quase impossível importar o que já se fabricava no país. Essa política favoreceu muito a acumulação de capital industrial, que se fazia através da transferência de renda do setor exportador para o industrial. Mas os conflitos entre os dois setores só iriam se acirrar em meados da década de 1950, quando os preços externos do café começaram a cair. Para muitos analistas, a “industrialização espontânea” que tomou impulso na segunda metade do governo Dutra — e que prosseguiu em moldes semelhantes durante o governo Vargas, com intenções e conotações diferentes — teria sido a base sobre a qual se ergueu o Programa de Metas do presidente Juscelino Kubitschek, orientado, este, pelo ideário do desenvolvimentismo.

Em maio de 1949, antes da publicação do relatório da Missão Abbink, Dutra fez uma viagem aos Estados Unidos, atendendo a um convite feito por Truman em 1947. Embarcou no dia 17 e retornou dez dias depois. A despeito dos esforços do chanceler Raul Fernandes para que a viagem tivesse conseqüências econômicas mais relevantes, isto não aconteceu, e ela praticamente não passou de uma visita de cortesia. As autoridades norte-americanas lamentaram a não-aprovação do Estatuto do Petróleo. No dia 18 de maio, um memorando do secretário de Estado interino James Webb para Truman observava que “o Brasil tem boas possibilidades petrolíferas, mas, devido a uma campanha de pressões desenvolvida por comunistas e nacionalistas extremados, uma lei de petróleo que permitiria a entrada no país de companhias exploradoras ainda não foi aprovada”. O memorando recomendava que não fosse prestada ajuda governamental norte-americana no setor, porque capitais privados estavam prontos para entrar no Brasil “se e quando o Congresso aprovar uma lei adequada”.

Também foi discutida a renovação de um acordo sobre o fornecimento de monazita pelo Brasil. O acordo, secreto, fora firmado em julho de 1945, com duração de três anos. Deveria ser renovado por um período de 30 anos, mas a Constituição de 1946 não permitia a assinatura de acordos secretos. Como o governo norte-americano insistisse na necessidade de o acordo permanecer secreto, ele não foi renovado durante o governo Dutra, vindo a sê-lo novamente, por três anos, em 1952, quando João Neves da Fontoura era ministro das Relações Exteriores de Vargas, como uma espécie de compensação pela recusa brasileira em enviar tropas para a Guerra da Coréia.

Entre março e maio de 1949, o general Newton Cavalcanti, que chefiava o Departamento Geral de Administração do Ministério da Guerra, assumiu a pasta em caráter interino, durante uma viagem do general Canrobert. Em abril de 1950, Newton Cavalcanti substituiria o general Valdetaro de Amorim na chefia do Gabinete Militar da Presidência e, conseqüentemente, na secretaria do Conselho de Segurança Nacional.

Em junho de 1949 Correia e Castro pediu demissão do Ministério da Fazenda e foi substituído pelo industrial Guilherme da Silveira Filho. O episódio começou com uma denúncia do deputado João Café Filho, do PSP do Rio Grande do Norte. Em 1947, quando o secretário norte-americano John Snyder esteve no Brasil, o ministro Correia e Castro lhe entregou uma carta em que colocava o Brasil na condição de “amigo necessitado” e afirmava: “Ou os Estados Unidos estendem a mão, ou terão de carregar-me às costas.” Mais tarde, a carta figurou na primeira versão do relatório da Missão Abbink como uma espécie de prefácio. Quando Café Filho denunciou na Câmara sua existência, o governo tentou retirá-la do relatório, mas o deputado possuía um exemplar do texto original. Consultado pelo embaixador brasileiro em Washington, o secretário norte-americano já concordara em desmentir a existência da carta mas quem não quis fazê-lo foi Correia e Castro, que preferiu sair do governo.

 

A volta de Vargas

O ano de 1950 foi dominado pela campanha eleitoral. Vargas preparava sua volta desde as eleições de 1945, quando sua própria votação e a hegemonia do PSD mostraram a força do sistema de poder que ele criara. No primeiro momento, porém, o grande pretendente pessedista ao cargo foi Nereu Ramos, vice-presidente da República, presidente do partido e homem com grande passagem entre as forças políticas do país, apesar de pertencer a um estado pequeno, Santa Catarina. Nereu se considerava o “candidato natural” do PSD, mas o Acordo Interpartidário foi fatal para suas pretensões, porque deixava a Dutra grande poder de influência no processo sucessório e mantinha acesas as esperanças do udenista Otávio Mangabeira.

Como observou Afonso Arinos de Melo Franco, “efetuado com vistas à sucessão presidencial, o acordo mostrou-se inviável e esboroou-se justamente ao impacto do problema sucessório”. O acordo foi feito em nome dos partidos mas havia sido negociado acima deles. “Desde logo revelou-se que a massa udenista opunha-se ao arranjo político que lhe debilitava as bases eleitorais animadas do espírito de oposição, e a massa pessedista também se opunha a uma partilha, que reputava injusta, do poder que considerava ter conquistado nas urnas. Em resumo: as realidades eleitorais eram mais fortes que as combinações entre os eleitos.”

