CARDOSO, Fernando Henrique

*sen. SP 1983-1992; min. Rel. Ext. 1992-1993; min. Faz. 1993-1994; sen. SP 1994; pres. Rep. 1995-2003

 

Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no dia 18 de junho de 1931, filho de Leônidas Fernandes Cardoso e de Naíde Silva Cardoso. Seu pai foi oficial do Exército, advogado e deputado federal (1955-1959) por São Paulo, eleito na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Seu bisavô paterno, brigadeiro Felicíssimo do Espírito Santo Cardoso, ligado ao Partido Conservador durante o Império, foi deputado e senador e, por duas vezes, assumiu o governo de Goiás. Seu avô Joaquim Inácio Batista Cardoso iniciava a carreira de oficial do Exército no Rio de Janeiro quando participou ativamente da proclamação da República em novembro de 1889. Seus tios paternos, Carlos Cardoso e general Felicíssimo Cardoso, exerceram, respectivamente, a presidência do Banco do Brasil (1960-1961) e a presidência do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (CEDPEN) (1953-1973). Dois parentes seus ocuparam o Ministério da Guerra: o tio-avô Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso (1932-1933), e o filho deste, Ciro do Espírito Santo Cardoso (1952-1954). Dulcídio do Espírito Santo Cardoso, também filho de Augusto Inácio, foi prefeito do Distrito Federal (1952-1954).

Fernando Henrique tinha dois anos de idade quando seu pai, nacionalista e positivista, tornou-se oficial-de-gabinete do general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, sucessor de Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso no Ministério da Guerra (1934-1935). Tendo iniciado seus estudos no Colégio Paulista, no Rio de Janeiro, com a transferência de seu pai para a 2ª Região Militar, sediada em São Paulo, mudou-se em 1940 para a capital paulista. Três anos depois, entrou para o Colégio São Paulo. Quando o regime do Estado Novo (1937-1945) entrou em crise, seu pai participou de campanhas pela anistia aos presos e perseguidos políticos e pela reconstitucionalização do país. Já na reserva, em 1948 o general Leônidas Cardoso foi um dos criadores do CEDPEN. Nessa época, Fernando Henrique começou a atuar na política estudantil.

Contrariando a tendência predominante em seu meio, segundo a qual os rapazes procuravam as faculdades de direito, medicina e engenharia, Fernando Henrique ingressou em 1949 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Aluno de professores franceses e da primeira geração de sociólogos brasileiros, na qual se destacava Florestan Fernandes, pouco antes de se licenciar em ciências sociais passou, em agosto de 1952, a lecionar história econômica geral e do Brasil na Faculdade de Economia da USP. No ano seguinte, casou-se com Rute Vilaça Correia Leite, especializou-se em sociologia na mesma faculdade em que se graduou e tornou-se auxiliar do professor francês Roger Bastide, ainda na USP.

Durante a campanha pela nacionalização da exploração do petróleo no país, que ficaria conhecida pelo lema “O petróleo é nosso” e resultaria na criação da Petrobras em 1953, acompanhou seu pai na organização de grupos de apoio, exercendo a função de tesoureiro de um deles. Em 1954, ano em que seu pai obteve o mandato de deputado federal por São Paulo na legenda do PTB, elegeu-se representante dos ex-alunos, tornando-se o mais jovem membro do Conselho Universitário da USP, condição na qual teria importante participação na reforma da instituição. Em janeiro de 1955, tornou-se assistente de Florestan Fernandes, que assumiu a cátedra de sociologia da USP após o retorno do professor Roger Bastide à França.

Simpatizante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), sem entretanto nunca se ter filiado a ele, Fernando Henrique colaborou com a imprensa partidária em meados da década de 1950, auxiliando na edição da revistaFundamentos. Com a invasão da Hungria pela União Soviética em 1956, acompanhou a tendência internacional de repúdio ao ato e afastou-se definitivamente do campo comunista. Em 1958, porém, aderiu a um grupo de estudos de O capital, de Karl Marx, obra fundamental da doutrina comunista. Criado por iniciativa de José Artur Giannotti, professor de filosofia, o círculo era composto apenas de pessoas amigas, entre elas Rute Cardoso, já professora de antropologia, e teve repercussões importantes na USP pela introdução do marxismo em vários domínios intelectuais.

Tendo obtido o título de doutor em ciências sociais em 1961 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no ano seguinte passou a integrar a direção do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), fundado na USP por Florestan Fernandes e Alain Touraine, sociólogo francês. Ainda em 1962, tornou-se presidente do conselho editorial da coleção Corpo e Alma do Brasil, criada pela editora Difusão Européia do Livro (Difel), que nesse mesmo ano publicou sua tese de doutorado, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, e nos anos seguintes editaria outros trabalhos seus.

A convite de Touraine, em 1962-1963 fez um curso de pós-graduação no Laboratoire de Sociologie Industrielle da Universidade de Paris. Na capital francesa, iniciou a redação de sua tese de livre-docência, defendida em 1963 na Faculdade de Filosofia da USP e editada em 1964 pela Difel com o título Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil.

 

Na Oposição ao Regime Militar

Com a deposição do presidente João Goulart (1961-1964) e a ascensão dos militares ao poder em consequência do movimento de 31 de março de 1964, Fernando Henrique esteve entre os professores e intelectuais perseguidos pela polícia política, tendo sido, inclusive, objeto de uma ordem de prisão. Durante muitos anos se desconheceu as acusações de que fora alvo. Apenas em 1996, quando começaram a ser organizados os arquivos do general Peri Bevilacqua — depositados no Museu Casa de Benjamin Constant, no Rio de Janeiro —, soube-se que era acusado de comunista por suas aulas, seus livros e sua participação na campanha em defesa do monopólio estatal do petróleo.

Depois de alguns dias escondido na casa de amigos, ainda em abril de 1964 Fernando Henrique viajou para a Argentina. Lá foi convidado a trabalhar na Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) sediado no Chile. Em 1º de maio chegou a Santiago do Chile, onde já se encontravam numerosos brasileiros, entre eles Francisco Weffort, seu amigo e ex-aluno. Lecionou, então, no Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social (ILPES), de cuja divisão social se tornaria diretor-adjunto, na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), em Santiago, e nas faculdades de Sociologia e de Ciências Econômicas do Chile. Trabalhando na CEPAL, onde se destacava o economista brasileiro Celso Furtado, ministro do Planejamento no governo deposto de Goulart, participou do debate sobre os impasses das economias latino-americanas e elaborou, com o sociólogo chileno Enzo Faletto, a “teoria da dependência”, exposta em Dependência e desenvolvimento na América Latina, livro que, ao ser lançado em 1969 em espanhol e no ano seguinte em português, o projetaria internacionalmente como um dos mais importantes cientistas sociais do continente. Ao longo da década de 1970, a obra seria publicada também em italiano, inglês, francês e alemão.

No livro, os autores defendiam a tese de que o desenvolvimento dependente-associado seria o desenvolvimento capitalista possível nos países atrasados da América Latina. Segundo eles, a dicotomia entre “industrialização e nação” ou “subdesenvolvimento e dependência” fora superada, uma vez que a industrialização já ocorria em diversos países dependentes, não estando vinculada necessariamente à emancipação e à autonomia nacional. Em sua visão, os investimentos estrangeiros não eram obstáculo ao desenvolvimento, mas antes, sua alavanca. Essa teoria provocou reações e críticas entre os intelectuais de esquerda, que viam na dependência o mal do Brasil, enquanto Cardoso e Faletto colocavam a dependência na base do desenvolvimento capitalista.

Convidado por Alain Touraine para lecionar em Paris, Fernando Henrique transferiu-se para a França em 1967. Na capital francesa, integrou o círculo de refugiados brasileiros, escreveu e proferiu conferências. Decidido a voltar ao Brasil, inscreveu-se no concurso para catedrático de política da USP e iniciou imediatamente a redação de sua tese, que tinha como tema os empresários latino-americanos e o desenvolvimento econômico. Em julho de 1968, após ter sido revogada sua ordem de prisão por força de um habeas-corpus concedido pelo Superior Tribunal Militar (STM) por acórdão baseado no parecer do relator do processo, general Peri Bevilacqua, retornou a São Paulo. Em seguida foi aprovado no concurso para professor catedrático, mas ocupou a cadeira por pouco tempo, pois o sistema de cátedra foi abolido meses depois. Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, foi um dos 70 professores da USP aposentados compulsoriamente.

Impedido de lecionar em instituições públicas, em 1969 fundou em São Paulo, com outros professores atingidos por atos de exceção, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Utilizando contatos que fizera durante sua estada no exterior, obteve da Fundação Ford recursos para instalar o centro, cuja sobrevivência, contudo, teria de ser garantida por meio da promoção de outras atividades, como conferências no Brasil e no exterior e pesquisas para empresas privadas. Fernando Henrique ministrou cursos no México, na Suíça, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. A Hidrobrasileira foi uma das primeiras empresas a encomendar pesquisas ao Cebrap, graças à iniciativa de um de seus diretores, Sérgio Mota, ex-militante da Ação Popular (AP), organização católica de tendência socialista que fazia oposição ao regime militar.

Em 1971, Fernando Henrique foi eleito membro do Conselho Superior da Flacso e do conselho diretor do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), sediado em Buenos Aires. Engajando-se em 1972 na imprensa política de oposição, escreveu artigos para o jornal Opinião, do qual foi um dos principais editores políticos. Ainda em 1972, publicou O modelo político brasileiro e outros ensaios. No ano seguinte fundou, com o professor Antônio Cândido e Fernando Gasparian, a revista Argumento, voltada principalmente para assuntos literários, mas sempre situada no campo oposicionista. A revista teria apenas quatro edições, vindo a fechar por pressões do governo.

Convidado em 1974 por Pedro Simon, deputado estadual no Rio Grande do Sul, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), proferiu no Sul, com José Artur Giannotti, também do Cebrap, uma série de conferências que obtiveram ampla repercussão política. A partir daí, estreitaram-se as relações do Cebrap com o único partido de oposição legal, cuja direção lhe propôs atualizar o programa partidário para as eleições legislativas de novembro daquele ano. Aceita a proposta pelo Cebrap, seus membros participaram do trabalho, cujos resultados contribuíram para a expressiva vitória do MDB no pleito de 1974. Fernando Henrique, que durante a campanha se tornou amigo e colaborador de Ulysses Guimarães, então deputado federal por São Paulo e um dos mais prestigiados líderes da oposição parlamentar, participou também da elaboração do programa eleitoral de Orestes Quércia, eleito senador por São Paulo na legenda do MDB. Com base nessa experiência, publicaria em 1976, com Bolívar Lamounier e outros, Os partidos e as eleições no Brasil.

Em 1975 Fernando Henrique tornou-se membro do conselho diretor do Centro de Estudios de Estado y Sociedad (CEDES), com sede em Buenos Aires. No mesmo ano, começou a escrever no Movimento, jornal de esquerda financiado por Sérgio Mota, publicou Autoritarismo e democracia e foi chamado, juntamente com outros membros do Cebrap, a prestar depoimento à polícia sobre suas atividades. Em outubro foi um dos organizadores do ato ecumênico de protesto realizado na catedral da Sé, em São Paulo, contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, seu ex-aluno, encontrado morto numa dependência da polícia política paulista.

Ainda em 1975, a convite do economista Albert Hirschman, lecionou no Institute of Advanced Studies da Universidade de Princeton, em Nova Jersey (EUA), lá permanecendo até o início do ano seguinte. Em 1976 foi eleito para o conselho superior da Corporación de Investigaciones Económicas para Latinoamerica (Cieplan), sediada em Santiago do Chile, e atuou como professor da Cátedra Simón Bolivar, na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Em 1977, ano em que lançou, em co-autoria com G. Muller, Amazônia: expansão do capitalismo, voltou aos Estados Unidos, tornando-se membro do Conselho Acadêmico do Latin American Program do Wilson Center, em Washington, e trabalhou novamente em Princeton até 1978. No mesmo ano foi eleito vice-presidente da International Sociological Association (ISA), com sede em Ottawa, e recebeu o honoris causa degree of doctor of laws da State University of New Jersey, Rutgers. Ainda em 1978, começou a participar ativamente das reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que, devido às restrições às liberdades públicas vigentes no país, funcionava como um ativo fórum de debates políticos. Foi também nesse ano que publicou Democracia para mudar.

 

Primeira Candidatura

Embora impedido de concorrer a cargos públicos eletivos por força do AI-5, Fernando Henrique Cardoso filiou-se ao MDB com a intenção de candidatar-se ao Senado nas eleições de novembro de 1978, aproveitando a campanha para fazer um protesto político. O fato de não ter tradição partidária suscitou restrições à sua pretensão, mas não impediu o apoio de Ulysses Guimarães e de Orestes Quércia, então prefeito de Campinas e empenhado em disputar com André Franco Montoro a liderança do MDB paulista. De acordo com a legislação da época, que autorizava a apresentação de até três candidatos ao mesmo cargo, seu nome foi inscrito numa das três sublegendas do partido como candidato ao Senado.

Nesse ínterim, apoiou a candidatura do general Euler Bentes Monteiro à sucessão do presidente Ernesto Geisel (1975-1979), lançada pela Frente Nacional de Redemocratização como uma “anticandidatura”, tendo em vista as limitadas possibilidades de vitória no Colégio Eleitoral. Embora reconhecesse que a derrota de Euler era inevitável, entendia que a candidatura acelerava o ritmo das transformações políticas, ao obrigar o regime a fazer concessões mais amplas. Realizado o pleito no Colégio Eleitoral em 15 de outubro de 1978, o candidato oficial, general João Batista Figueiredo, saiu de fato vitorioso por larga margem de votos.

Em sua campanha para o Senado, Fernando Henrique recebeu apoio de setores organizados da sociedade, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Igreja Católica de São Paulo e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, cujo presidente, Luís Inácio da Silva, o Lula, deu publicidade a uma carta em que o chamava de “reserva moral” do país. Pouco antes de encerrar a campanha, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) lhe restituiu os direitos políticos, regularizando sua candidatura. A condição de primeiro cidadão cassado pelo AI-5 a disputar uma eleição trouxe-lhe uma inesperada projeção nos meios de comunicação, contribuindo para torná-lo mais conhecido do eleitorado.

Em 15 de novembro de 1978, Fernando Henrique foi o segundo candidato a senador mais votado em São Paulo, atrás de Franco Montoro e à frente de Cláudio Lembo, da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação do regime militar. Graças ao mecanismo da sublegenda, a votação obtida garantiu-lhe a condição de suplente de Montoro.

Com a subsequente abertura da discussão acerca do sistema partidário brasileiro, Fernando Henrique foi contrário à extinção do MDB e à proposta de criação de um partido socialista, embora achasse necessária a existência de uma agremiação que representasse a grande massa de assalariados. Eleito em 1979 vice-presidente do MDB paulista, acompanhou Franco Montoro em sua atividade política. Em pleno processo de redemocratização do país, engajou-se na campanha pela anistia aos presos políticos e exilados e pela eleição direta para prefeito e governador. Após a extinção do bipartidarismo (29/11/1979) e a implantação do pluripartidarismo, manteve sua posição, filiando-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), de cuja seção paulista se tornou vice-presidente. Simultaneamente, porém, participou da elaboração do projeto de formação de um novo partido político, discutindo com sindicalistas liderados por Lula e envolvendo-se em movimentos grevistas. Entre junho de 1979 e fevereiro de 1980, participou das reuniões preparatórias para a fundação de tal partido, mas, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) surgiu com um perfil socialista, preferiu, ao contrário da maioria de seus amigos intelectuais, permanecer no PMDB.

Em março de 1981, convidado pelo escritor Michel Foucault, viajou para a França, onde proferiu conferências no Collège de France e tornou-se diretor de pesquisa associado à Maison des Sciences de l’Homme. Ainda em 1981 foi eleito co-presidente da Fondation Internationale pour un Autre Développement (FIPAD), sediada em Nyon, Suíça; colaborou na fundação da World Association for International Relations, em Atenas; e passou a integrar o Comitê Científico do Centro Gino Germani di Studi Comparati sulla Modernizazzione e lo Sviluppo, em Roma. No ano seguinte, foi eleito presidente da ISA, cargo que ocuparia até 1986.