Dutra era contrário à candidatura de Nereu. Queria alguém que fosse menos ligado a Vargas e mais aceitável para a UDN, alguém que representasse a continuidade de seu próprio esquema. A questão sucessória começou a ser objeto de negociações em outubro de 1948, quando o PSD mineiro, favorecendo a oposição de Dutra ao nome de Nereu, procurou a seção da UDN no estado para propor que o candidato de “união nacional” fosse um nome de Minas Gerais, cabendo a presidência da República ao PSD e o governo do estado à UDN. No início de 1949 foi formada uma comissão composta pelos presidentes do PSD (Nereu), da UDN (José Eduardo do Prado Kelly) e do PR (Bernardes) para discutir o problema, mas houve impasse, porque às pretensões de Nereu era contraposto o nome do pessedista mineiro José Francisco Bias Fortes, apoiado por Dutra.

Diante da situação criada, as seções mineiras dos três partidos resolveram deixar a solução do problema a cargo do presidente, desde que o escolhido fosse de Minas Gerais: foi a “fórmula mineira”, contrária aos objetivos de Nereu. Em agosto de 1949, os diretórios dos três partidos em Minas firmaram um acordo em que se decidia a adoção de uma candidatura comum. De fins de setembro a fins de outubro, Nereu, Prado Kelly e Bernardes voltaram a se reunir, infrutiferamente, e nas semanas seguintes o presidente do PSD procurou articular sua candidatura. Entretanto, Dutra agiu em sentido contrário. Segundo depoimento de Ernâni Amaral Peixoto, instruiu Benedito Valadares para que afirmasse que o PSD mineiro não aceitava Nereu, advertindo ao mesmo tempo os interessados nessa candidatura de que ela não era viável devido ao veto de Minas Gerais.

Em 12 de novembro, Nereu teve uma audiência com Dutra, que se negou a assumir um compromisso formal com o PSD e chegou pouco depois a ventilar o nome do governador mineiro, o udenista Mílton Campos, provocando o rompimento político entre ambos. No dia 21, em reunião da comissão diretora nacional do PSD, Benedito Valadares apresentou a “fórmula mineira” e sugeriu que a escolha fosse realizada entre os nomes de Bias Fortes, Carlos Luz, Israel Pinheiro e Ovídio de Abreu. Eliminara da lista Cristiano Machado, cujo nome era simpático à UDN (mas não a Dutra, por ter votado contra a cassação dos mandatos dos comunistas em 1948), para que, de fato, não se chegasse a acordo algum. A fórmula foi apoiada pelo general Góis Monteiro, que na mesma época recebeu emissários de Vargas e de Ademar de Barros e lhes declarou que os militares não impediriam a posse de Getúlio, caso ele fosse eleito, desde que respeitasse a Constituição e os “direitos impostergáveis” da corporação.

No dia 26, a direção do PSD aprovou a “fórmula mineira”, levando Nereu a renunciar à presidência do partido em protesto contra a interferência do governo na questão sucessória. No mesmo dia, João Neves da Fontoura declarou que a “fórmula mineira” havia sido elaborada por Dutra e pelo ministro da Justiça, Adroaldo Mesquita da Costa, à revelia e contra a vontade do partido. “Por muito menos”, afirmou, “formou-se a Aliança Liberal”.

Na UDN, grupos mais ortodoxos vinham trabalhando por uma segunda candidatura de Eduardo Gomes, considerando que o eleitorado iria se dividir em três correntes — a trabalhista, com Vargas, a pessedista, com um nome do partido, e a udenista —, e que essa divisão daria a maioria relativa ao brigadeiro. Otávio Mangabeira tinha, como se sabe, outro esquema em mente: a manutenção da aliança tripartidária e o isolamento do PTB. No início de dezembro, sem esperanças de ver realizadas suas aspirações e irritado com Dutra, proclamou a fatalidade da candidatura do brigadeiro, “muito possivelmente seguro, no íntimo, de seu insucesso”, como escreveu Afonso Arinos. Ao mesmo tempo, Amaral Peixoto propôs a Vargas a formação de uma coligação entre o PTB e o PSD para levar à presidência “um grande nome nacional”. Mas, enquanto o PSD se inclinava pela “fórmula Jobim”, proposta de entendimento geral elaborada pelo governador gaúcho Válter Jobim, Vargas estabelecia um acordo com Ademar de Barros. Ademar pensara em ser candidato mas desistira da idéia à luz dos resultados de pesquisas de opinião que mandara realizar, e também para não entregar o governo de São Paulo a seu vice Novelli Júnior, durante a campanha.

O estado-chave para a compreensão da definição do jogo sucessório foi Minas Gerais. Os pessedistas mineiros queriam que o candidato oficial saísse de suas fileiras, sob o argumento de que constituíam a seção mais forte do partido. Quando Dutra cogitou do nome de Mílton Campos, este declinou e indicou o de Afonso Pena Júnior, filho do ex-presidente da República e apartidário. Mas Afonso Pena Júnior tendia muito mais para a UDN do que para a neutralidade, e o PSD mineiro anunciou que não aceitaria sua candidatura. A partir desse momento, o Acordo Interpartidário se desmantelou.