Ainda em 1982 participou da campanha de Franco Montoro para o governo de São Paulo, na primeira eleição direta para os governos estaduais desde 1965. O pleito, realizado em novembro, deu a vitória ao candidato do PMDB, agremiação vitoriosa também em outros estados importantes, como Minas Gerais, onde foi eleito Tancredo Neves.

Nesses anos, embora bastante voltado para a carreira política, Fernando Henrique deu continuidade à sua produção intelectual lançando, entre outros livros, Política e sociedade, do qual foi organizador, juntamente com Carlos Estevam Martins (o primeiro volume foi publicado em 1979 e o segundo em 1981), As idéias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento (1980, publicado em francês em 1984 com o título Les idées à leur place) e Perspectivas — idéias e atuação política (1983).

 

No Senado

Empossado Franco Montoro no governo estadual em março de 1983, Fernando Henrique assumiu sua cadeira no Senado, anunciando que se dedicaria prioritariamente à luta pelo restabelecimento das eleições diretas para presidente da República e pela reformulação institucional do país, a qual deveria começar por uma depuração da legislação eleitoral. Tornou-se membro, na casa, das comissões de Economia, Educação e Cultura e de Legislação Social.

Em abril, foi eleito presidente do PMDB paulista, derrotando a corrente liderada pelo vice-governador Orestes Quércia. Emergindo como um dos mais expressivos líderes do partido, defendeu o estabelecimento imediato de negociações com o governo federal em torno da crise econômica e social que o país atravessava. Nesse sentido, divergiu das outras correntes peemedebistas, como a do governador mineiro Tancredo Neves, que dava prioridade ao processo sucessório do presidente da República e propunha a escolha de um candidato de consenso nacional, e a dos defensores da concentração do partido na luta pelo restabelecimento das eleições diretas para a presidência da República. Entendia que deviam ser usados todos os recursos para evitar que o governo federal chegasse a um impasse por falta de saídas políticas e conduzisse o país a um retrocesso político. Admitia até que o PMDB apoiasse no Colégio Eleitoral um candidato do Partido Democrático Social (PDS), governista, desde que o acordo se fizesse com respaldo das forças políticas e em torno de um programa que visasse à legitimação da ordem democrática. Acabou, porém, por se engajar na campanha pelo restabelecimento das eleições diretas para a presidência, deflagrada em fins de 1983. Defendeu assim a chamada emenda Dante de Oliveira, que, apesar de ter obtido grande apoio da população, não alcançou, em 25 de abril de 1984, o número de votos indispensáveis à sua aprovação na Câmara dos Deputados — faltaram 22 votos para que o projeto pudesse ser encaminhado à apreciação do Senado.

Três dias depois da votação da emenda Dante de Oliveira, Fernando Henrique discursou no Senado, propondo o reinício da luta pelas eleições diretas, que, no seu modo de ver, criara um novo centro de gravidade política no Congresso e deixara claro que o Colégio Eleitoral havia perdido a função. Para ele, a oposição poderia eleger o sucessor do presidente João Figueiredo “pela via escusa do Colégio Eleitoral”, mas abria mão desse caminho para não aderir a “uma estratégia oportunista”. No entanto, acabou por acompanhar o PMDB na decisão de lançar um candidato à eleição indireta no Colégio Eleitoral. O escolhido foi Tancredo Neves, que, do seu ponto de vista, não constituiria, se vitorioso, um presidente do PMDB ou das oposições, mas o chefe de um governo de transição para a democracia.

O campo governista, por seu turno, encontrava dificuldades para escolher um nome consensual. A opção do general Figueiredo pelo deputado federal paulista Paulo Maluf deu origem, em julho de 1984, a uma dissidência no PDS que se intitulou Frente Liberal e declarou seu apoio ao candidato do PMDB. Formou-se assim, em agosto, a Aliança Democrática, que lançou as candidaturas de Tancredo, a presidente, e de José Sarney, senador maranhense dissidente do PDS, a vice. Realizada a eleição no dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral, por expressiva maioria de votos, consagrou a chapa oposicionista.

Em fevereiro de 1985, Fernando Henrique acompanhou Tancredo Neves em sua primeira viagem ao exterior na condição de presidente eleito, percorrendo Estados Unidos, Itália e Portugal. De volta ao Brasil, recusou o convite para assumir o Ministério do Desenvolvimento Social, a ser criado, mas aceitou a função de líder do governo no Congresso, que até então também não existia. Sua principal tarefa seria articular as negociações entre os partidos em torno das reformas constitucionais que dariam início à Nova República. Tancredo Neves, contudo, adoeceu gravemente antes mesmo de ser empossado. Sarney assumiu a presidência da República em seu lugar em 15 de março, e foi efetivado no cargo em 21 de abril, quando o presidente eleito morreu.

Ainda em abril de 1985, Fernando Henrique anunciou que pretendia candidatar-se ao governo de São Paulo nas eleições de novembro seguinte. Na convenção do PMDB, realizada no início de maio, reafirmou essa disposição, que o tornava, mais uma vez, adversário do vice-governador Orestes Quércia, postulante ao mesmo cargo. Vicissitudes da política interna do partido, porém, o levaram a aceitar candidatar-se à prefeitura paulistana, decisão oficializada em junho, depois que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que os então prefeitos das capitais dos estados não poderiam concorrer à eleição direta para o mesmo cargo. Este era o caso de Mário Covas, que em maio havia sido indicado prefeito de São Paulo pelo governador Franco Montoro, e passou então a postular a candidatura a governador, pretensão em que seria afinal derrotado por Orestes Quércia.

Escolhido candidato a prefeito pela convenção municipal do PMDB em 20 de julho, Fernando Henrique recebeu apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Seus principais adversários seriam Jânio Quadros, candidato da coligação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), e Eduardo Suplicy, do Partido dos Trabalhadores (PT).

Líder das pesquisas de intenção de voto até quase o fim da campanha, Fernando Henrique ressentiu-se, contudo, da falta do apoio do PFL, com o qual o PMDB se aliara na Aliança Democrática e sem cujo concurso, no seu modo de ver, não se promoveriam mudanças no país. Ao final, o apoio do PFL a Jânio, respostas inadequadas em entrevistas e a precipitação em deixar-se fotografar na cadeira do prefeito lhe retiraram votos suficientes para dar a vitória ao adversário. Ao fazer um balanço da derrota, atribuiu-a aos ataques de que sua candidatura fora objeto, por parte tanto da esquerda quanto da direita. Além disso, o PMDB teria sofrido o desgaste decorrente da condição de partido governista, enquanto cresciam as forças adversárias, como o janismo e o PT.

Ainda em 1985, lançou A democracia necessária. Em nova visita à Índia, onde presidiu o congresso anual da ISA, anunciou sua candidatura à eleição de 1986 para o Senado, que, juntamente com a Câmara dos Deputados, teria poderes para elaborar uma nova Constituição para o país. Em sua opinião, aliás, o encaminhamento para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, compromisso de campanha assumido por Tancredo Neves e respeitado por José Sarney, deveria ser outro: seria preferível uma Constituinte composta somente por parlamentares eleitos para esse fim.

Crítico do governo Sarney, em entrevista concedida ao Jornal do Brasil em 27 de fevereiro de 1986, cobrou um verdadeiro plano de combate à inflação, que acabara de ultrapassar a taxa de 250% ao ano. No dia seguinte, porém, o governo lançou o Plano Cruzado, que instituiu um novo padrão monetário — o cruzado — de valor mil vezes superior ao do cruzeiro, então abolido, extinguiu a correção monetária, estabilizou o câmbio e congelou preços e salários. Apoiou então o Plano Cruzado, que alcançou grande êxito nos primeiros meses, com a decidida redução da inflação e o entusiasmo popular na fiscalização dos preços.

Os bons resultados iniciais do Plano Cruzado beneficiaram os candidatos do PMDB nas eleições de novembro de 1986. Em São Paulo, o partido conquistou o governo, com Orestes Quércia, e preencheu as duas vagas no Senado, elegendo Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso. Empossado em 1º de fevereiro de 1987, quando tiveram início os trabalhos da Constituinte, Fernando Henrique assumiu a liderança do PMDB no Senado. Quarto-vice-presidente e relator-adjunto da Comissão de Sistematização, foi membro titular da Comissão de Redação e suplente da Subcomissão do Poder Legislativo, da Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo. Foi também designado relator do Regimento Interno.

Nas principais votações da Constituinte, Fernando Henrique manifestou-se a favor do rompimento de relações diplomáticas com países que desenvolvessem políticas de discriminação racial, da adoção do mandado de segurança coletivo, do turno ininterrupto de seis horas, da unicidade sindical, da soberania popular, do voto facultativo aos 16 anos, da nacionalização do subsolo, da proibição do comércio de sangue, da concessão de anistia às dívidas de micro e pequenos empresários e da desapropriação das propriedades rurais produtivas para efeito de reforma agrária. Votou contra a adoção da pena de morte, a estabilidade no emprego, o presidencialismo, o mandato de cinco anos para o presidente Sarney e a legalização do jogo do bicho.

Muitos de seus votos divergiram da posição oficial adotada pelo PMDB. O principal choque aconteceu em relação à participação no governo Sarney. No seu entendimento, o partido vinha assumindo atitudes políticas “clientelistas” e “fisiologistas”, discrepantes do comportamento exigido pela construção da democracia e pelos eleitores que nele haviam confiado nas recentes eleições. Por trás da prática que criticava estaria, no seu entendimento, o governador Orestes Quércia, chefe da máquina partidária em São Paulo. Em dezembro de 1987, deu à direção do partido um mês para afastar-se do governo. Juntamente com Mário Covas e Franco Montoro, ameaçou romper com o PMDB caso a Constituinte fixasse em cinco anos o mandato do presidente Sarney.

Em junho de 1988, renunciou à liderança do PMDB no Senado. Na ocasião, anunciou sua decisão de deixar o partido e ajudar a formar outra agremiação. A ruptura se consumou no mesmo mês, quando, juntamente com mais 102 dissidentes — entre os quais 40 deputados federais e sete senadores —, principalmente do Ceará e de São Paulo, sob a liderança de Mário Covas, fundou o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

O novo partido surgiu com a preocupação de não se identificar com o espectro político clássico: não seria de direita, esquerda ou centro, e sim voltado para a maioria interessada nas reformas sociais e no parlamentarismo, e comprometido com uma política pautada pela ética. Em agosto, já na condição de líder do PSDB no Senado, anunciou que se candidataria ao governo de São Paulo. Com a promulgação da nova Constituição em 5 de outubro de 1988, voltou a participar dos trabalhos legislativos ordinários do Senado.

Eleito Fernando Collor de Melo para a presidência da República em dezembro de 1989, num pleito em que o PSDB concorreu no primeiro turno com Mário Covas e apoiou Luís Inácio Lula da Silva (PT) no segundo, Fernando Henrique aproximou-se do novo governo, empossado em 15 de março de 1990. Atraído pelo programa econômico de modernização, privatização e abertura para o exterior, apoiou o plano de combate à inflação adotado por Collor, que teve forte impacto no cotidiano dos brasileiros, em razão de medidas como o confisco de depósitos de poupança.

Em fevereiro de 1991, quando o presidente Collor, em meio a uma grave crise de governo, tentou se aproximar do PSDB, Fernando Henrique foi convidado a assumir o Ministério das Relações Exteriores, mas, após discutir o assunto com a direção do partido, não aceitou o convite. Em março retornou temporariamente à vida universitária para ministrar um curso de pós-graduação na USP, cuja aula inaugural versou sobre a crítica da visão neoliberal do mundo contemporâneo.

Necessitado de apoio parlamentar, em janeiro de 1992 Collor voltou a bater à porta do PSDB. Em 7 de fevereiro, apresentou ao senador Fernando Henrique o convite para que seu partido se incorporasse ao governo e pusesse em prática itens de seu programa, como o fim dos subsídios e a realização de investimentos sociais como função primordial do Estado. Fernando Henrique e o deputado federal José Serra, também do PSDB paulista, emitiram sinais simpáticos à proposta, mas em abril a direção do partido descartou a hipótese de participar do governo, com o senador Mário Covas acusando Collor de não ser um democrata.

Em maio, o governo Collor entrou em sua crise final, desencadeada pelo irmão do presidente, Pedro Collor de Melo, que o acusou publicamente de — juntamente com Paulo César Farias, o PC, empresário alagoano e tesoureiro da campanha presidencial — comandar um esquema de corrupção e desvio de verbas públicas. Fernando Collor tentou reagir, anunciando que processaria o irmão, mas o Congresso instaurou uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para examinar as denúncias.

Enquanto organizações da sociedade civil, juntamente com o PT, lideravam uma campanha popular peloimpeachment do presidente, Fernando Henrique acompanhou a atitude do PSDB em relação à crise, denunciando a gravidade da situação sem, no entanto, deixar de lado a prudência. Para ele, a prioridade, naquele momento, era manter o governo em condições de funcionar. Aos poucos, contudo, passou a considerar o presidente um “cadáver político” e aderiu à proposta do impeachment. Abria-se, no seu modo de ver, uma oportunidade para a organização de um governo de união nacional em que o sucessor de Collor deveria manter o processo de reformas e modernização da economia e do sistema político. Assim, aproximou-se, a partir de fins de agosto, do vice-presidente Itamar Franco, com o objetivo de, juntamente com outros senadores, articular um novo governo. Seu nome começou a ser citado como futuro chanceler.

Com a aprovação na Câmara dos Deputados, em 29 de setembro, da abertura do processo deimpeachment do presidente, Collor foi afastado da presidência, e no dia 2 de outubro Itamar Franco assumiu o poder em caráter interino. Um o novo governo foi formado, e Fernando Henrique foi indicado para o Ministério das Relações Exteriores em substituição a Celso Lafer. Sua vaga no Senado foi ocupada pela suplente, a socióloga Eva Blay. Collor renunciou ao mandato em 29 de dezembro de 1992, horas antes da conclusão do processo pelo Senado, que decidiu pelo seu impedimento, e Itamar foi então efetivado na presidência da República.

 

No Itamaraty

Em seu primeiro pronunciamento como chanceler, Fernando Henrique Cardoso anunciou que trabalharia para reformular a imagem do Brasil no exterior. Se, durante o governo Collor, houvera a pretensão de inserir o país no Primeiro Mundo, o “espetáculo” havia terminado. No seu entendimento, pouco adiantava afirmar aos outros países que o Brasil era um país industrializado, quando internamente isso não ocorria. Por isso, postulou a integração do Ministério das Relações Exteriores com outras pastas, com a sociedade civil, os sindicatos, empresários etc., de modo que todos pudessem contribuir para a formulação da nova política externa. Nesse sentido, formou um comitê permanente de 18 industriais e convidou a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras centrais sindicais para discutir com os diplomatas encarregados das negociações para a implantação do Mercado Comum do Sul (Mercosul), criado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai em março de 1991, cuja entrada em funcionamento estava prevista para 1995.

A política externa brasileira deveria enquadrar-se no novo contexto mundial, marcado pelo fim da guerra fria. A grande questão internacional não era mais o dilema entre a guerra e a paz, mas a disputa econômica, em que as armas eram a ciência e a tecnologia. O Itamaraty passaria a dar prioridade a negociações no âmbito do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, em torno de assuntos como patentes e concessão de serviços públicos; a iniciativas na América do Sul ainda mais amplas do que aquelas voltadas para o Cone Sul; e a um incremento da atuação política junto à ONU.

No plano comercial, o Itamaraty deveria dar apoio a uma parceria preferencial com os países asiáticos, a “grande saída exportadora”. Mas, de imediato, era preciso enfrentar a pressão exercida pelos Estados Unidos em relação à política comercial brasileira, em particular no tocante às patentes, assunto ainda não regulamentado no Brasil e que motivava retaliações norte-americanas no campo tarifário. Mal assumira o ministério quando, em dezembro, durante viagem a Nova Iorque, precisou responder ao subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos dos EUA, Bernard Aronson, que manifestara publicamente preocupação com o quadro inflacionário brasileiro e criticara a política econômica do presidente Itamar Franco, classificado de nacionalista e protecionista. De volta ao Brasil, também fez restrições à ação do governo na área econômica — de cujo planejamento, aliás, participara — por ter interrompido a execução do programa de privatizações, que seria, do seu ponto de vista, a solução para a escassez de recursos para investimentos produtivos.

Durante sua gestão no Itamaraty, o Brasil se aproximou da Argentina, cujo ministro da Economia era Domingos Cavallo. O continente africano também foi objeto da atenção do ministério, que intensificou relações com a África do Sul, em processo de superação do regime racista, e reconheceu o novo governo de Angola, dirigido pelo Movimento para a Libertação de Angola (MPLA), vitorioso nas primeiras eleições multipartidárias da ex-colônia portuguesa, realizadas em outubro de 1992.

Diante da gravidade da situação econômica interna, com a inflação chegando a quase 29% em fevereiro de 1993, Fernando Henrique começou a se pronunciar sobre o assunto. Em março manifestou-se contra a adoção de novos planos econômicos, classificando-os de “mistificação”: “Pregam milagres, não resolvem o problema e frustram a população”, disse. Do seu ponto de vista, a inflação brasileira resultava do endividamento público e só poderia ser superada por meio da reorganização administrativa do governo.

Deflagrada a campanha eleitoral para presidente da República em abril de 1993 pelas caravanas da cidadania, com que o PT pretendia disseminar a candidatura de Lula pelo país, Fernando Henrique teve seu nome lançado pelo presidente do PSDB. Simultaneamente, foi cogitado para assumir o Ministério do Planejamento, cargo que recusou. Na primeira semana de maio, porém, o líder do governo na Câmara, deputado Roberto Freire, do Partido Popular Socialista (PPS) de Pernambuco, sugeriu ao presidente Itamar Franco que o nomeasse ministro da Fazenda, em substituição a Eliseu Resende. Fernando Henrique estava em Nova Iorque quando, no dia 19 daquele mês, foi nomeado para o Ministério da Fazenda. Para substituí-lo no Itamaraty, foi escolhido José Aparecido de Oliveira.

 

No Ministério da Fazenda

Fernando Henrique foi empossado no novo cargo em 21 de maio de 1993 e sua nomeação teve, em geral, boa repercussão. Da imprensa nacional ao Fundo Monetário Internacional (FMI), predominou a opinião de que se tratava de uma escolha acertada para o combate à inflação, que já ultrapassara o índice de 30% ao mês. Houve mesmo quem a interpretasse como um passo preparatório para sua candidatura a presidente da República, hipótese prontamente descartada por ele mesmo.

Para assessorar-se no ministério, buscou economistas que haviam participado da elaboração do Plano Cruzado. A escolha alimentou especulações sobre a iminente adoção de um novo choque anti-inflacionário, levando-o, em seus primeiros pronunciamentos, a deixar claro que não proporia qualquer plano milagroso. A chave do problema inflacionário, no seu modo de ver, não estava na economia, cujos números eram os mais alvissareiros, mas na crise do Estado, com seu déficit crônico. O combate à inflação deveria, portanto, articular-se estrategicamente com a reforma do Estado, as privatizações e a redução dos gastos públicos.

No início de junho, Fernando Henrique anunciou o Plano de Ação Imediata (PAI) do governo. Voltado prioritariamente para a redução do déficit público e sem apresentar propostas de combate direto à inflação, o conjunto de medidas incluía cortes equivalentes a seis bilhões de dólares no orçamento da União para 1993, severas medidas contra sonegadores e estados e municípios inadimplentes junto ao governo central, bem como a aceleração e a ampliação do programa de privatização, com a sua extensão aos setores elétrico e ferroviário. Na mesma ocasião, advertiu que os cortes seriam aumentados em 50% se o Congresso não aprovasse a criação do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF). Definidos os cortes alguns dias depois, os ministérios da área social foram os mais atingidos: Educação, com 25%; Saúde e Bem-Estar Social, com 43%; Integração Regional, com 31% — os dois últimos, aliás, considerados os principais focos de gastos públicos oriundos de pressões políticas.

A continuidade da política econômica em vigor foi assegurada logo em seguida, quando, em 1º de julho, reduziram-se substancialmente as alíquotas de importação. A medida visava a fazer com que o setor industrial modernizasse as linhas de montagem, de maneira a elevar a produtividade e reduzir seus custos. Pretendia-se também enfraquecer o controle exercido sobre a economia brasileira por grupos que acertavam entre si os preços e os impunham ao mercado. No dia 28, quando a inflação acumulada no ano chegava à faixa dos 500%, o governo decretou o corte de três zeros da moeda nacional, que passou a chamar-se cruzeiro real.

O programa de privatizações foi outro item da política econômica em que Fernando Henrique manteve a orientação de seu antecessor. O governo tentou, porém, acelerar o processo, dotando o Programa Nacional de Desestatização de um novo regulamento. Por meio de leilões que despertaram intensos protestos de grupos oposicionistas, foram privatizadas subsidiárias da Petrobras e siderúrgicas — a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e a Aço Minas Gerais (Açominas). No plano cambial procedeu-se à unificação dos mercados comercial e flutuante. A medida provocou uma alteração radical nas condições do mercado, levando a cotação do dólar paralelo a uma queda inédita.

A normalização das relações financeiras do país com o exterior, alteradas desde a moratória decretada pelo governo Sarney, avançou significativamente com a renegociação da dívida externa brasileira. O acordo com os bancos privados foi, porém, dificultado pelas exigências do FMI quanto à adoção de um programa de estabilização cujas metas, principalmente o ajuste fiscal, passariam por difíceis negociações com o Congresso. De toda forma a dívida foi negociada, sem o aval do FMI, e os contratos de renegociação com os bancos privados foram assinados em outubro.

Em 7 de dezembro, durante audiência no Congresso, Fernando Henrique apresentou o novo programa econômico do governo. Os principais pontos do plano diziam respeito ao ajuste fiscal, que seria perseguido basicamente por meio de cortes radicais nos gastos públicos, e à preparação de uma nova moeda, antecedida pela adoção da Unidade Real de Valor (URV), que passaria a funcionar progressivamente como indexador da economia nacional.

Entre os parlamentares, a reação ao programa foi, em geral, negativa. O governo foi acusado de não ter tentado negociar previamente com os partidos as medidas, principalmente a elevação das alíquotas dos impostos e das contribuições. Mesmo no partido do ministro, o PSDB, houve resistências ao plano, visto como rígido demais para um ano eleitoral.

O ponto que maiores divergências suscitou foi, porém, a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), dispositivo orçamentário baseado na desvinculação de tributos e contribuições sociais de suas destinações originais, definidas pela Constituição. Pela emenda constitucional que o criou, os recursos do FSE seriam destinados ao financiamento das áreas da saúde, educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais e outros programas de relevante interesse econômico e social. Os recursos viriam da incorporação direta de parcelas de alguns tributos e da realocação de cerca de 20% dos recursos arrecadados por todos os impostos e contribuições instituídos pela União, o que reduziria o montante das transferências para estados e municípios determinadas pela Constituição. Dessa forma, o governo disporia de uma soma considerável de recursos para fazer face, com total autonomia, às despesas do Estado.

Portanto, ao contrário dos fundos sociais concebidos pelo Banco Mundial como contrapeso às políticas de estabilização por ele mesmo impostas aos países em dificuldades financeiras — como o fundo social de emergência instituído pela Bolívia em 1987 —, o FSE brasileiro apresentava um nítido caráter contábil, subordinado à política de ajuste fiscal. O desvirtuamento das transferências financeiras para estados e municípios e da alocação de recursos para a área social constituiu empecilho para a aprovação imediata do fundo pelo Congresso. Dentro do próprio governo surgiram divergências, e o líder na Câmara, deputado Roberto Freire, do PPS, abandonou a função em protesto contra a política econômica anunciada.

O plano foi interpretado também como plataforma de lançamento da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República, deixando os partidos reticentes quanto à melhor atitude a tomar em defesa de seus interesses eleitorais. Afinal, em fevereiro de 1994, depois de obter o apoio do PFL, o Congresso aprovou o FSE, o que constituiu importante vitória política do governo, já que o fundo era considerado essencial para a implementação do programa econômico.

No dia 1º de março de 1994, a URV entrou em vigor, depois de um período de acelerada elevação dos preços que se seguiu ao anúncio da sua criação. A oposição, capitaneada pelo PT e a CUT, procurou combatê-la de todos os modos, argumentando que se tratava de instrumento de uma política de arrocho salarial. Essa crítica se baseava no fato de o novo indexador da economia ter alinhado desigualmente salários calculados pela média dos quatro meses anteriores e preços calculados pelo ponto máximo. Fernando Henrique, contudo, rejeitou as críticas e as propostas de criação de um gatilho salarial, argumentando que o importante não era conviver com a inflação, mas vencê-la. Ainda no início de março, baixaram-se as alíquotas de importação de cerca de 130 produtos, visando a reduzir a margem de manobra dos cartéis e monopólios na fixação dos preços.

No dia 30 de março, antes do fim do prazo para a desincompatibilização dos ocupantes de cargos públicos que quisessem disputar as eleições de outubro, Fernando Henrique afastou-se do ministério e retornou ao Senado. A pasta da Fazenda foi entregue a Rubens Ricupero, que ocupava o posto de embaixador em Washington.

 

A primeira campanha presidencial

Quando Fernando Henrique se lançou abertamente na campanha, em abril de 1994, as pesquisas de opinião apontavam uma tendência majoritária do eleitorado a sufragar o nome de Lula. A situação econômica do país não lhe era favorável, já que a inflação continuava muito alta, tendo superado o índice de 45% no mês anterior.

Dentro do seu partido, Fernando Henrique foi um dos patrocinadores do estabelecimento de uma aliança com o PFL, oficializada em maio pelo PSDB como forma de neutralizar uma possível união das forças de direita em torno de Paulo Maluf ou de Orestes Quércia e, ao mesmo tempo, viabilizar sua candidatura no Nordeste. Egresso da Arena e do PDS, partidos que deram sustentação ao regime militar, o PFL tinha grande força eleitoral no Nordeste. O senador alagoano Guilherme Palmeira foi assim indicado candidato a vice-presidente. A chapa enfrentou resistências dentro do PSDB de setores contrários à aproximação com forças identificadas com o conservadorismo e práticas clientelísticas, e na convenção partidária realizada em 18 de maio na cidade de Contagem (MG) os dois candidatos foram vaiados por parte dos presentes. No PFL a aliança foi aceita sem maiores problemas e oficializada quatro dias depois em convenção.

Outros setores da sociedade brasileira fizeram restrições à aliança do PSDB com o PFL, que se ampliaria com a incorporação do PTB. Fernando Henrique foi classificado de incoerente, em vista de sua trajetória política progressista. A seus críticos, inclusive amigos acadêmicos, justificou a aliança pela necessidade estratégica de conduzir o Brasil a um salto audacioso, só possível pela convergência das forças políticas socialistas, social-democratas e liberais, tal como teria acontecido em diversos países, como Chile e Espanha: “Eu sou social-democrata. Estou fazendo uma aliança com o setor liberal, porém com um setor liberal que tem sensibilidade social. Eu não quero fisiologia, não quero clientelismo”, declarou a O Globo em 15 de maio.

Ainda em maio, o Congresso revisor, exercendo poderes concedidos pelas disposições transitórias da Constituição de 1988, aprovou a redução do mandato presidencial e determinou a coincidência das datas das eleições para a presidência, o Congresso, as assembléias legislativas e os governos de estado. O acordo partidário que viabilizou a aprovação dessa emenda incluiu o compromisso de aprovação futura de outra, que permitiria a reeleição para a presidência.

A campanha de Fernando Henrique foi estruturada sobre cinco itens prioritários: saúde, educação, segurança, habitação e agricultura. No plano econômico, a ênfase foi dada à privatização das grandes empresas siderúrgicas e mineradoras, à extinção do monopólio de serviços públicos e à abertura do país ao capital estrangeiro. No plano institucional foi proposto um conjunto de reformas: fiscal, administrativa e previdenciária.

Os êxitos iniciais do Plano Real começaram a ser capitalizados em favor da campanha, cuja agenda incluiu a passagem por estados já visitados pelo ministro Rubens Ricupero para divulgar a nova moeda. Antecipado o lançamento do real para 1º de julho, Fernando Henrique afirmou em Minas Gerais que, com isso, sua candidatura iria “dar um salto”.

No lançamento do real, o comércio esteve quase paralisado, mas logo na primeira semana começou a haver reduções de preços. No mercado de câmbio, a relação do real com o dólar foi estabelecida em termos imprevisíveis, com a moeda nacional valendo mais do que a norte-americana. As primeiras pesquisas eleitorais feitas em seguida indicaram que Fernando Henrique já não estava tão atrás de Lula, e os 17 pontos que os separavam não o impediriam de participar do segundo turno da eleição. Denúncias de favorecimento de interesses privados contra o senador Guilherme Palmeira ameaçaram o rumo de crescimento da campanha de Fernando Henrique. Curiosamente, o vice de Lula, o senador gaúcho José Paulo Bisol, foi acusado do mesmo crime, abalando a campanha petista. Ambos foram substituídos: Palmeira por Marco Maciel, e Bisol por Aluísio Mercadante, deputado federal por São Paulo do PT.

A oposição, buscando argumentos para inverter a tendência das pesquisas de opinião, procurava denunciar a estabilização econômica como uma imposição do capital financeiro internacional. Na Folha de S. Paulo, edição de 3/7/1994, o economista José Luís Fiori caracterizou a candidatura de Fernando Henrique e o Plano Real como iniciativas de acomodação da economia brasileira às diretrizes do Consenso de Washington, referindo-se ao conjunto de medidas de ajuste e estabilização recomendado pelos organismos financeiros internacionais às economias dos países periféricos elaborado em 1989. Fernando Henrique defendeu-se pelas páginas do mesmo jornal, acusando seu crítico de cometer uma “falácia ecológica” e afirmando que a política de estabilização não era monitorada por órgãos internacionais e tinha como meta assegurar condições de governabilidade. Considerava, mesmo, que sua capacidade analítica era subestimada quando se lançava contra ele a acusação de, diante da realidade contemporânea, ter optado “por uma aliança oligárquica”.

Após 15 dias da implantação do real, já era flagrante a queda vertiginosa da inflação. Alguns dos segmentos mais pobres da população se atreveram a incrementar suas compras, provocando uma corrida ao crediário, apesar da manutenção das taxas de juros em patamares muito altos. A ampliação das vendas aumentou as encomendas à indústria, que elevou a produção. Na campanha, Fernando Henrique tentou capitalizar o tetracampeonato mundial de futebol, conquistado pela seleção do Brasil nos EUA, comparando o êxito esportivo ao do real, em narrações de uma partida imaginária em que jogava com os atacantes mais famosos. A tendência de crescimento de sua candidatura sofreu nova ameaça no início de setembro, em virtude de um episódio protagonizado pelo ministro Rubens Ricupero. Em conversa informal com um repórter enquanto aguardava o começo de um programa de televisão, o ministro fez comentários que indicavam o envolvimento da máquina do governo na campanha de Fernando Henrique. Captada por antenas parabólicas das redondezas, a conversa foi tornada pública, fornecendo munição para seus adversários, que, no entanto, não puderam tirar maior proveito político do fato porque o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu a reprodução do diálogo na propaganda gratuita de rádio e TV. O episódio, que resultou na renúncia de Ricupero, não afetou a tendência de parte significativa do eleitorado, que migrava da candidatura petista para a de Fernando Henrique. Com a inflação já em patamares pouco superiores a 1%, o candidato do PSDB firmava-se como franca favorito.

Realizado o primeiro turno da eleição em 3 de outubro, Fernando Henrique obteve uma vitória esmagadora: 54,3% dos votos (34.376.367 votos, em números absolutos), contra 27% dados a Lula.

Em seu discurso de despedida no Senado, já como presidente eleito, Fernando Henrique sustentou a tese de que a principal questão a ser resolvida no país era a superação do modelo de desenvolvimento implantado pelo presidente Getúlio Vargas, no qual o Estado detinha o papel de principal fonte de investimentos e perseguia uma linha de desenvolvimento relativamente autárquica em relação ao resto do mundo. O grande desafio seria, então, reformar o Estado, restringindo seu papel ao de regulador da economia e provedor de saúde e educação para o povo.