A insistência do PSD mineiro em indicar um nome próprio para a presidência da República decorreu da convicção de Benedito Valadares de que isso iria reunificar o partido, que se dividira em 1947, dando a vitória a Mílton Campos. Tal insistência vinha ao encontro do interesse de Dutra em vetar o nome de Nereu. Quando Válter Jobim propôs o nome de Cristiano Machado, que era do PSD independente (a facção que se aliara à UDN em 1947), Valadares exultou. Cristiano Machado não fora um bom nome quando podia funcionar como ponte entre o PSD e a UDN, mas agora que a UDN já tinha candidato significava a possibilidade de reunificação do PSD. Valadares sabia que Cristiano perderia, mas sabia também que o governo do estado voltaria às mãos do PSD, mais precisamente às mãos da facção pessedista derrotada em 1947, o que de fato aconteceu com a vitória de Juscelino Kubitschek.

Resta saber por que Dutra não impugnou, em nome do Acordo Interpartidário, o veto do PSD mineiro ao nome de Afonso Pena Júnior. Talvez porque isso não tivesse em seu poder: já em 1947, não conseguira fazer com que o candidato pessedista ao governo do estado fosse Carlos Luz ou, alternativamente, o ex-presidente Venceslau Brás. Acabou sendo indicado Bias Fortes, que o PSD independente, ligado a Dutra, abandonou. É possível que Dutra tenha julgado que os resultados de 1947 (que ele considerava muito positivos) se repetiriam em 1950, com a eficácia do poder garantindo a eleição de Cristiano Machado, o nome que finalmente foi aceito pelo PSD mineiro.

Mas Getúlio Vargas, mesmo correndo por fora, na raia do PTB, era uma realidade muito forte para que o PSD não percebesse o rumo que iam tomando os acontecimentos, o PSD — e esta terá sido uma das características marcantes do partido em tantas ocasiões — aderiu a uma espécie de fato consumado em potencial. Afonso Arinos escreveu que os pessedistas — sem cometer o erro udenista de achar que Getúlio tiraria do PSD apenas os votos capazes de levar Cristiano à derrota e Eduardo Gomes à vitória — preferiram “entregar o anel da presidência desde que pudessem conservar os dedos do domínio local”. Resolveram “permitir acordos em que o seu candidato nacional era sacrificado, mediante barganhas nas quais os seus candidatos locais eram favorecidos. Getúlio comandou pessoalmente essa manobra de grande envergadura”.

A proximidade das eleições provocou novas e derradeiras mudanças no ministério de Dutra. O primeiro a sair, no fim de março de 1950, foi o ministro da Viação Clóvis Pestana, substituído pelo chefe do Gabinete Militar, general Valdetaro de Amorim. No início de abril, Adroaldo Mesquita da Costa deixou o Ministério da Justiça. Em agosto, depois da passagem de dois ministros interinos pela pasta, ela seria ocupada por Bias Fortes. No final de abril foi a vez de Daniel de Carvalho transmitir o Ministério da Agricultura a Antônio Novais Filho. Em meados de maio, Clemente Mariani deixou a pasta da Educação, para a qual seria nomeado, em agosto, Pedro Calmon. Em fins de junho, Dutra nomeou Marcial Dias Pequeno para substituir Honório Monteiro no Ministério do Trabalho.

A definição formal do processo sucessório ocorreu a partir de 19 de abril de 1950, quando a direção da UDN decidiu submeter a candidatura de Eduardo Gomes à homologação da convenção nacional do partido. No mesmo dia, Vargas aceitou o lançamento de seu nome pelo PTB, feito por João Goulart na comemoração do aniversário do ex-presidente, em São Borja (RS). Em 17 de maio, o PSD lançou oficialmente o nome de Cristiano Machado, submetendo-o igualmente à aprovação da convenção nacional. Na véspera, a chapa dos generais Newton Estillac Leal e Horta Barbosa derrotou a chapa liderada pelo general Osvaldo Cordeiro de Farias nas eleições para a diretoria do Clube Militar, dando considerável alento à campanha de Getúlio, lançada um mês depois, num ato espetacular nas escadarias do palácio Ipiranga, em São Paulo, pelo governador Ademar de Barros. A chapa de Vargas foi completada com o nome do pessepista Café Filho.

Vargas fez sua campanha através do PTB, da aliança com o PSP — absolutamente decisiva — e dos acordos locais com o PSD. Defendeu sua atuação entre 1930 e 1945, voltada, segundo suas próprias palavras, para a transformação em nação industrial de uma nação, “paralisada pela miopia dos governantes aferrados à monocultura extensiva e à exploração primária de matérias-primas”. Tratava-se agora de “renovar o impulso perdido em 1945”, lutando contra os “empedernidos e míopes apóstolos da involução, os apologistas da estagnação e do marasmo”. Segundo Thomas Skydmore, Vargas poupou Dutra em seus ataques, mas não o ministro da Fazenda, Guilherme da Silveira Filho, a quem chamou de “grande organizador de derrotas”.