Antes mesmo da posse, Fernando Henrique começou a receber adesões imprescindíveis para a implementação do programa de reformas. Em 23 de dezembro, oito governadores eleitos na legenda do PMDB anunciaram que o apoiariam, autorizando o presidente do partido, o deputado federal catarinense Luís Henrique da Silveira, a negociar a participação dos peemedebistas no futuro ministério, no bloco parlamentar de sustentação do governo e na discussão das reformas constitucionais.

 

 

Na Presidência da República

Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro homem público perseguido pelo regime militar a assumir o cargo de presidente da República no Brasil. Esse vínculo com a luta democrática seria resgatado meses depois, quando ele encaminhou ao Congresso um projeto de indenização às famílias de desaparecidos políticos.

Seu discurso de posse, em 1º de janeiro de 1995, deu ênfase à situação política do país. O Brasil fizera uma transição mais lenta que outros países que também haviam saído de situações autoritárias, mas a realizara de forma mais ampla e em nível mais profundo, combinando a restauração das liberdades democráticas com a reforma da economia. Em seu governo, a justiça social seria a principal meta, mas para atingi-la seria preciso reorganizar o Estado, pois a administração federal se encontrava deteriorada pelos desmandos financeiros, o clientelismo, o corporativismo, a ineficiência e a corrupção. A vitória que acabara de conquistar significava que a maioria do povo brasileiro desejava a continuidade do Plano Real e as reformas estruturais necessárias para afastar definitivamente o perigo da inflação.

Para auxiliá-lo no trabalho que se propunha empreender, entregou alguns ministérios a amigos seus de longa data, como Sérgio Mota (Comunicações), Francisco Weffort (Cultura), Paulo Renato Sousa (Educação) e, José Serra (Planejamento e Orçamento). Para a Fazenda nomeou Pedro Malan, a quem havia indicado para a presidência do Banco Central quando ele próprio ocupava essa pasta, no governo Itamar Franco. Completou a equipe ministerial com Luís Carlos Bresser-Pereira (Administração e Reforma do Estado); José Eduardo de Andrade Vieira (Agricultura e Abastecimento); José Israel Vargas (Ciência e Tecnologia); Dorotéia Werneck (Indústria, Comércio e Turismo); Nelson Jobim (Justiça); Gustavo Krause (Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal); Raimundo de Brito (Minas e Energia); Reinhold Stephanes (Previdência e Assistência Social); Luís Felipe Lampreia (Relações Exteriores); Adib Jatene (Saúde); Paulo Paiva (Trabalho); Odacir Klein (Transportes); brigadeiro Mauro Gandra (Aeronáutica); general Zenildo Zoroastro de Lucena (Exército), e almirante Mauro César Pereira (Marinha). Nomeou ainda Clóvis Carvalho (Casa Civil); general Alberto Mendes de Cardoso (Casa Militar); general Benedito Onofre Bezerra Leonel (Estado-Maior das Forças Armadas). Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, foi designado ministro extraordinário de Esportes, e, para as Secretarias de Estado ligadas diretamente à Presidência da República, foram escolhidos Eduardo Jorge Caldas Pereira (Secretaria-Geral), Ronaldo Sardenberg (Assuntos Estratégicos) e Roberto Muylaert (Comunicação).

Empossado o novo Congresso no dia 1º de fevereiro, Fernando Henrique apoiou ativamente as candidaturas do deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA) à presidência da Câmara, que derrotou a de José Genoíno (PT-SP), e de José Sarney (PMDB-MA) à presidência do Senado. Definia, assim, o elemento central da base parlamentar de que disporia para implementar seu programa de reformas, constituída pelos partidos que o haviam apoiado — PSDB, PFL e PTB —, pelo PMDB e outros partidos de menor expressão.

A despeito da amplitude dessa base, era geral no Congresso a impressão de que o governo enfrentaria dificuldades para concretizar as reformas. A maioria dos deputados e senadores se manifestara pelo “enxugamento” do texto constitucional, considerado muito detalhista, mas havia resistências a medidas específicas, principalmente a modificações das regras do sistema previdenciário, ao fim da estabilidade dos servidores públicos no emprego e à quebra dos monopólios do petróleo e das telecomunicações. Tendo sancionado, em 13 de fevereiro, a lei de sua iniciativa no Senado — a de Concessões Públicas —, que abriu à iniciativa privada a exploração de serviços prestados pelo Estado como a distribuição de energia elétrica e o abastecimento de água, Fernando Henrique apresentou ao Congresso, nove dias depois, o primeiro grupo de reformas que implicavam emendas à Constituição. Os cinco principais temas eram os seguintes: redefinição do conceito de empresa brasileira, fim do monopólio estatal sobre o petróleo e as telecomunicações, liberação da participação do capital privado na distribuição de gás natural canalizado e permissão para que capitais estrangeiros participassem da navegação de cabotagem. A divulgação dessas metas provocou protestos em vários pontos do país, e o presidente foi alvo de manifestações oposicionistas, algumas com certa violência, como em Recife e no Rio de Janeiro.

O programa de reformas enfrentou seu teste de estréia em maio, um mês de altíssima densidade política para o governo. No dia 3 teve início uma greve nacional dos petroleiros. Logo em seguida, cerca de trezentos mil servidores federais paralisaram as atividades em protesto contra as propostas de privatização dos Correios e das empresas do setor elétrico, e em defesa do monopólio estatal nos setores de petróleo e de telecomunicações. Reivindicavam ainda reajuste mensal dos salários pelo índice de inflação apurado pelo órgão de pesquisa econômica dos sindicatos, o Departamento de Estudos Estatísticos e Socioeconômicos (DIEESE).

Nos dias que se seguiram, porém, o governo obteve algumas vitórias. Aprovou na Câmara a emenda que redefinia o conceito de empresa nacional, eliminando restrições ao capital estrangeiro e, em primeiro turno, as emendas referentes ao fim da reserva de mercado na navegação de cabotagem e à extinção do monopólio estatal das telecomunicações.

Já as emendas relativas à reforma da administração federal e da previdência, tidas como imprescindíveis para a redução dos gastos públicos, encontraram resistência maior no Congresso. Representantes da oposição e da própria base governista na Câmara dos Deputados fizeram muitas alterações no projeto do governo para a reforma administrativa, que ficaria parado no Senado. Os pontos que despertaram maiores polêmicas foram a quebra da estabilidade dos servidores públicos no emprego, as regras da disponibilidade e da paridade salarial e a proibição de empréstimos e convênios federais com estados e municípios que não se adaptassem à exigência constitucional que limitava os gastos com pessoal a 60% da arrecadação.

No início de 1996, Fernando Henrique abriu negociações para a incorporação do Partido Progressista Brasileiro (PPB) à base de sustentação do governo no Congresso. Embora o PPB já manifestasse apoio ao governo desde o início, e sua bancada em geral apoiasse as propostas encaminhadas pelo Executivo, o partido não integrava formalmente a aliança governista. Além disso, o principal líder da agremiação, Paulo Maluf, mais uma vez cogitando lançar-se na disputa pela presidência da República, insistia em manter o partido numa faixa política própria, com autonomia em relação ao governo federal. Temendo enfrentar dificuldades para aprovar itens importantes das reformas com votações previstas para os meses seguintes, o governo nomeou em maio o pepebista Francisco Dornelles para a pasta da Indústria, Comércio e Turismo, até então ocupada por Dorotéia Werneck. Na ocasião foram criados os ministérios extraordinários de Coordenação de Assuntos Políticos – destinado a cuidar da articulação política do governo – e de Política Fundiária, ocupados, respectivamente, por Luís Carlos Santos e Raul Jungmann. Houve ainda outras substituições, com a nomeação do senador mineiro Arlindo Porto para o Ministério de Agricultura e do Abastecimento, Carlos Albuquerque para o Ministério da Saúde, e Antonio Kandir para o Ministério do Planejamento e Orçamento.

Em 9 de abril de 1997, finalmente, o plenário da Câmara aprovou a emenda da reforma administrativa. O substitutivo do relator, deputado Moreira Franco (PMDB-RJ), foi aprovado por um voto a mais que o mínimo de 308 necessários. Entre os assuntos afetados pela emenda estavam a idade de 75 anos para a aposentadoria compulsória do servidor público, que até então ocorria aos 70 anos, e a demissão de servidores, dos quais era exigido um estágio probatório de dois anos e que passaram a ter garantia de estabilidade no emprego somente depois de cinco anos. Além disso, a emenda tornou possível a demissão de servidores estáveis quando o gasto com a folha de pagamento ultrapassasse 60% da receita.

A tramitação da emenda da previdência não foi mais fácil. Apresentada ao Congresso em março de 1995, dois anos e meio depois continuava em discussão, embora só propusesse mudanças gerais, deixando as especificações para a legislação complementar. A Câmara decidiu detalhar algumas regras previdenciárias na própria emenda, o que provocou polêmicas. No final aprovou-se um texto que pouco mudava o sistema vigente. No Senado, o substitutivo apresentado reincorporou parte das propostas do governo, mas precisou voltar à Câmara para ser aprovado. Apenas em janeiro de 1998 o Congresso aprovaria definitivamente a emenda da reforma previdenciária, embora alterando medidas propostas originalmente pelo governo.

Na virada do primeiro semestre de 1997, estavam regulamentadas importantes mudanças na legislação econômica do país, como o fim do monopólio da Petrobras sobre a exploração e o refino do petróleo, que liberou esse mercado para as grandes multinacionais do setor, até então restritas à distribuição; quebra do monopólio da Petrobras sobre a exploração de gás natural; privatização do setor de telecomunicações, o que permitiu a venda das empresas estatais do setor para o capital privado e estabeleceu a criação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), responsável pela regulamentação do setor; e a abertura da navegação de cabotagem a empresas de capital estrangeiro.

O governo fez reformas também na área de educação, um dos cinco pontos prioritários do programa eleitoral de Fernando Henrique. Inicialmente empreendeu-se uma investigação sobre o quadro do ensino no país. Para isso, avaliaram-se os cursos de primeiro e segundo graus e de nível superior — graduação e pós-graduação — e implantou-se o Exame Nacional de Cursos, conhecido como “provão”, compulsório para os formandos. Em 20 de dezembro de 1996, foi sancionada a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), baseada em projeto do senador Darcy Ribeiro (PDT-RJ). Entre as inovações trazidas pela LDB estava o fim da obrigatoriedade do exame vestibular para o acesso ao ensino superior. Foi lançado à discussão da sociedade, também, um projeto de reforma do ensino médio com o fim de dirigir os alunos, a partir da segunda série, para cinco áreas específicas: ciências exatas, artes e comunicação, ciências da vida, ciências sociais e humanas e gerência e informática, favorecendo a profissionalização do ensino de segundo grau. A divisão do curso de segundo grau em três séries seria substituída por outra, em ciclos ou módulos. Seria instituído um currículo básico para os alunos de todo o país, cobrindo 75% das disciplinas; o restante variaria de acordo com as necessidades de cada estado, visando a atender às necessidades de profissionalização ou preparação do aluno para o exame vestibular.

Na área de segurança — outro dos cinco pontos prioritários do programa eleitoral — a atuação do governo, após dois anos e meio, traduziu-se na criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública; no início da implantação de um banco de dados informatizado para tornar acessíveis, no plano nacional, informações sobre mandados de prisão, veículos furtados e armas de fogo; na reativação da Academia Nacional de Polícia; e na criação de oito conselhos regionais de segurança pública, encarregados de ações conjuntas de repressão a sequestros, tráfico de drogas e roubos e furtos de carros. No fim do primeiro semestre de 1997, o governo federal foi chamado a intervir na área de segurança de vários estados. Durante dois meses, policiais militares e civis mobilizaram-se em 17 estados, promovendo greves e manifestações que resultaram, em alguns casos, em confrontos violentos que deixaram dois mortos e cerca de dez feridos. Embora convencido de que a segurança pública deveria ser responsabilidade dos governadores, Fernando Henrique coordenou um debate inicial sobre o assunto.

 

Política Econômica

A crise financeira do México, que eclodiu em dezembro de 1994 e provocou a fuga de capitais daquele país, com repercussões na Argentina, gerou o temor de que o fenômeno atingisse também o Brasil. Nos meses de fevereiro e março de 1995, capitais no valor de cerca de 1,5 bilhão de dólares deixaram o país. Para evitar uma crise cambial que afetaria o núcleo estratégico da sustentação do plano de estabilização econômica, o governo reagiu em março de 1995 com várias medidas: alterou para cima a banda cambial (faixa de valores em real em que o dólar podia flutuar), aumentou as taxas de juros, eliminou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para empréstimos e aplicações de capital estrangeiro nas bolsas de valores etc. As medidas geraram um clima de desconfiança na estabilidade do real e intenso movimento especulativo com a moeda norte-americana, obrigando o Banco Central a intervir no mercado cambial e a vender cerca de cinco bilhões de dólares das reservas internacionais do país.

A política de abertura econômica também provocou queda das reservas. O barateamento das importações, iniciado no governo Collor, e o incremento do consumo, permitido pela estabilidade da moeda, geraram repetidos déficits na balança comercial. Para reverter a tendência, em março o governo aumentou em mais de 100% a alíquota de importação de automóveis e de mais de uma centena de itens da pauta de importações. Para inibir o consumo, atrair capitais externos e recuperar a balança comercial, elevou ainda mais as taxas de juros. Como o ritmo da economia permanecia acelerado, adotou medidas de restrição ao crédito bancário.

Na véspera do primeiro aniversário do Plano Real, o governo promoveu a desindexação da economia: proibiu o reajuste automático de salários pela inflação e instituiu a livre negociação entre patrões e empregados; determinou que, a partir daquela data, nenhum contrato poderia ter cláusula de correção inferior a um ano, abrindo exceção apenas para o reajuste da Ufir, que corrigia os impostos federais trimestralmente; extinguiu o Índice de Preços ao Consumidor em Real (IPC-r), criado um ano antes para funcionar por 12 meses. Uma safra agrícola de dimensões inéditas e os ganhos obtidos com os reajustes praticados durante a implantação do real contribuíram decisivamente para a manutenção dos preços em níveis estáveis.

Em setembro, a inflação se converteria em deflação, registrando-se baixa de preços em diversos setores. Ainda nesse mês, o governo anunciou o Plano Plurianual de Investimentos (PPA) para o período 1996-1999. Com o objetivo geral de modernizar a economia e reduzir os desequilíbrios sociais, o programa projetava para o período uma taxa de crescimento anual médio do Produto Interno Bruto (PIB) da ordem de 4,6%. Até 1999, a renda per capita deveria crescer 14%, enquanto os índices de mortalidade infantil se reduziriam em 50%. Outras metas importantes eram a reestruturação geral do sistema de telecomunicações, o investimento na conclusão de 17 usinas geradoras de energia e construção de outras dez, e a implantação de sistemas de água e esgoto em oitocentos municípios. Segundo o governo, o PPA significaria um investimento global de 459 bilhões de reais.

A queda das taxas de inflação e as medidas de contenção do consumo tiveram forte impacto negativo no mercado financeiro. Privado, por força de estabilização da moeda, de grande parte dos lucros que obtinha com a especulação financeira, o sistema bancário enfrentou dificuldade para adaptar-se à nova situação. Foram atingidos bancos estaduais e privados, entre os quais o Econômico e o Nacional. O Banco Central decretou, em 11 de agosto de 1995, a intervenção no Econômico, com sede na Bahia e oitavo maior banco do país. A medida foi estendida aos bancos Mercantil de Pernambuco e Comercial de São Paulo. O caso assumiu contornos políticos em virtude da intervenção do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), que, à frente de seus companheiros de bancada — importante esteio de Fernando Henrique no Congresso —, exerceu forte pressão sobre o governo no sentido de evitar que o Econômico fosse liquidado. Embora as análises revelassem que a situação financeira do banco baiano era das mais complicadas, o Banco Central, para evitar os efeitos violentos que sua liquidação teria sobre os interesses dos depositantes e o sistema financeiro do país, dispôs-se a vendê-lo. No início de setembro, o Banco Interatlântico, do grupo Monteiro Aranha, e o Swiss Bank chegaram a se reunir com as autoridades do Banco Central, mas o negócio não se concretizou.