Dutra, por seu turno, empenhou-se na campanha de Cristiano Machado com afinco, mas de pouco adiantou tentar contrapor sua condição de presidente ao carisma de Getúlio e mesmo ao ímpeto dos brigadeiristas. Quanto a Eduardo Gomes, com quem realmente Vargas se defrontou, não chegou sequer a ameaçar a vitória do ex-presidente. Era um candidato marcado pela derrota. No afã de mobilizar o que fosse possível contra Getúlio, chegou a aceitar ostensivamente o apoio dos integralistas a seu nome, não se furtando a participar de comícios eleitorais na companhia de Plínio Salgado. Em relação a 1945, aparecia com sinal trocado, perdendo o apoio de ponderáveis contingentes de intelectuais e jovens que haviam apoiado a UDN como símbolo da luta contra o Estado Novo.

Em 3 de outubro de 1950, Getúlio recebeu quase três milhões e 850 mil votos (48,7% dos votos dados aos quatro candidatos — João Mangabeira também concorreu, pelo Partido Socialista Brasileiro), enquanto Eduardo Gomes recebeu menos de dois milhões e 350 mil votos (29,6%). Cristiano Machado obteve um pálido terceiro lugar, com pouco menos de um milhão e setecentos mil votos (21,5%). O abandono de Cristiano pelo PSD criou uma nova acepção para o vocábulo “cristianizar”. Até em Minas Gerais ele ficou em terceiro lugar, com 32,2% dos votos, percentagem semelhante à de seus contendores.

Em Minas, o PSD obteve 38% das legendas para deputados federais (e o PTB apenas 13%). O mesmo fenômeno se repetiu em muitos estados, sendo exemplos expressivos os do Rio de Janeiro sob o comando pessedista de Amaral Peixoto (Cristiano, 8,5%; legendas do PSD, 34%) e do Distrito Federal (Cristiano, 5%; legendas do PSD, 13,5%). Em São Paulo, Vargas recolheu quase 1/4 de sua votação nacional (mais de novecentos mil votos), abiscoitando nada menos que 64% dos votos dados aos candidatos, embora o PSP e o PTB, somados, não tenham passado dos 47% das legendas para a Câmara dos Deputados. Os votos de Getúlio em São Paulo representaram quase três vezes a votação de Eduardo Gomes e seis vezes a de Cristiano Machado. Também no Distrito Federal o apoio da máquina ademarista se fez sentir, dando a Vargas, em associação com a forte influência petebista, mais que o dobro dos votos do candidato udenista, e nada menos que 12 vezes os do candidato pessedista. Embora o PCB tenha dado a seu eleitorado a orientação do voto em branco, a tendência geral dos eleitores comunistas foi a de sufragar o nome de Getúlio.

Para a vice-presidência foi eleito Café Filho, com menos de duzentos mil votos de vantagem sobre o candidato da UDN, Odilon Braga. Os udenistas e setores militares golpistas tentaram impedir a posse de Vargas argüindo a tese da maioria absoluta, que ele não chegara a obter, ao contrário de Dutra. Embora este não se tenha pronunciado sobre a questão, sua postura prática foi legalista. Nada fez para impedir a transmissão da presidência a Getúlio.

 

A passagem do governo

Na faixa do ensino primário, durante o governo Dutra foram firmados acordos entre o governo federal e os estados (atuando estes em colaboração com os municípios) visando à construção de mais de sete mil escolas rurais (das quais mais de quatro mil foram efetivamente edificadas até o início do ano letivo de 1951). Segundo a mensagem presidencial enviada ao Congresso em março de 1950, o número de alunos matriculados em relação ao número de habitantes em idade escolar passou de 70 por mil, em 1937, para 80 por mil, em 1950 (o índice era em 1889 de 18 por mil). Foram criados cerca de 16 mil cursos de alfabetização de adultos, dos quais 1/3 na zona rural. O governo Dutra construiu edifícios para seis escolas industriais e fez melhoramentos em outros sete. Além disso, criou os hospitais de clínicas de Salvador e Porto Alegre, facilitando a continuação das obras das cidades universitárias de Belo Horizonte e da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. Foi em seu governo que tiveram início as obras da cidade universitária da ilha do Fundão, no Rio.

Por outro lado, o governo Dutra regulamentou a legislação sobre o imposto sindical. Nas palavras do almirante Sílvio Noronha, que foi seu segundo ministro da Marinha, em discurso pronunciado em 1955, na comemoração do aniversário de Dutra, seu governo orgulhou-se de ter assegurado “as aspirações legítimas do proletariado, sem afetar a produtividade do trabalho, sufocando-se assim, no nascedouro, greves e veleidades de luta de classe e animando-se, em oposição, as tendências naturais do tão necessário entendimento e leal colaboração entre o capital e o trabalho, em benefício de ambos, e principalmente da riqueza do Brasil”. No terreno social, Dutra criou em maio de 1946 a Fundação da Casa Popular, cujo funcionamento efetivo começou em agosto de 1947 e não ultrapassou a marca das 50 mil moradias construídas em seu governo.

Coube a Dutra implantar o Fundo Rodoviário Nacional, criado pelo governo Linhares. Seu governo criou também, e colocou em funcionamento, o Conselho de Economia Nacional. Sua política econômica e financeira foi muito criticada. Na campanha eleitoral de 1950, Vargas chamou a atenção para o fato de que as emissões monetárias, no governo Dutra, cresceram tanto quanto nos 15 anos anteriores. Também o jornal norte-americano The New York Times criticou a administração de Dutra pela inflação que não soubera conter. Igualmente criticada, dessa feita no Brasil, foi a extinção do Departamento Nacional do Café, decidida por Dutra em 1946, no contexto de uma política antiintervencionista no setor. A política cambial adotada a partir de 1947 prejudicou os produtores e exportadores de café, já que a taxa fixa de câmbio pela qual eram convertidas suas receitas cambiais não refletia o aumento dos custos internos de produção e comercialização, em face do aumento da taxa de inflação. Em 1949, entretanto, houve uma liquidação dos estoques do produto, liquidação que, associada a outros fatores, permitiu ao Brasil, principal produtor, exercer pressão sobre o mercado e desencadear uma alta dos preços. Nesse ano, a exportação de café bateu recordes, chegando a quase 20 milhões de sacas.

A política militar de Dutra seguiu a trilha aberta em sua gestão no Ministério da Guerra. Continuaram os esforços para armar e equipar o Exército com material de fabricação nacional. A preocupação das forças armadas com a chamada segurança nacional começou a se corporificar em doutrina. Grande número de oficiais das três armas fez cursos dos mais diversos tipos nos Estados Unidos.

A Aeronáutica recebeu atenções especiais, com a criação e a entrada em funcionamento da Escola de Comando e Estado-Maior da arma, do Curso Preparatório de Cadetes de Barbacena (MG), das escolas de especialistas e técnicos de Guaratinguetá (SP), Curitiba e Natal, da Escola de Tática Aérea, em São Paulo, e do Centro Técnico da Aeronáutica, em São José dos Campos (SP). Mais de trezentos aviões foram incorporados à Força Aérea Brasileira. Foi adquirido o antigo prédio do Ministério, no Rio, e modernizado o aeroporto internacional do Galeão, também na então capital federal.

A Marinha de Guerra, por seu turno, adquiriu diversos navios, entre os quais os cruzadores Barroso e Tamandaré, incorporando ainda seis submarinos e quatro contratorpedeiros; tratou-se, em praticamente todos os casos, de unidades norte-americanas que haviam sido usadas durante a guerra. Foi criado o Colégio Naval e iniciada a construção do Centro de Instrução do Corpo de Fuzileiros Navais, ambos no Rio de Janeiro.

Em janeiro de 1950, Dutra enviou ao Congresso um projeto de reforma dos militares, de conotação inequivocamente anticomunista, instrumento contra a participação de militares em campanhas nacionalistas e pacifistas. Previa a reforma dos militares que “pertencerem, forem filiados ou propagarem as doutrinas de associações ou partidos políticos que tenham sido impedidos de funcionar legalmente”. Para a lei, seriam “atos de filiação ou atividades ligadas a partidos ou associações impedidos de funcionar legalmente” a inscrição, ostensiva ou clandestina, como membro delas, a prestação ou angariação de valores em seu benefício ou a colaboração por qualquer forma em suas atividades. A lei se aplicaria também às polícias militares dos estados e do Distrito Federal. Com a evolução dos acontecimentos nacionais, não chegou a tramitar no parlamento e foi arquivada.

Em dezembro do mesmo ano, Dutra foi promovido a marechal na reserva. Em janeiro de 1951, aprovou a Lei nº 1.310, que subordinou todas as atividades referentes ao aproveitamento da energia atômica ao controle direto do Estado, através do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), criado pela mesma lei. Outras leis importantes aprovadas durante seu governo foram a que incorporou a plataforma submarina ao território nacional e a que nacionalizou as jazidas de xisto.

Antes de passar o governo a Vargas, Dutra encontrou-se com o presidente eleito na casa de Góis Monteiro (que iria ocupar a chefia do EMFA no novo governo) e expressou sua insatisfação com a escolha dos futuros ministros da Guerra (Estillac Leal) e da Aeronáutica (Nero Moura). Este foi um dos tantos pontos de atrito que se interpuseram entre os dois governos. Com freqüência, nos anos seguintes, atribuíram-se à política econômico-financeira de Dutra as dificuldades enfrentadas por Vargas em seus dois primeiros anos de governo constitucional.

Em discurso pronunciado a seus camaradas militares no encerramento de manobras realizadas pela 1ª RM em novembro de 1950, Dutra assinalava uma característica marcante de seu governo: o respeito, em seus contornos gerais, ao ordenamento constitucional do país. Depois de garantir que seu governo jamais se demorara a executar qualquer deliberação do Congresso, nem deixara de cumprir qualquer decisão do poder judiciário, afirmou:

“Tenho a felicidade, de que outros se não beneficiaram, de atingir a última etapa do mandato presidencial sem necessitar de invocar o estado de sítio... Há clima de liberdade para todos. Não há na República presos políticos.” Prosseguia lembrando que “a imprensa exerce seu direito de crítica”, sem deixar de acrescentar que alguns o levavam “a excessos injustificáveis”, mas acentuando que o governo tinha preferido não solicitar sanções judiciais. Ressaltava a prática da democracia pelos três poderes, “sob o império da lei”, e aduzia, em relação às eleições do mês anterior, que “não sofreu a mais leve dúvida o fato de que o governo prestigiou, deliberada e incondicionalmente, a Justiça Eleitoral na preparação e na realização do pleito”. Com seus votos para que tal não acontecesse, insinuava que a mesma linha poderia não ser observada no futuro, e finalizava com uma exortação para que “as instituições democráticas continuem a enraizar-se, cada vez mais, na terra brasileira”.