Em novembro, informações alarmantes em circulação no mercado financeiro a respeito da saúde do Banco Nacional indicaram que os problemas se agravavam. Um intenso movimento de saques contra o banco levou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a suspender os negócios com suas ações na Bolsa de Valores de São Paulo.

Diante desse quadro, o governo federal editou, no dia 17 de novembro, uma medida provisória que ampliou os poderes do Banco Central para intervir no sistema financeiro, além de dispor sobre os mecanismos de transferência de controle acionário e fusão de instituições bancárias. No dia seguinte foi decretada a intervenção no Banco Nacional, anunciada como forma de viabilizar sua aquisição pelo Unibanco, que já vinha sendo negociada. Em seguida foi decretada a indisponibilidade dos bens de cerca de 20 pessoas que haviam participado da administração do banco nos 12 meses anteriores. Abria a lista o nome de Ana Lúcia Catão de Magalhães Pinto, nora do presidente da República.

O caso do Econômico foi resolvido com sua venda ao Banco Excel. Quanto ao Nacional, as irregularidades detectadas pelas autoridades financeiras em suas contas suscitaram no Senado um movimento pela instalação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar o sistema financeiro nacional. A iniciativa, que não contou com o apoio de Fernando Henrique, foi, contudo, prontamente abortada pela ação coordenada dos partidos governistas.

A experiência com a crise bancária inspirou o governo a regulamentar o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), lançado em novembro de 1995 para evitar que a quebra de grandes bancos tivesse efeitos multiplicadores sobre todo o sistema financeiro. Com os recursos do programa, o Banco Central pôde financiar a aquisição de bancos problemáticos por bancos saudáveis. O programa foi acusado pela oposição de pouco transparente, de não divulgar o uso do dinheiro e o andamento dos empréstimos e de ter eliminado o risco da atividade bancária. Por uma medida provisória baixada no dia 17, o governo autorizou o Banco Central a alterar o controle acionário de bancos mal-administrados. No dia seguinte, já sob o novo regime, o Banco Nacional foi vendido ao Unibanco. Em julho de 1996, o Banco Central começou a negociar um acordo com o Bamerindus, controlado pelo senador José Eduardo de Andrade Vieira (PTB-PR), ministro da Agricultura. Em abril de 1997, o banco foi vendido ao Hongkong and Shanghai Banking (HSBC) inglês.

Quanto ao programa de privatização de empresas do setor público, o governo Fernando Henrique teve dificuldades para acelerar o ritmo da sua execução. Algumas rodovias federais, trechos da Rede Ferroviária Federal, a malha oeste (São Paulo a Mato Grosso do Sul) e a malha centro-oeste (espalhada por sete estados), assim como a Light e a Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro (CERJ), foram transferidos ao capital privado. A operação de privatização de maior impacto, a da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), provocou intensa polarização política envolvendo garimpeiros, entidades da sociedade civil, parlamentares etc., e o processo só foi concluído em maio de 1997, quando a empresa teve seu controle acionário comprado por um consórcio formado por bancos nacionais e estrangeiros e fundos de pensão, liderado pela CSN, ex-estatal privatizada anos antes.

Vencido o terceiro ano de vigência do Plano Real, mudanças importantes foram registradas na economia e na sociedade brasileiras. Graças à drástica contenção do processo inflacionário, os rendimentos médios dos trabalhadores assalariados cresceram significativamente. Outro aspecto que marcou o Plano Real foi sua dependência dos capitais externos. Baseando a estabilização monetária no câmbio, o plano sobrevalorizou o real, de maneira a incentivar as importações e pressionar para baixo os preços internos. Resultou daí a tendência ao déficit da balança comercial, gerado pela diferença crescente entre o que se gastava com importações e o que o país conseguia com suas exportações. Por outro lado, parcela expressiva das reservas acumuladas foi formada pela captação de capitais especulativos, de permanência muito curta na economia nacional. Para atraí-los, foi necessário manter as taxas de juros em patamares muito altos, o que configurou uma situação adversa ao crescimento da economia no ritmo necessário à geração de empregos suficientes para absorver a força de trabalho que anualmente tenta ingressar no mercado de trabalho. O índice de desemprego, segundo dados da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE), chegou em 1997 a 5,66%, o mais alto desde 1992.

Em relação à agricultura, o governo marcou presença com a criação do novo Imposto de Transmissão Rural (ITR), que elevou as alíquotas para gravar a propriedade improdutiva. Conseguiu, também, aprovar o “rito sumário”, que tornou possível a desapropriação imediata de terras consideradas improdutivas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

A questão agrária continuou, porém, um foco de graves problemas no campo, levando Fernando Henrique a entregar a coordenação de ações contra a violência rural ao Ministério da Justiça. O aumento do número de famílias assentadas pelo governo não foi o suficiente para neutralizar os conflitos.

 

Em Busca de um Novo Mandato

No dia 1º fevereiro de 1995, o deputado José Mendonça Filho (PFL-PE) apresentou ao Congresso emenda constitucional facultando o direito de reeleição a chefes de Executivo, inclusive àqueles então no exercício do cargo. A matéria seria objeto de uma longa tramitação, não só por questões de princípio levantadas pela oposição, mas também porque envolvia interesses de candidatos em potencial.

Passado o primeiro turno das eleições municipais de outubro de 1996, os parlamentares governistas começaram as articulações visando à aprovação da emenda no Congresso. O tema foi transformado no principal item da agenda política de Fernando Henrique, o que lhe valeria a acusação de concentrar energias na sua reeleição, descuidando dos problemas do país.

A tramitação da emenda seria fortemente influenciada pela disputa entre o PFL e o PMDB pelas presidências da Câmara e do Senado. Entretanto, outros partidos da base governista, como o PPB e o Partido Liberal (PL), também fariam pressão sobre o governo para obter cargos em troca de apoio à emenda.

Depois de sucessivos adiamentos da votação, determinados, entre outros motivos, pelo apoio do presidente da República à candidatura de Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) à presidência do Senado, finalmente, em 14 de janeiro de 1997, a emenda da reeleição foi aprovada na comissão especial da Câmara, levando Fernando Henrique a afirmar que o Congresso, ao aprová-la, ouvira a “voz rouca das ruas”. Depois de dez dias de negociações, em 28 de janeiro a emenda foi aprovada pela Câmara em primeiro turno. A emenda ainda seria submetida a uma segunda votação e, depois, enviada ao Senado.

O governo precisaria esperar a eleição dos novos presidentes do Senado e da Câmara para votar em segundo turno a reeleição. Os candidatos apoiados por Fernando Henrique saíram vitoriosos. No dia 4 de fevereiro, Antônio Carlos Magalhães foi eleito presidente do Senado, derrotando por ampla margem de votos Íris Resende (PMDB-GO). No dia seguinte foi a vez de Michel Temer (PMDB-SP) eleger-se presidente da Câmara com maioria absoluta, superando Wilson Campos e Prisco Viana.

Realizada a segunda votação na Câmara em 25 de fevereiro, a emenda da reeleição foi aprovada. No Senado foi aprovada definitivamente em 4 de junho. Opuseram-se à reeleição, além dos 11 senadores do bloco da oposição, uma senadora do PTB, um senador do PFL e outro do PMDB. Abstiveram-se de votar dois representantes do PPB. Em seguida a emenda foi promulgada em sessão solene do Congresso.

O estabelecimento do direito à reeleição inaugurou uma situação inédita na história eleitoral do Brasil. Nunca um ocupante de cargo eletivo do Poder Executivo federal tinha tentado a reeleição. Durante a revisão constitucional de 1993/1994, quando o mandato do presidente foi reduzido de cinco para quatro anos, debatera-se a questão, mas o favoritismo de que o candidato do PT, Luís Inácio Lula da Silva, desfrutava nas pesquisas de opinião foi um obstáculo à aprovação da medida. Agora, os prognósticos favoreciam Fernando Henrique, imediatamente apontado pelo presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, como candidato à reeleição. Para os líderes situacionistas, o governo iniciava uma nova etapa, com o presidente certo de que poderia disputar novo mandato em 1998. O Congresso, por sua vez, passaria a cuidar das reformas constitucionais restantes, inclusive e especialmente a tributária, enquanto o governo e o presidente se ocupariam prioritariamente com ações de política pública.

Em março-abril de 1998, Fernando Henrique reformou mais uma vez a equipe ministerial, nomeando Francisco Turra (Agricultura e Abastecimento); José Botafogo Gonçalves (Indústria, Comércio e Turismo); Renan Calheiros (Justiça); Paulo Paiva (Planejamento e Orçamento); Waldeck Ornelas (Previdência e Assistência Social); José Serra (Saúde) e Edward Amadeo (Trabalho). Na ocasião, criou também o MinistérioExtraordinário de Reforma Institucional, nomeando para a pasta o senador piauiense Freitas Neto. Ainda em abril, contudo, o governo sofreu um duro golpe ao perder dois de seus principais aliados e articuladores: faleceram o ministro das Comunicações Sérgio Mota, no dia 19, e o líder do governo na Câmara, Luís Eduardo Magalhães, dois dias depois. Para o lugar de Mota foi nomeado Luís Carlos Mendonça de Barros.

Fernando Henrique e Marco Maciel disputaram a reeleição através da mesma coligação que os havia levado ao primeiro mandato, reunindo PSDB, PFL e PTB, e mais PPB e PMDB. Seus principais adversários foram Lula, candidato da coligação formada por PT, PDT, PSB e PCdoB, e Ciro Gomes, do Partido Popular Socialista (PPS). A campanha foi feita com base nos mesmos motes da anterior: estabilidade econômico-financeira e defesa do Plano Real. Inicialmente, as pesquisas de intenção de voto apontavam grandes possibilidades de vitória da chapa situacionista já no primeiro turno. Em meados do ano, porém, a tendência se inverteu, apresentando elevação das preferências por Lula e decréscimo da popularidade de Fernando Henrique. O comando da campanha optou, então, por acentuar o tom conservador da sua candidatura, centrando fogo na tese de que um governo petista implicaria o retorno da inflação e o estabelecimento do caos social no país.

Em julho, Fernando Henrique já havia retomado a trajetória ascendente, amparada, também, na estabilidade da moeda e na capitalização política dos números alcançados pelo programa de privatizações, que, ainda naquele mês, realizou sua mais espetacular operação, com a venda de 12 empresas estatais do setor de telecomunicações por cerca de 22 bilhões de reais. 

Realizado o pleito em 4 de outubro, Fernando Henrique foi eleito no primeiro turno com cerca de 36 milhões de votos (53,06% dos votos válidos), tornando-se o primeiro presidente reeleito da história brasileira para dois mandatos sucessivos. Lula recebeu aproximadamente 22 milhões de votos (31,71%) e Ciro Gomes, quase 7,5 milhões (10,97%).

Em 28 de outubro, o governo lançou o Programa de Estabilidade Fiscal para o triênio 1999-2001. Destinado a produzir resultados que eliminassem as apreensões dos investidores estrangeiros quanto à capacidade que o governo brasileiro teria de honrar seus compromissos financeiros internos e externos, o programa identificava a previdência social como o principal fator da crise das contas públicas e adotava uma série de medidas emergenciais, como o corte de gastos e aumento dos impostos, além de criar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabeleceu critérios rigorosos para o endividamento público municipal, estadual e federal e que entraria em vigor no mês de maio seguinte. Em novembro, o ministro Pedro Malan viajou para Washington com o objetivo de negociar com o FMI e com os bancos centrais de 20 países mais industrializados um pacote de ajuda de cerca de 41 bilhões de dólares. O acordo foi referendado pelo Senado no mês seguinte.

 

O Segundo Governo

Empossado em 1º de janeiro de 1999, Fernando Henrique Cardoso compôs seu ministério em acordo com as indicações dos partidos da base aliada. Nele foram mantidos Francisco Turra (Agricultura e Abastecimento), Luís Carlos Bresser-Pereira (agora na pasta da Ciência e Tecnologia), Francisco Weffort (Cultura), Paulo Renato Sousa (Educação), Pedro Malan (Fazenda), Fernando Bezerra (Integração Nacional), Renan Calheiros (Justiça), Paulo Paiva (Planejamento e Orçamento), Waldeck Ornelas (Previdência), Luís Felipe Lampreia (Relações Exteriores), José Serra (Saúde), Francisco Dornelles (agora na pasta do Trabalho e Emprego), Eliseu Padilha (Transportes), general Alberto Cardoso (Casa Militar, posteriormente Gabinete Institucional), general Benedito Onofre Bezerra Leonel (Casa Militar), Raul Jungmann (Ministério Extraordinário de Política Fundiária)e Ronaldo Sardenberg (Ministério Extraordinário de Projetos Especiais). Os novos nomeados foram Pimenta da Veiga (Comunicações), Celso Lafer (Desenvolvimento, Indústria e Comércio), Rafael Greca (Esporte e Turismo), Sarney Filho (Meio Ambiente), Rodolfo Tourinho (Minas e Energia), Walter Werner Bräuer (Aeronáutica), Gleuber Vieira (Exército), Sergio Gitirana Florêncio Chagasteles (Marinha) e Pedro Parente (Casa Civil). Nas Secretarias de Estado, foram empossados Cláudia Costin (Administração e Patrimônio), Wanda Aduan (Assistência Social) Andrea Matarazzo (Comunicação de Governo), Sérgio Cutolo (Desenvolvimento Urbano), José Gregori (Direitos Humanos – assumira em 1997, quando fora criada a Secretaria), Edward Amadeo (Planejamento e Avaliação), Eduardo Graeff (Relações Institucionais) e Aluísio Nunes Ferreira (Secretaria-Geral).

Durante a posse, Fernando Henrique anunciou a criação, ainda em condição extraordinária, do Ministério da Defesa, decisão que vinha sendo gestada desde o início do seu primeiro governo e que resultara no encaminhamento ao Congresso Nacional do Projeto de Lei Constitucional nº 250, de 1998. A proposta de criação do novo ministério e de extinção dos ministérios do Exército, Marinha e Aeronáutica, que passariam a comandos, havia suscitado resistências nos meios militares, mas Fernando Henrique conseguira vencê-las. No entanto, diante da reivindicação dos militares de que o novo ministro não fosse um político, o escolhido, Élcio Álvares, teve que se desligar do PFL para assumir a pasta. Segundo Fernando Henrique Cardoso, seu nome fora sugerido pelo almirante Mauro César Pereira, ministro da Marinha durante seu primeiro governo. A data efetiva da criação do Ministério da Defesa foi 10 de junho de 1999, quando foi aprovada a Medida Provisória 1799-6, que extinguiu o Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) e os ministérios militares.

 Ainda no início seu segundo mandato Fernando Henrique enfrentou problemas decorrentes da decisão do novo governador de Minas Gerais, Itamar Franco, tomada no dia 13 de janeiro, no sentido de decretar a moratória, por 90 dias, da dívida do estado com a União, que havia sido renegociada com o governo anterior e montava a 18,6 bilhões de reais. Foram suspensos, também, os pagamentos da dívida flutuante, no valor de 3,2 bilhões de reais, e de financiamentos internacionais. A medida contribuiu para a desvalorização dos títulos brasileiros no exterior, e o governo federal, em resposta, parou de repassar para Minas Gerais recursos determinados pela Constituição, como os do Fundo de Participação dos Municípios. Ao final, a dívida mineira foi repactuada em fevereiro de 2000.

Chegavam ao Brasil, também, os efeitos de nova crise financeira internacional, cujo epicentro se localizara, no ano anterior, na Rússia. Bilhões de dólares foram retirados do país por investidores. Em face das dificuldades para manter a “âncora cambial” que até então sustentara o Plano Real, o governo procedeu a uma radical mudança na área econômico-financeira. O regime cambial passou de fixo a flutuante, embora se mantivesse a possibilidade de intervenção do Banco Central no mercado. Um sistema de metas inflacionárias substituiu o então vigente, vinculado às bandas cambiais. Por fim, operacionalizou-se a execução de um dos compromissos do acordo feito com o FMI, pelo qual o regime fiscal foi alterado pela obrigatoriedade de manter-se um superávit primário elevado que garantisse uma proporção segura entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB). A desvalorização do real implicou o aumento dos juros e da dívida brasileira e levou o país a uma das mais graves crises de sua história. Além disso, houve, na época, sinais de vazamento de informações do Banco Central que teriam beneficiado instituições bancárias.