Em janeiro de 1951, em novo discurso de confraternização com as forças armadas, Dutra voltou a enfatizar dois aspectos que marcaram seu governo — o anticomunismo calcado na “segurança interna” e o respeito à legalidade constitucional: “Maior perigo representa a infiltração incaracterizada e solerte dos que atacam sub-repticiamente as raízes da nacionalidade. Vinda de fora, essa penetração antecede e prepara a ação militar — que demora por vezes, mas se socorre sempre desses vanguardeiros cuja missão é tirar, à presa assinalada, a vontade de resistir, lutar e vencer... Peço-vos, pois, que nos juntemos para saudar, nesta hora e sempre, a Constituição e as instituições republicanas e democráticas do Brasil, condição de união e tranqüilidade para o nosso povo e de força para a nação!” Dutra também passaria à história como o presidente venerador da Constituição, que ele chamava “o livrinho”, e, dizia-se, tinha sempre à sua mesa de cabeceira.

Em 31 de janeiro de 1951, Dutra passou o poder a Vargas com um discurso seco, no qual sequer se referiu nominalmente a seu sucessor e antecessor. Como em sua posse, envergava uma farda de gala. Entretanto, desde que Artur Bernardes transmitira o governo a Washington Luís, em 1926, Dutra foi o primeiro presidente eleito pelo voto direto a dar posse a seu sucessor.

 

Em casa, mas influente

Depois que deixou a presidência da República, Dutra levou muitos anos sem ter atuação política formal, apesar de continuar pertencendo ao PSD, partido ao qual se filiara para a campanha eleitoral de 1945. Isso não o impediu de continuar exercendo influência entre militares e políticos civis que a ele se haviam ligado durante seu governo. Em sua casa da rua Redentor, no bairro carioca de Ipanema, fizeram-se incontáveis reuniões nos vinte e poucos anos que decorreram até seu falecimento, quer em caráter rotineiro, como um hábito de correligionários, quer em momentos de crise nacional, sobretudo às vésperas do movimento de 1964.

Havia um PSD “dutrista”, integrado por funcionários de seu governo, como o carioca Lopo Coelho (de seu Gabinete Civil), ou pessedistas que nunca se submeteram a Vargas, como os gaúchos Tarso Dutra, Ildo Meneghetti, Clóvis Pestana, Válter Peracchi Barcelos. Seus correligionários pessedistas foram sobretudo pessoas que ocuparam cargos governamentais em seu governo e se viram às voltas, depois, com inquéritos administrativos mandados instaurar por Vargas a partir de 1951: Vitorino Freire (negócios com o Banco do Brasil), Armando Falcão (presidente do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos) e o próprio Clóvis Pestana, ex-ministro da Viação (inquérito sobre a encampação das ferrovias Ilhéus-Conquista e São Paulo Railway). Esses, entre outros, estreitaram seus laços com Dutra para se defender de Getúlio, ou para atacá-lo.

Até 1964, Dutra observou um mutismo proverbial: evitou entrevistas e declarações à imprensa, preferindo exercer a interferência possível no processo político através de sua intimidade com a hierarquia militar e com as cúpulas dos partidos conservadores, e através de seu círculo próprio de influência. Essa regra foi quebrada, entretanto, em alguns momentos críticos. Ele participou discretamente da conspiração militar-udenista para depor Getúlio, mas essa discrição não o impediu de ser muito ativo nem de comparecer ao enterro do major-aviador Rubens Vaz, morto no Atentado da Toneleros, de 5 de agosto de 1954, contra Carlos Lacerda. Tampouco impediu-o de declarar à imprensa, em 21 de agosto, três dias antes do suicídio de Vargas, que a única solução para a crise política seria a renúncia do presidente.

Em fins de abril de 1955, após o estabelecimento do acordo entre o PSD e o PTB para a composição da chapa Juscelino-João Goulart, com vista à eleição presidencial de outubro seguinte, Dutra deu entrevista a O Globo manifestando-se contrário à indicação de Goulart para concorrer à vice-presidência. Em seguida, formalizou seu veto a essa candidatura, o que levou a ala “dutrista” do PSD do Distrito Federal a se ausentar da convenção nacional do partido que homologou a chapa, em 10 de junho (ausentaram-se também as delegações de Pernambuco, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul além de uma parte da do Ceará).

Menos discreta, em matéria de conspirações, foi sua participação na que levou ao movimento de 1964. Dutra abriu as portas de sua casa aos conspiradores e tomou parte ativa na deposição de João Goulart. Em 18 de março de 1964, cinco dias após o chamado comício das reformas realizado pelas forças governistas no Rio, fez ao Jornal do Brasil uma declaração que foi percebida como um claro sinal da iminência de um desfecho militar para a crise (um grande “toque de alvorada”, como disse o general Humberto Castelo Branco).