Observando as condições do FMI, Fernando Henrique reforçou a perspectiva neoliberal que orientara seu primeiro governo. A redução progressiva das dimensões do Estado e a busca de superávits nas contas públicas, para tranquilizar os credores internos e externos, tornaram-se os objetivos inquestionáveis do governo federal. Com isso, passavam ao segundo plano os investimentos de sentido diretamente social, em especial nas áreas da educação e saúde. Coerentemente com a tese de que a previdência social era um dos principais fatores de crise das contas públicas, o governo baixou, em novembro de 1999, a chamada Lei do Fator Previdenciário (Lei n° 9.876), que, entre outras mudanças na legislação vigente, alterou o cálculo dos benefícios, introduzindo redutores que rebaixaram as perspectivas pecuniárias dos aposentados.

Uma precária estabilidade financeira obtida em 2000 após a crise cambial não resistiu à incidência de eventos que abalaram o funcionamento do mercado. Na passagem de 2000 para 2001, o governo estabeleceu o corte 20% do consumo de eletricidade em quase todo o país (a região Sul não participou do racionamento, tendo em vista que suas represas estavam cheias), oferecendo estímulos aos consumidores que cumprissem a meta e sanções para os que não as respeitassem. A incidência de fortes chuvas em fins de 2001 tornou possível a suspensão do racionamento em fevereiro de 2002, mas não impediu que Fernando Henrique fosse alvo de pesadas críticas, que lhe atribuíam importante papel negativo no quadro de histórica carência de investimentos no setor elétrico, vista como responsável pelo “apagão”, como ficaria conhecida a crise de abastecimento de energia. A capacidade do governo de garantir o funcionamento da infraestrutura do país foi questionada, o que não contribuiu para tranquilizar os investidores.

No front externo, problemas com as economias norte-americana e argentina, bem como os atentados ocorridos nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, resultaram em perturbações no mercado cambial e na redução da disponibilidade de capitais externos para investimentos produtivos. A proximidade das eleições em 2002 complicou o quadro de insegurança dos investidores externos, contribuindo para a queda dos investimentos e para o agravamento das pressões inflacionárias. A situação preocupou seriamente as autoridades da área econômico-financeira, bem como os investidores, diante da possibilidade de eleição de um candidato oposicionista que reorientasse radicalmente a política monetária. Um compromisso dos candidatos e, no ano seguinte, as primeiras declarações do novo presidente, Luís Inácio Lula da Silva, desanuviariam contudo expectativas.

No último ano do governo Fernando Henrique, 2002, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro registrou um crescimento de 1,93 %, contra 4,22 % em 1995, ano de sua primeira posse. A taxa de desemprego aberto foi de 6.2%, contra 4,64 % em 1995. A renda média do trabalhador registrou crescimento negativo de 0,6 %, contra a taxa positiva de 11% em 1995. O real, que em 1995 valia 0,97 do dólar norte-americano, custava 3,73 dólares em 2002. Em contrapartida, a inflação – principal alvo das gestões do presidente Fernando Henrique Cardoso – foi de 7,61%, contra 22,41 % em 1995.

 

O Quadro Político

No segundo governo, Fernando Henrique Cardoso encontrou dificuldades relativamente maiores do que no primeiro para implementar seu programa político-administrativo, devido tanto à ação das correntes oposicionistas quanto a problemas internos em sua base de apoio. Aberta a temporada sucessória para a presidência do Senado, em inícios de 2000, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) envolveu-se em violenta disputa com o senador Jader Barbalho (PMDB-PA), com farta troca de acusações de corrupção. Barbalho venceu a eleição em fevereiro de 2001, e Antônio Carlos Magalhães, sentido-se traído pelo PSDB, lançou-se a uma campanha de críticas ao governo federal, acusando-o de conivência com a corrupção, o que acabaria por levar à demissão de dois ministros que havia indicado: Rodolfo Tourinho (Minas e Energia) e Waldeck Ornelas (Previdência Social). Em represália, o senador assinou em março, com Ornelas, o requerimento da oposição que propunha a criação de uma CPI da Corrupção, para investigar o governo de Fernando Henrique. Em seguida, contudo, ambos retiraram o apoio à iniciativa.

Nesse ínterim, estourou, ainda em fevereiro de 2001, outra crise. Segundo notícia que circulou na imprensa e nos meios políticos, Antônio Carlos teria confessado a procuradores do Ministério Público a violação do sigilo do voto eletrônico, em junho de 2000, na sessão de cassação do senador Luís Estevão (PMDB-DF), acusado de envolvimento em irregularidades financeiras. O senador teria recebido a lista com os votos de seus pares das mãos de José Riva maioria (61,3% dos votos).

 oberto Arruda (PSDB-DF), então líder do governo na Casa. Os dois negaram os fatos perante o Conselho de Ética do Senado, mas foram contraditados por Regina Borges, que na época exercia o cargo de diretora da Empresa de Processamento de Dados do Senado e relatou ter estado, no dia 27 de junho de 2000, na residência de Arruda, onde teria recebido o pedido, em nome de Antônio Carlos Magalhães, para violar o sistema eletrônico e obter a lista. Sem condições de sustentar a negativa, os dois, para não correr o risco de terem os mandatos cassados, o que os tornaria inelegíveis por longo período de tempo, optaram por renunciar em fins de maio de 2001.

A crise envolveu os partidos do presidente e do vice-presidente Marco Maciel (PFL-PE), aliados desde 1993, quando Fernando Henrique ainda era ministro da Fazenda e articulava o Plano Real. As disputas pela presidência da Câmara e do Senado em 2001 acabaram por aproximar o PSDB e o PMDB, enfraquecendo o PFL. Em 2002, contudo, a escolha do candidato à sucessão presidencial dividiu o PSDB, e José Serra, o escolhido, não conseguiu unanimidade no interior do partido. Da parte do PFL, a percepção de que o PSDB tendia a preferir um nome do PMDB para candidato a vice-presidente levou ao lançamento da candidatura presidencial de Roseana Sarney (PFL-MA), que acabaria por se retirar da disputa em março, em virtude do envolvimento do seu nome em denúncias de corrupção, mas marcaria a entrada do partido, pela primeira vez desde sua criação em 1985, no campo oposicionista. Em questões importantes para o governo, como a definição do salário mínimo e a prorrogação da CPMF, decididas em 2002, muito perto da eleição presidencial, o PFL votou com a oposição.

O PFL se absteria, afinal, de lançar ou apoiar oficialmente um candidato à sucessão presidencial. Em fins de 2002, a coalizão governista sofreu outras perdas expressivas. O afastamento do PTB e do PPB enfraqueceu a candidatura de José Serra, que teria como suporte básico a aliança entre o PSDB e a maioria do PMDB. Realizado o pleito em outubro, Serra passou ao segundo turno com Luís Inácio Lula da Silva – apoiado pelo PT, PCdoB, PCB, PL e Partido da Mobilização Nacional (PMN) –, que venceu a eleição com express

Balanço

Ao final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, a economia brasileira estava em situação delicada. A extrema dependência do capital estrangeiro criava problemas cambiais e monetários, com o reinício do processo inflacionário. A permanente política de juros altos limitava o crescimento econômico. Resultados positivos da balança comercial não geravam saldos suficientes para cobrir os custos da dívida externa, sempre crescente. Por outro lado, as reservas em moeda estrangeira permaneciam em patamares considerados baixos pelos investidores estrangeiros, agravando a percepção de risco para seus interesses.

O problema da ampla parcela da população situada na faixa de pobreza foi equacionado, também, de acordo com a ótica neoliberal predominante. Esperou-se que a estabilização da moeda propiciasse incrementos na renda real do conjunto da população, contribuindo para a melhoria da situação dos mais pobres. Por outro lado, para integrar a ação assistencialista do governo, criou-se, em meados do segundo mandato de Fernando Henrique, a Rede de Proteção Social, composta por mecanismos de redistribuição de renda já implantados, como Bolsa-Escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), “auxílio-gás” e aposentadorias rurais.

O quadro na área cultural apresentava os resultados da opção feita por Fernando Henrique em seus dois mandatos: transferir parte expressiva da responsabilidade estatal para a iniciativa privada, através da legislação de incentivos fiscais (Lei Rouanet e Lei do Audiovisual). Embora tenha havido uma revitalização do setor, em comparação com a situação herdada do governo Collor, que desmantelou suas estruturas, a prioridade conferida aos investimentos oriundos de “incentivos”, em grande parte feitos por empresas estatais, resultou na dependência dos agentes culturais em relação a interesses mercantis. Um dos resultados mais importantes dessa política foi o reforço da concentração do acesso à cultura nos grandes centros, permanecendo grande parte dos municípios brasileiros sem cinemas, bibliotecas, museus ou teatros.

No plano da educação, o assistencialismo foi a tônica no atendimento à infância, que permaneceu muito restrito, tanto em termos quantitativos quanto em termos qualitativos. As estatísticas oficiais davam conta de um aumento extraordinário na frequência escolar infantil, mas outros indicadores revelavam a precariedade da formação dos professores e das instalações escolares. Enquanto o ensino médio permanecia no quadro estabelecido no primeiro mandato, regulado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com suas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, o ensino superior foi alvo de uma política que deu prioridade à expansão do número de vagas, com o estímulo a instituições privadas, mas sem aumento significativo dos investimentos federais. Coerentemente com a sua vocação fiscalista, o governo investiu no aperfeiçoamento do Exame Nacional de Cursos (“provão”), substituído em 2003 pelo ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes), articulado com o sistema Avaliação das Condições da Oferta dos Cursos de Graduação.

A atuação do segundo governo na área da saúde ficou associada a avanços no combate à AIDS e ao retorno de doenças dadas como erradicadas do país, como hanseníase, malária e dengue. Em 1999, foi estabelecida a política de medicamentos genéricos, tentativa de reduzir a dificuldade de acesso a remédios, cujos preços se situavam entre os mais altos do mundo. A oferta de saúde básica permaneceu insuficiente, malgrado o aperfeiçoamento do processo administrativo, com o incremento da descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS) em direção aos estados e municípios. Em janeiro de 2000, foi criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), para regular e fiscalizar a prestação desse serviço, em franca expansão, dada a política governamental de terceirização e privatização do setor.

A política agrária foi sintetizada na criação, em 1999, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que tinha entre suas competências a reforma agrária e a promoção do desenvolvimento sustentável da agricultura familiar. No documento “Agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo mundo rural – política de desenvolvimento rural com base na expansão da agricultura familiar e sua inserção no mercado”, lançado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)  em março de 1999, o governo situou a agricultura familiar no centro de sua política de desenvolvimento rural. Tratava-se de encontrar alternativas para o modelo do “agronegócio”, que enfrentava dificuldades, e de dar uma resposta à intensificação dos movimentos de trabalhadores do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), combinando a nova política com a criminalização das ações dessas entidades.

Fernando Henrique Cardoso transmitiu a faixa presidencial a Luís Inácio Lula da Silva no dia 1° de janeiro de 2003. Após deixar o governo, permaneceu ligado ao PSDB, na condição de presidente de honra. Em 2004, fundou o Instituto Fernando Henrique Cardoso (FHC), com o objetivo de preservar o acervo privado resultante de sua vida pública e acadêmica, organizando-o para torná-lo acessível ao público. Foi inaugurado em maio de 2004, com um seminário internacional que reuniu políticos e intelectuais do Brasil e do exterior, entre eles, Bill Clinton e Manuel Castells. Passou, também, a atuar como conferencista no Brasil e no exterior.

Para fortalecer o FHC como instituição perene, o instituto transformou-se em fundação em 2010, segundo o próprio ex-presidente, “com a missão de preservar e tornar disponível ao público a documentação relativa à [sua] vida intelectual e política, bem como de promover a reflexão e o debate sobre o desenvolvimento sustentável e a democracia”.

Ainda em maio do mesmo ano foi inaugurada a primeira exposição interativa “Um plano real: a história da estabilização do Brasil”, que, de forma inovadora e fiel aos fatos, apresentou um período da história brasileira vivido de perto por FHC, que vai do movimento das “Diretas Já!”, em 1984, ao final de seu último mandato na Presidência da República, tendo como fio condutor os sucessivos planos contra a inflação, até o Real, que finalmente trouxe a estabilidade da moeda. Posteriormente, a Fundação iFHC incorporou ao seu acervo os documentos de dona Ruth Cardoso.

No dia 24 de junho de 2008 Dona Ruth Cardoso faleceu em São Paulo.

Em abril de 2011 a TV Câmara lançou o documentário “A Construção de Fernando Henrique”. O filme, com direção de Roberto Stefanelli, conta a trajetória do sociólogo e acadêmico que se tornou presidente da República por dois mandatos consecutivos (1995-2002). O ex-presidente participou da cerimônia de lançamento.

O documentário mostra um Fernando Henrique que ambicionava pouco mais do que ser professor e escrever livros, ter apenas uma vida intelectual e atuar em um meio, como ele reconheceu, que respirava certo pedantismo.

Fernando Henrique diz no documentário que nunca pensara em ser presidente da República. Imaginou, quando menino, ser padre. Sua mãe achava que poderia ser papa. Afinal, como destaca no documentário o sociólogo e professor Leôncio Martins Rodrigues, seu colega de faculdade e dos tempos de incertezas e fugas no regime militar, "em política, Fernando Henrique está mais para um besouro que, pelas leis físicas, não deveria voar, mas voa". Pela lógica da política populista brasileira, "ele não poderia se eleger”, mas “foi presidente da República por duas vezes, eleito em primeiro turno”. Outros amigos de infância também participaram, como o historiador Bóris Fausto e o filósofo José Arthur Gianotti. Houve ainda a participação de companheiros e alunos de exílio, como José Serra, além de Nelson Jobim, colega de constituinte, Clóvis Carvalho e Gustavo Franco, de governo.

A essência do filme é o testemunho do próprio Fernando Henrique acerca dos tempos em que atuou como professor no Chile, na França e nos Estados Unidos durante o período de exílio. O ex-presidente discorre ainda sobre sua vida política, feita de alianças e confrontos. Uma vida que não se resumiu apenas em vitórias; houve derrotas, como a que sofreu na disputa pela Prefeitura de São Paulo, em 1985, quando perdeu a eleição para Jânio Quadros.

O documentário registra também as referências que faz a ex-companheiros que se distanciaram para o campo oposto ao longo do caminho, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu sucessor na presidência da República, o antigo colega de escola Plínio de Arruda Sampaio, hoje no PSOL, e os antigos amigos de exílio, Maria da Conceição Tavares e Carlos Lessa. Fernando Henrique cita ainda aqueles que já se foram: Darcy Ribeiro,  Ulysses Guimarães e Franco Montoro. E fala de um Brasil que mudou muito na sua geração. Uma geração que conviveu com os tempos de Getúlio, Juscelino, Castelo Branco, Geisel, Sarney, Itamar e dos seus dois mandatos; dos progressos e retrocessos da economia e da política.

Em entrevista à revista Trip publicada em junho de 2011, Fernando Henrique defendeu uma bandeira improvável para um político de sua envergadura e importância: a “flexibilização da política global do combate às drogas”. Seus anos de viagens, conferências realizadas e comissões de que participou viraram o filme Quebrando o Tabu. Dirigido por Fernando Andrade, e com produção de seu irmão, o apresentador Luciano Huck, a película mostra, além de FHC, depoimentos surpreendentes de figuras importantes, como os ex-presidentes americanos Bill Clinton e Jimmy Carter, o médico e escritor Dráuzio Varella, o ator mexicano Gael García Bernal e uma longa lista de personalidades insuspeitas. O objetivo é levar o debate para camadas, em geral, avessas ao assunto – e começar a criar uma nova mentalidade sobre o tema. “Serve para, como o nome diz, quebrar o tabu mesmo. Não dá mais para fecharmos os olhos para esse problema.” Depois de rodar o mundo, conversar com policiais, médicos, usuários e estadistas, FHC chegou à conclusão de que a Guerra às Drogas é um fracasso. E defendeu que a maconha no Brasil “deveria ser regulada, como o álcool e o cigarro”. Na entrevista, destacou que este tema tornou-se uma de suas prioridades na condição de um ativo político sem mandato e justificou da seguinte forma: “Durante meu governo, a visão que se tinha no mundo era a de que seria possível erradicá-las. E foi ficando claro para mim que era um objetivo inalcançável. Foi essa percepção que me fez buscar gente que entende do assunto. Porque eu mesmo nunca tive conhecimento técnico da droga”.