“Não posso me furtar”, declarou então, “a fazer um apelo à lucidez e ao tradicional bom senso dos meus compatriotas, no sentido de que se unam aos democratas, enquanto é tempo, a fim de evitar o advento de condições que lancem o Brasil no desastre da irremediável secessão interna. O respeito à Constituição é a palavra de ordem dos patriotas. A fidelidade à lei é o compromisso sagrado dos democratas perante a nação.” Utilizando conceitos como “desordem”, “sobressalto”, “clima de desentendimento” e “subversão”, concluía sua declaração indicando os requisitos para a “garantia essencial de um Brasil firme na perenidade de seu destino cristão, livre do comunismo e tranqüilo quanto ao futuro”. Tais requisitos estariam no respeito à ordem constitucional vigente.

O desfecho militar ocorreu dias depois. Em 1º de abril de 1964, com a chegada ao Rio de Janeiro das tropas mineiras sublevadas, o presidente Goulart abandonou o país. No dia seguinte, Pascoal Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, foi formalmente empossado na presidência da República. Mas a ordem constitucional fora atropelada. O poder real passou a ser exercido pelo autodenominado Comando Supremo da Revolução, triunvirato integrado pelos oficiais-generais que haviam assumido as três pastas militares: general Artur da Costa e Silva, almirante Augusto Rademaker e brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo.

A partir do dia 3, iniciou-se no Rio uma série de reuniões em que os líderes militares e civis do movimento vitorioso procuraram um nome que, sendo capaz de conciliar todas as tendências do bloco vencedor, assumisse a presidência da República. No Congresso expurgado por cassações, que seria chamado a eleger indiretamente o novo presidente, o PSD era a força majoritária. O partido, cuja figura exponencial era então o ex-presidente Kubitschek, considerava com simpatia o nome do general Castelo Branco, chefe do EME, mas lançou ao mesmo tempo o nome de Dutra. Outros nomes cogitados eram os dos generais Amauri Kruel, lançado pelo governador paulista Ademar de Barros, e Odílio Denis.

Ainda em 4 de abril, Carlos Castelo Branco escreveu no Jornal do Brasil que Juscelino manobrava para estabelecer uma aliança entre o PSD e o PTB, “visando assegurar a eleição de um novo presidente, civil ou militar, capaz de desviar a revolução vitoriosa dos caminhos da intolerância que estariam sendo trilhados por alguns de seus chefes civis e militares”. O jornalista acrescentava que, “tendo o general Costa e Silva levantado a preliminar da incompatibilidade dos chefes da revolução, o marechal Dutra tornou-se o mais provável candidato”. Também Luís Viana Filho afirma que o nome de Dutra se tornou o mais cotado, e que ele acabou aceitando, depois de relutar, a indicação, autorizando o então deputado Armando Falcão, do PSD do Ceará, a iniciar negociações com o PSD carioca e com o presidente nacional do partido, Amaral Peixoto.

A comunicação formal da candidatura de Dutra foi feita em 8 de abril pelo marechal Mendes de Morais, em Brasília, e pelo próprio Dutra, no Rio, em visita ao Ministério da Guerra. Segundo Carlos Castelo Branco, essa candidatura “encontrou os chefes do PSD, notadamente o senhor Juscelino Kubitschek, formalmente comprometidos com o nome do general Castelo Branco”. Juscelino passou a receber pressões de correligionários pessedistas no sentido de mudar sua opção, inclusive sob o argumento de que a candidatura de Castelo era patrocinada por setores udenistas que o agrediam sem cessar. O mesmo autor observou, ainda no Jornal do Brasil de 9 de abril, que “a demora da decisão política da revolução vitoriosa e os sintomas de divisão é que teriam levado o marechal Dutra a assumir a iniciativa de tentar empolgar o governo, como meio de assegurar a rápida consolidação da situação”. Para Juscelino, o problema central consistia em obter garantias de que sua candidatura à eleição presidencial de 1965 — candidatura aprovada pelo PSD em convenção nacional realizada em março anterior, e na qual o nome de Dutra também fora lembrado — não seria vetada.

No mesmo dia 9, porém, com a revelação do apoio dado pelos clubes Militar e Naval ao nome de Castelo Branco, Dutra resolveu retirar sua candidatura, que acabou tendo uma função meramente simbólica, a de mostrar, didaticamente, que o regime que se ia inaugurando em 1964 tinha realmente, do ângulo da presença militar, pontos de contato com seu próprio período presidencial. No dia 10, escreveu a Castelo uma carta onde comunicava a sua decisão, colocando-se à sua disposição e desejando-lhe uma “fecunda administração”. Consolidada a posição eleitoral de Castelo, com o apoio formal dos principais partidos, os adeptos de Dutra e de Kruel ainda tentaram estabelecer um acordo que provocasse a realização de um segundo turno, por falta de maioria absoluta no primeiro, mas Dutra repeliu a idéia. Castelo Branco foi eleito tranqüilamente em 11 de abril, com 361 votos, contra dois dados a Dutra e três dados a Juarez Távora.