Nos últimos anos, FHC passou a aparecer na mídia e em conferências internacionais como um defensor de uma reforma na política de drogas no Brasil e no mundo. Fundou e se tornou o nome mais influente de três comissões (a brasileira, a latino-americana e a global) que analisam os efeitos do proibicionismo na sociedade e, em última instância, na democracia. Para não restringir o debate aos gabinetes e às eventuais reportagens, ele também saiu do papel de ex-mandatário, e de acadêmico, para se tornar o protagonista de um filme que chegou às salas de cinema. Quebrando o tabu é um documentário que acompanha dois anos da trajetória de Fernando Henrique, viajando o mundo e o Brasil atrás de especialistas, exemplos de políticas mais flexíveis, usuários, ex-usuários e argumentos claros para defender a principal tese do filme: a de que a guerra às drogas é um fracasso.

A proposta de FHC, com o filme e na entrevista à Trip, é de que não só a lei, mas também a cultura precisam sofisticar a visão homogênea e inchada de preconceitos, que coloca as “drogas” sobre o mesmo nefasto guarda-chuva. “Não dá para tratar droga como se tudo fosse a mesma coisa. Então, temos que nos informar, informar a população e separar os tipos de drogas.” É com essa óbvia, porém rara, constatação que Fernando Henrique abre uma discussão que nunca chegava aos meios oficiais, e conservadores, da política. Sugere que o foco deva ser de prevenção, e não repressão. Que nenhum usuário seja considerado criminoso. E que as diferentes drogas possam ser vistas de acordo com os riscos e padrões de uso de cada uma. Dentro dessa visão, ele segue: “Minha opinião é a de que a maconha pode ser tratada de forma diferente. Isto é, regulada como é o álcool e o cigarro”.

Amparado por inúmeras pesquisas médicas que, uma atrás da outra, demonstram que há um considerável abismo entre o entendimento da lei e o que a maconha é de fato, ele constata o seguinte: “Ninguém pensa em liberar totalmente o uso. Mas, quando você vê os fatos, na verdade a maconha é menos danosa do que o álcool e o cigarro”. Mas FHC tem consciência de que não é nada simples a tarefa de transformar a opinião pública para tirar a maconha da ilegalidade total. São barreiras enormes, que vão de igrejas a delegacias, de falta de informação a preconceitos arraigados na mídia e nos lares. Mas, um dos maiores obstáculos só pode ser desafiado por gente ou instituições com credenciais como as de FHC, como, por exemplo, a ONU. A chamada Convenção Única de Drogas impede que qualquer um de seus signatários flexibilize demais suas leis sobre substâncias consideradas ilícitas no citado documento. O objetivo, concordaram os delegados em 1961, era erradicar tais substâncias, e certas plantas, da face da terra.

Entretanto, ao mesmo tempo em que um novo consenso internacional se forma, a situação no Brasil pode ser mais complicada. E justifica: “Eu acho que os políticos são mais conservadores do que a própria população”, concluiu, ciente do difícil trabalho legislativo que se anuncia quando um projeto de regulamentação da maconha for votado no Congresso Nacional. A esperança vem do fato de que uma reforma futura vem sendo costurada de forma não partidária. O mais importante texto que propõe uma reforma sobre o assunto é de autoria do deputado Paulo Teixeira, líder da bancada do PT na Câmara, e aliado de FHC nessa questão.

Em junho de 2013 FHC foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) com 34 votos de um total de 39. Ele ocupou a cadeira 36, que tinha como seu antecessor o jornalista e escritor paulista João Scantimburgo, falecido em março do mesmo ano. Na oportunidade, o então presidente da instituição, Marcus Vinícius Villaça, declarou: "Essa eleição é um ato de respeito da Academia Brasileira de Letras à inteligência brasileira. A grande obra de Fernando Henrique Cardoso de sociólogo e cientista dá ainda mais corpo à Academia". Tornou-se o terceiro ex-presidente da República a ser eleito para a ABL. O primeiro foi Getúlio Vargas, que, ainda presidente, em 1941, ocupou a cadeira 37, e José Sarney, eleito em 1980 para a cadeira 38, quando ainda era senador pelo Maranhão.

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo no início de dezembro de 2013, FHC chamou o ex-presidente Lula de “mago do ilusionismo”, condenou os mensaleiros e destacou que a hegemonia petista ameaça a democracia.

Embora expresse certo lamento pelo envolvimento de alguns nomes que lutaram pela redemocratização, FHC concorda que houve justiça no caso do mensalão e argumenta: “Escrevo sem júbilo: é triste ver na cadeia gente que em outras épocas lutou com desprendimento. Eles estão presos ao lado de outros que se dedicaram a encher os bolsos ou a pagar suas campanhas à custa do dinheiro público. Mais melancólico ainda é ver pessoas que outrora se jogavam por ideais – mesmo que controversos – erguerem os punhos como se vivessem uma situação revolucionária, no mesmo instante em que juram fidelidade à Constituição.” Condenou e classificou como farsas esses gestos dos mensaleiros com o seguinte argumento: “Onde está a revolução? Gesticulam como se fossem Lenines que receberam dinheiro sujo, mas o usaram para construir a ‘nova sociedade’. Nada disso: apenas ajudaram a cimentar um bloco de forças que vive da mercantilização da política e do uso do Estado para se perpetuar no poder. De pouco serve a encenação farsesca, a não ser para confortar quem a faz e enganar seus seguidores mais crédulos.”

No mesmo artigo enfatizou o objetivo eleitoreiro dos gestos e destacou a legitimidade da condenação dos mensaleiros pelo STF, enfatizando que a maioria dos ministros dessa Corte foi nomeada pelo governo do PT: “Basta de tanto engodo. A condenação pelos crimes do mensalão deu-se em plena vigência do Estado de Direito, num momento em que o Executivo é exercido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo governo indicou a maioria dos ministros do Supremo. Não houve desrespeito às garantias legais dos réus e ao devido processo legal. Então, por que a encenação? O significado é claro: eleições à vista. É preciso mentir, autoenganar-se e repetir o mantra. Não por acaso, a direção do PT amplifica a encenação e Lula diz que a melhor resposta à condenação dos mensaleiros é reeleger Dilma Rousseff…” E continuou: “Tem sido sempre assim, desde a apropriação das políticas de proteção social até a ideia esdrúxula de que a estabilização da economia se deveu ao governo do PT. Esqueceram as palavras iradas que disseram contra o que hoje gabam e as múltiplas ações que moveram no Supremo para derrubar as medidas saneadoras. O que conta é a manutenção do poder. Em toada semelhante, o mago do ilusionismo fez coro. Aliás, neste caso, quem sabe, um lapso verbal expressou sinceridade. ‘Estamos juntos’, disse Lula. Assumiu meio de raspão sua fatia de responsabilidade, ao menos em relação a companheiros a quem deve muito. E ao País, o que dizer?”

Continuando suas observações e críticas, destacou que a responsabilidade por esta situação não é apenas dos petistas: “São muitos os responsáveis por ela, não só os petistas. Poucos têm tido a compreensão do alcance destruidor dos procedimentos que permitem reproduzir o bloco de poder hegemônico; são menos numerosos ainda os que têm tido a coragem de gritar contra essas práticas. É enorme o arco de alianças políticas no Congresso cujos membros se beneficiam por pertencerem à ‘base aliada’ de apoio ao governo. Calam-se diante do mensalão e das demais transgressões, como se o ‘hegemonismo petista’ que os mantém fosse compatível com a democracia. Que dizer, então, da parte da elite empresarial que se ceva dos empréstimos públicos e emudece diante dos malfeitos do petismo e de seus acólitos? Ou da outrora combativa liderança sindical, hoje acomodada nas benesses do poder? Os seguidores do lulopetismo, por serem crédulos, talvez sejam menos responsáveis pela situação a que chegamos do que os cínicos, os medrosos, os oportunistas, as elites interesseiras que fingem não ver o que está à vista de todos. Que dizer, então, das práticas políticas? Não dá mais!”

O ex-presidente FHC concluiu seu artigo com a seguinte argumentação: “Estamos a ver as manobras preparatórias para mais uma campanha eleitoral sob o signo do embuste. A candidata oficial, pela posição que ocupa, tem cada ato multiplicado pelos meios de comunicação. Como o exercício do poder se confundiu, na prática, com a campanha eleitoral, entramos já em período de disputa. Disputa desigual, na qual só um lado fala e as oposições, mesmo que berrem, não encontram eco. E sejamos francos: estamos berrando pouco. É preciso dizer com coragem, simplicidade e de modo direto, como fizeram alguns ministros do Supremo, que a democracia não se compagina com a corrupção nem com as distorções que levam ao favorecimento dos amigos. Não estamos diante de um quadro eleitoral normal. A hegemonia de um partido que não consegue deslindar-se de crenças salvacionistas e autoritárias, o acovardamento de outros e a impotência das oposições estão permitindo a montagem de um sistema de poder que, se duradouro, acarretará riscos de regressão irreversível. Escudado nos cofres públicos, o governo do PT abusa do crédito fácil que agrada não só aos consumidores, mas, em volume muito maior, aos audaciosos que montam suas estratégias empresariais nas facilidades dadas aos amigos do rei. A infiltração dos órgãos de Estado pela militância ávida e por oportunistas que querem beneficiar-se do Estado distorce as práticas republicanas. Tudo isso é arquissabido. Falta dar um basta aos desmandos, processo que, numa democracia, só tem um caminho: as urnas. É preciso desfazer na consciência popular, com sinceridade e clareza, o manto de ilusões com que o lulopetismo vendeu seu peixe. Com a palavra as oposições e quem mais tenha consciência dos perigos que corremos.”

No dia 5 de janeiro de 2014, o ex-presidente FHC publicou um artigo no jornal carioca O GLOBO, sob o título “Mudar o rumo”, no qual criticava a política externa brasileira do governo petista. Na oportunidade, destacou a necessidade de revisão do seu foco, de que o Brasil estreitasse relações com os Estados Unidos e a Europa, fizesse múltiplos acordos comerciais, não temesse a concorrência e voltasse a assumir seu papel na América Latina.

O ex-presidente enfatizou que a esperança de renovação trazida pelo Ano Novo só seria possível com a mudança de rumo, começando “pela visão sobre o mundo que ressurgirá da crise de 2007/08. O governo petista, sem o dizer, colocou suas fichas no ‘declínio do Ocidente’. Da crise surgiria uma nova situação de poder na qual os Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], o mundo árabe e o que pudesse se assemelhar ao ex-terceiro mundo teriam papel de destaque. A Europa, abatida, faria contraponto aos Estados Unidos minguantes”. Fernando Henrique afirma que “não é o que está acontecendo: os americanos saíram à frente, depois de umas quantas estripulias para salvar seu sistema financeiro e afogar o mundo em dólares, e deram uma arrancada forte na produção de energia barata. O mundo árabe, depois da Primavera, continua se estraçalhando entre xiitas, sunitas, militares, seculares, talibãs e o que mais seja; a Rússia passou a ser produtora de matérias-primas. Só a China foi capaz de dar ímpeto à sua economia. Provavelmente as próximas décadas serão de ‘coexistência competitiva’ entre os dois gigantes, Estados Unidos e China, com partes da Europa integradas ao sistema produtivo americano e com as potências emergentes, inclusive nós, o México, a África do Sul e tantas outras, buscando espaços de integração comercial e produtiva para não perderem relevância”.

E aí ele justifica a necessidade de mudança da política externa brasileira: “Nessa ótica, é óbvio que a política externa brasileira precisará mudar de foco, abrir-se ao Pacífico, estreitar relações com os Estados Unidos e a Europa, fazer múltiplos acordos comerciais, não temer a concorrência e ajudar o país a se preparar para ela. O Brasil terá de voltar a assumir seu papel na América Latina, hoje diminuído pelo bolivarianismo prevalecente em alguns países e pelo Arco do Pacífico, com o qual devemos nos engajar, pois não deve nem pode ser visto como excludente do Mercosul. Não devemos ficar isolados em nossa região, hesitantes quanto ao bolivarianismo, abraçados às irracionalidades da política argentina, que tomara se reduzam, e pouco preparados face à investida americana no Pacífico.”

Mais adiante ele destaca a necessidade de aumentar as exportações, mas, para isso, será necessário dinamizar a produção para o mercado interno, ter equilíbrio na ênfase dada ao consumo para maior atenção ao aumento da produtividade, sem redução dos programas sociais e demais iniciativas de integração social. Segundo FHC, “a promoção do aumento da produtividade, no caso, não se restringe ao interior das fábricas, abrange toda a economia e a sociedade. Na fábrica, depende das inovações e do entrosamento com as cadeias produtivas globais, fonte de renovação. Na economia, depende de um ousado programa de ampliação e renovação da infra-estrutura e, na sociedade, de maior atenção à qualificação das pessoas (Educação) e às suas condições de saúde, segurança e transporte. Sem dizer que já é hora de abaixar os impostos sem selecionar setores beneficiários e de abrir mais a economia, sem temer a competição. Isso tudo em um contexto de fortalecimento das instituições e práticas democráticas e de redefinição das relações entre o governo e a sociedade, entre o Estado e o mercado”.

Prosseguindo, ele acusa o governo do PT de haver paralisado o país nos últimos dez anos e o classifica de atabalhoado e amador: “Será necessário despolitizar as agências reguladoras, robustecê-las, estabilizar os marcos regulatórios, revigorar e estimular as parcerias público-privadas para investimentos fundamentais. Noutros termos, fazer com competência o que o governo petista paralisou nos últimos dez anos e que o atual governo, de Dilma Rousseff, vê-se obrigado a fazer, mas o faz atabalhoadamente, abusando do direito de aprender por ensaios e erros deixando no ar a impressão de amadorismo e a dúvida sobre a estabilidade das regras do jogo. Com isso, não se mobilizam, no setor privado, os investimentos na escala e na velocidade necessárias para o país dar um salto em matéria de infra-estrutura e produtividade.”

Continuando com suas críticas ao governo, ele destaca suas ações na determinação do modelo de exploração do pré-sal e o acusa de manipulação dos índices de inflação: “Mordido ainda pelo DNA antiprivatista e estatizante, persiste o governo atual nos erros cometidos na definição do modelo de exploração do pré-sal. A imposição de que a Petrobras seja operadora única e responda por pelo menos 30% da participação acionária em cada consórcio, somada ao poder de veto dado às PPSA nas decisões dos comitês operacionais, afugenta número maior de interessados nos leilões do pré-sal, reduz o potencial de investimento em sua exploração e diminui os recursos que o Estado poderia obter com decantado regime de partilha. É ruim para a Petrobras e péssimo para o país. Além de insistir em erros palmares, o atual governo faz contorcionismo verbal para negar que concessões sejam modalidades de privatização. É patético. Também para negar a realidade, se desdobra em explicações sobre a inflação, que só não está fora da meta porque os preços públicos estão artificialmente represados, e sobre a solidez das contas públicas, objeto de declarações e contabilidades oficiais às vezes criativas, não raro desencontradas, em geral divorciadas dos fatos.”