Dutra, que tinha mais de 80 anos de idade, afastou-se novamente do palco, mas sua casa se tornou, segundo Luís Viana Filho, “a Meca do PSD. A maioria das reuniões que resultavam em importantes decisões partidárias eram realizadas em sua casa”. O autor cita como exemplo as gestões feitas no início de 1965 em torno da candidatura pessedista à presidência da Câmara dos Deputados. Das reuniões na casa de Dutra saiu o nome de Válter Peracchi Barcelos, que acabou sendo derrotado, na convenção pessedista, pelo candidato à reeleição Ranieri Mazzilli.

Em 27 de outubro de 1965, como conseqüência da crise resultante da vitória dos candidatos oposicionistas nas eleições para os governos da então Guanabara (Francisco Negrão de Lima) e de Minas (Israel Pinheiro), o governo editou o Ato Institucional nº 2 (AI-2), que consolidou o autoritarismo do regime de exceção inaugurado com o primeiro ato institucional. Entre outras medidas, foram extintos os partidos políticos existentes e ditadas as restritivas condições para a criação de novas agremiacões, que foram apenas duas, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), frente das forças de oposição ao governo e ao regime. Para dar “um toque de grandeza à agremiação”, conforme escreveu Luís Viana Filho, foram incluídos no diretório nacional da Arena “ilustres personalidades nacionais”, entre as quais Dutra e outros oficiais-generais das três armas.

Segundo narrou Carlos Castelo Branco em sua coluna no Jornal do Brasil de 3 de julho de 1968, Dutra, em junho desse ano, afirmou perante o senador maranhense da Arena Vitorino Freire e outras pessoas que, “não fossem a tolerância, a transigência, o espírito democrático do marechal Costa e Silva [então presidente da República] e seu amor pela Constituição [de 1967], o país estaria a esta altura possivelmente sob estado de sítio e outras graves medidas de repressão”.

As qualidades e os esforços de Costa e Silva não bastaram para impedir a realização da hipótese prevista por Dutra. No dia 13 de dezembro de 1968 o país mergulhou no regime do AI-5, que teve entre suas conseqüências o estabelecimento de rigorosa censura à imprensa. Nessas condições, a atividade de Dutra tornou-se ainda mais obscura. Embora se saiba que sua casa continuou a ser freqüentada por políticos e militares, e que ele manteve contatos com a cúpula militar em momentos de crise, pouco se pode dizer sobre o sentido de sua atuação no ocaso de sua existência. Há no entanto indícios de que o rumo tomado pelos acontecimentos após a substituição de Costa e Silva por uma junta militar, em 31 de agosto de 1969, e durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, levou-o a apoiar a estratégia de dissensão política adotada pelo general Ernesto Geisel, substituto de Médici na presidência da República.

Eurico Gaspar Dutra faleceu em 11 de junho de 1974, no Rio de Janeiro, poucos meses após a posse de Geisel. Nos meses e anos seguintes, com o prosseguimento do processo de distensão e com a perspectiva de recondução do país à vida constitucional e democrática com um general no poder, o exemplo de Dutra em 1945 teve seus aspectos positivos hipertrofiados, com a finalidade de se mostrar à nação que tal tipo de transição seria possível e tinha mesmo um precedente histórico.

Dutra casou-se em 19 de fevereiro de 1914 com Carmela Leite, viúva do oficial Ulhoa Cintra, mãe de José Pinheiro Ulhoa Cintra, que fez carreira militar, chegando a general-de-divisão, e de Carmelita Ulhoa Cintra, que se casou com Luís Novelli Júnior, deputado constituinte em 1946, vice-governador de São Paulo entre 1947 e 1951, e novamente deputado federal pelo PSD paulista de 1951 a 1954. Eurico Dutra teve com Carmela Dutra dois filhos: Antônio João Dutra, militar e depois industrial, e Emília Dutra Leite, esposa de Mauro Renault Leite, deputado federal constituinte pelo Piauí em 1946 e ministro do Tribunal de Contas da União desde 1969. Carmela Dutra, conhecida como dona Santinha, faleceu em 1947.

Além dos livros já citados, escritos no início de sua carreira de oficial, Dutra escreveu numerosos discursos e mensagens, quer como ministro da Guerra, quer como presidente da República.

Sobre sua atuação como militar e político foram escritos os livros O general Dutra (1945) por Frederico Trota, Dutra, o presidente e a restauração democrática (1949), por José Caó, Dutra, história de um governo (1955), por Milcíades Mourão, O governo Dutra (compilação de discursos e mensagens, 1956), organizado por José Teixeira de Oliveira, O general Dutra e a redemocratização de 1945 (1978), por Osvaldo Trigueiro do Vale, e o opúsculo General Eurico Dutra, de Lima Figueiredo.

O arquivo de Eurico Gaspar Dutra encontra-se depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getulio Vargas.

Seu nome foi dado a dois municípios brasileiros. Em 1948, Curador (MA) passou a se chamar Presidente Dutra e posteriormente, na Bahia, a cidade de Lagoa Canabrava passou a município, com o nome de Presidente Dutra.

Mauro Malin

 

 

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