Concluindo, sugere algumas soluções: “Tão necessário quanto recuperar o tempo perdido e acertar o passo nas obras de infraestrutura será desentranhar da máquina pública e, sobretudo, nas empresas estatais (felizmente nem todas cederam à sanha partidária), os nódulos de interesses privados e/ou partidários que dificultam a eficiência e facilitam a corrupção. Não menos necessário será restabelecer o sentido de serviço público nas áreas sociais, de Educação, Saúde e reforma agrária, resguardando-as do uso para fins eleitorais, partidários ou corporativos. Só revalorizando a meritocracia e com obsessão pelo cumprimento de metas o Brasil dará o salto que precisa dar na qualidade dos serviços públicos. Com uma carga tributária de 36% do PIB, recursos não faltam. Falta uma cultura de planejamento, cobrança por desempenho e avaliação de resultados, sem “marketismo”. Ou alguém acredita que mantido o sistema de cooptação, barganhas generalizadas, corrupção, despreparo administrativo e voluntarismo, enfrentaremos com sucesso o desafio? É preciso redesenhar a rota do país. Dois terços dos entrevistados em recentes pesquisas eleitorais dizem desejar mudanças no governo. Há um grito parado no ar, um sentimento difuso, mas que está presente. Cabe às oposições expressá-lo e dar-lhe consequências políticas. É a esperança que tenho para 2014 e são meus votos para que o ano seja bom.”

 

Acusado de Receber Ajuda da CIA

Também no início de janeiro de 2014 foi lançado no Brasil o livro Quem pagou a conta? A CIA na Guerra Fria da cultura, da escritora Frances Stonor Saunders  no qual o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é acusado, frontalmente, de receber dinheiro da agência norte-americana de espionagem, para ajudar os EUA a “venderem melhor sua cultura aos povos nativos da América do Sul”. A obra logo se esgotou nas duas maiores livrarias do Rio de Janeiro. O interesse sobre a obra da escritora e ex-editora de Artes da revista britânica The New Statesman, no Brasil, pode ser avaliado ao longo dos cinco anos de seu lançamento. Segundo os editores, o livro recebeu “uma ampla cobertura pela mídia quando foi lançado no exterior”, em 1999. Na obra, Frances Stonor Saunders narra em detalhes como e por que a CIA, durante a Guerra Fria, financiou artistas, publicações e intelectuais de centro e centro-esquerda, num esforço para mantê-los distantes da ideologia comunista. Cheia de personagens instigantes e memoráveis, entre eles o ex-presidente brasileiro, “esta é uma das maiores histórias de corrupção intelectual e artística pelo poder”, afirma a autora. No Brasil, ainda em 1999 o jornalista Sebastião Nery comentou em sua coluna no jornal carioca Tribuna da Imprensa que não seria possível resumir a obra em tão pouco espaço e afirmou: “São 550 páginas documentadas, minuciosa e magistralmente escritas”.

De acordo com a resenha feita pelo site http://correiodobrasil.com.br e publicada em 7 de janeiro de 2014, “com o término da Segunda Guerra Mundial, a CIA passou a financiar artistas e intelectuais de direita; o que poucos sabem é que ela também cortejou personalidades de centro e de esquerda, num esforço para afastar a intelligentsia do comunismo e aproximá-la do American way of life. No livro, Saunders detalha como e por que a CIA promoveu congressos culturais, exposições e concertos, bem como as razões que a levaram a publicar e traduzir nos Estados Unidos autores alinhados com o governo norte-americano e a patrocinar a arte abstrata, como tentativa de reduzir o espaço para qualquer arte com conteúdo social. Além disso, por todo o mundo, subsidiou jornais críticos do marxismo, do comunismo e de políticas revolucionárias. Com esta política, foi capaz de angariar o apoio de alguns dos maiores expoentes do mundo ocidental, a ponto de muitos passarem a fazer parte de sua folha de pagamentos”. E cita as publicações que integraram este universo: “Partisan Review, Kenyon Review, New Leader e Encounter foram algumas das publicações que receberam apoio direto ou indireto dos cofres da CIA. Entre os intelectuais patrocinados ou promovidos pela CIA, além de FHC, estavam Irving Kristol, Melvin Lasky, Isaiah Berlin, Stephen Spender, Sidney Hook, Daniel Bell, Dwight MacDonald, Robert Lowell e Mary McCarthy, entre outros. Na Europa, havia um interesse especial na Esquerda Democrática e em ex-esquerdistas, como Ignacio Silone, Arthur Koestler, Raymond Aron, Michael Josselson e George Orwell”.

Outra obra relata uma história que reforça as afirmações de Saunders. Ela está contada na página 154 do livro Fernando Henrique Cardoso, o Brasil do possível, da jornalista francesa Brigitte Hersant Leoni, publicado em 1997 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, com tradução de Dora Rocha. O “inverno do ano de 1969? a que se referiu a autora era fevereiro daquele ano. A história narra como e o valor recebido por FHC: “Numa noite de inverno do ano de 1969, nos escritórios da Fundação Ford, no Rio, Fernando Henrique teve uma conversa com Peter Bell, o representante da Fundação Ford no Brasil. Peter Bell se entusiasma e lhe oferece uma ajuda financeira de US$ 145 mil. Nasce o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)”.

Observando-se o contexto político da época, a ditadura militar havia lançado o AI-5 em 13 de dezembro, portanto, há menos de 60 dias, e elevado ao máximo o estado de terror após o golpe de 64, como afirma a autora, “desde o início financiado, comandado e sustentado pelos Estados Unidos”. Intensificaram-se as cassações e suspensões de direitos políticos. As prisões, lotadas. O ex-presidente Juscelino Kubitscheck e o ex-governador Carlos Lacerda haviam sido presos. Enquanto isso, Fernando Henrique recebia da poderosa Fundação Ford uma primeira parcela para fundar o Cebrap. O total do financiamento nunca foi revelado. Na Universidade de São Paulo (USP), por onde passou FHC, era voz corrente que o compromisso final dos norte-americanos girava em torno de US$ 800 mil a US$ 1 milhão.

Segundo reportagem publicada no diário russo Pravda, um ano após (1980) o lançamento do livro no Brasil, os norte-americanos “não estavam jogando dinheiro pela janela”. E afirmava: “Fernando Henrique já tinha serviços prestados. Eles sabiam em quem estavam aplicando (os dólares)”. Na época, FHC lançara, em companhia do sociólogo chileno Enzo Faletto, o livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, em que ambos defendiam a tese de que países em desenvolvimento ou mais atrasados poderiam desenvolver-se mantendo-se dependentes de outros países mais ricos. Como os Estados Unidos”. A cantilena foi repetida por FHC, em entrevista concedida ao diário paulistano Folha de S. Paulo, na edição de 29 de dezembro de 2013. Com a cobertura e o dinheiro dos norte-americanos, FHC tornou-se, segundo o Pravda, “uma ‘personalidade internacional’ e passou a dar ‘aulas’ e fazer ‘conferências’ em universidades norte-americanas e europeias. Era ‘um homem da Fundação Ford’. E o que era a Fundação Ford? Uma agente da CIA, um dos braços da CIA, o serviço secreto dos EUA”.

O site http://correiodobrasil.com.br/ publicou ainda que não há registros imediatos de que o ex-presidente tenha negado ou admitido as denúncias constantes nos livros de Saunders e Leoni. E acrescenta que em julho de 2013, no entanto, o jornalista Bob Fernandes, comentarista político da TV Gazeta, de São Paulo, publicou artigo no qual repassou o envolvimento do ex-presidente com os serviços de espionagem dos EUA, sem que tivesse havido necessidade, posteriormente, de negar uma só palavra do que havia dito. Segundo Fernandes, “o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso diz que ‘nunca soube de espionagem da CIA’ no Brasil. O governo atual cobra explicações dos Estados Unidos”.

E continua: “Vamos aos fatos. Entre março de 1999 e abril de 2004, publiquei 15 longas e detalhadas reportagens na revista Carta Capital. Documentos, nomes, endereços, histórias provavam como os Estados Unidos espionavam o Brasil. Documentos bancários mostravam como, no governo FHC, a DEA, agência norte-americana de combate ao tráfico de drogas, pagava operações da Polícia Federal. Chegava inclusive a depositar na conta de delegados. Porque aquele era um tempo em que a PF não tinha orçamento para bancar todas as operações e a DEA bancava as de maiores dimensão e urgência”, garante Fernandes. Ainda segundo o jornalista, o mínimo de “16 serviços secretos dos EUA operavam no Brasil. Às segundas-feiras, essas agências realizavam a ‘Reunião da Nação’, na embaixada [americana], em Brasília”.

Bob Fernandes, que foi redator-chefe da Carta Capital, trabalhou nas revistas IstoÉ (BSB e EUA) e Veja, foi repórter da Folha de S. Paulo e do Jornal do Brasil, afirmou ainda que “tudo isso foi revelado com riqueza de detalhes: datas, nomes, endereços, documentos, fatos. Em abril de 2004, com a reportagem de capa, publicamos os nomes daqueles que, disfarçados de diplomatas, como é habitual, chefiavam CIA, DEA, NSA e demais agências no Brasil. Vicente Chellotti, diretor da PF [Polícia Federal], caiu depois da reportagem de capa Os Porões do Brasil, de 3 de março de 1999. Isso no governo de FHC, que agora, na sua página no Facebook, disse desconhecer ações da CIA no país”, concluiu Bob Fernandes.

 

Sucessão Presidencial

Ainda no início de janeiro de 2014 intensificaram-se as acusações envolvendo membros do governo paulista do PSDB na formação de cartel em licitações na área do metrô e trens metropolitanos de São Paulo. Na oportunidade, três auxiliares do governador Geraldo Alckmin (PSDB) tiveram seus nomes envolvidos em investigações sobre este cartel: o secretário da Casa Civil, Edson Aparecido (PSDB), o secretário de Energia, José Aníbal (PSDB), e o secretário de Desenvolvimento, Rodrigo Garcia (DEM). As investigações começaram em 2008, a partir de contratos de energia do governo paulista com a multinacional francesa Alstom. Ministro da Secretaria de Comunicação do segundo mandato de FHC no Palácio do Planalto e secretário de Energia na gestão do ex-governador tucano Mário Covas, Andrea Matarazzo, então vereador do PSDB na capital paulista, também integrava a lista dos 11 nomes indiciados por causa de suspeitas em contratos com a Alstom. Fernando Henrique defendeu a apuração dessas denúncias, mas acrescentou que não via nenhum indício que indicasse qualquer ligação do episódio com o governador do Estado e nem com o PSDB.

Em entrevista ao blog do jornalista Josias de Sousa no dia 23 de janeiro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao se manifestar sobre a eleição presidencial de 2014, afirmou que a vitória de Aécio Neves ou Eduardo Campos será bom para o país. Ele disse: “Não estou pensando partidariamente, estou pensando historicamente. Está na hora. O Brasil precisa arejar”.

Sobre a sua preferência na corrida presidencial, FHC, como principal líder da oposição e presidente de honra do PSDB, declarou que prefere Aécio, “porque tem uma estrutura partidária maior. Mas acho que o Eduardo está tomando posições que são corretas e vai arejar de qualquer maneira.”

Ele identificou uma “fadiga de material” na administração petista. Em sua avaliação, “a população está sentindo que está na hora de mudar”. Mas entende bem que a mudança não virá de mão beijada. “Essa eleição só será ganha pela oposição se alguém da oposição, seja quem vier a ser, tiver coragem de dizer as coisas como elas são, com simplicidade.''

Em sua análise, FHC reconheceu que Aécio Neves e Eduardo Campos ainda não se firmaram como contrapontos viáveis da presidente Dilma Rousseff. Achou isto natural, já que o eleitor só irá prestar atenção na disputa presidencial “depois da Copa.” Por ora, só a presidente é realmente conhecida. Sem “ilusões” quanto à dificuldade da disputa, celebrou uma novidade: “Pela primeira vez, houve um deslocamento de blocos do governo.”

O ex-presidente afirmou: “Tanto a Marina quanto o Eduardo [saíram] do bloco do governo e [foram] pro outro lado. A campanha vai forçar uma certa radicalização. E acho que há, pela primeira vez também, uma articulação positiva entre o Eduardo e o Aécio.” Para FHC, ambos entenderam que precisam “somar forças.”

Ao ser perguntado quanto à aversão de Marina Silva às alianças do PSB de Campos com o PSDB, respondeu: “A resistência dela é outra. Ela quer fazer o partido dela. O objetivo da Marina não é eleger o Eduardo, é fazer a Rede. E ela quer ter candidatos que permitam que a Rede exista. Então, nesses Estados em que ela tem candidatos que podem fazer alguma aglutinação, ela vai defender os interesses dela.”

FHC concordou que também há “fadiga de material” em São Paulo, mas antes acrescentou que, ainda assim, “é difícil que o PT tenha condições de ganhar em São Paulo. Não é impossível, mas acho difícil.”

Depois de criticar o ex-presidente Lula que impôs ao PSDB os nomes da presidente Dilma Rousseff e do prefeito paulistano Fernando Haddad, chamando-os de “postes”, FHC também criticou o lançamento do nome do então ministro da saúde, Alexandre Padilha, para o governo de São Paulo. Ao ser perguntado se não receia a eleição do ministro, declarou, em tom irônico: “Eu tenho receio de outra coisa. Que o Lula, de botar tanto poste sem luz, acabe escurecendo o Brasil. É preciso evitar isso.”

Ao responder a pergunta se o PSDB não deve explicações ao país sobre o mensalão tucano de Minas e o cartel de trens e metrô de São Paulo, FHC disse: “No caso de Minas Gerais, na época, eu fui dos poucos que disse que era preciso uma explicação. Agora, vamos qualificar. O que houve em Minas Gerais foi o que o Lula disse que era natural. Foi, eventualmente, desvio de recursos para campanha eleitoral [de Eduardo Azeredo, em 1998]. Não é perdoável, mas é diferente do mensalão. O mensalão foi compra sistemática de apoio para o governo no Congresso.” Josias de Sousa recordou a FHC que o operador dos dois mensalões foi o mesmo: Marcos Valério; que o agente financeiro dos empréstimos fictícios também se repetiu: Banco Rural. E houve desvio de verbas públicas nos dois casos. O ex-presidente prosseguiu: “Não estou negando isso, nem estou desculpando, estou dizendo, entretanto, que, se houve, foi para a campanha. Não justifico, mas é diferente.” Concluiu dizendo esperar que o STF julgue a encrenca tucana com o mesmo rigor que aplicou no julgamento da ação penal do mensalão petista.

Sobre o cartel de São Paulo, ratificou o que sempre disse: “Acho que tem que ser apurado. Se trata de suborno, parece óbvio, de funcionários. Qual é o elo disso com o governador ou com o partido? Eu não vi nem indício. É corrupção, é condenável, mas não foi para o PSDB. Não apareceu, pelo menos até hoje, nenhum dado que diga: esse dinheiro foi usado pelo PSDB. Não foi. É outra coisa. É corrupção, condenável. O PSDB tem que explicar isso.”

No dia 29 de janeiro de 2014, aos 82 anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao assinar um contrato em um cartório de São Paulo, oficializou a união estável com sua companheira Patrícia Kundrát, de 36 anos.

Em mais um artigo publicado em 4 de maio de 2014, FHC criticou os escândalos no governo, destacando, entre outros, o desencadeado com o envolvimento da Petrobras na compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, que levaria à criação de duas comissões parlamentares de inquérito: uma no Senado e outra mista (Senado e Câmara dos Deputados). Além disso, criticou ainda o excesso de ministérios e de partidos políticos, que levam o governo ao que chamou de “presidencialismo de cooptação”. Segundo o ex-presidente, “os escândalos jorram em abundância, não dá para tapar o sol com a peneira. O da Petrobras é o mais simbólico, dado o apreço que todos temos pelo que a companhia fez para o Brasil. Escrevo porque os escândalos que vêm aparecendo numa onda crescente são sintomas de algo mais grave: é o próprio sistema político atual que está em causa, notadamente suas práticas eleitorais e partidárias. Nenhum governo pode funcionar na normalidade quando atado a um sistema político que permitiu a criação de mais de 30 partidos, dos quais 20 e poucos com assento no Congresso. A criação, pelo governo atual, de 39 ministérios para atender as demandas dos partidos é prova disso e, ao mesmo tempo, é garantia de insucesso administrativo e da conivência com práticas de corrupção, apesar da resistência a essas práticas por alguns membros do governo”. Segundo ele, só uma reforma política profunda e verdadeira impedirá que novos escândalos se repitam.

O ex-presidente destacou que “nunca [entendeu] a razão pela qual o governo Lula fez questão de formar uma maioria tão grande e pagou o preço do mensalão”. E prosseguiu: “Ou melhor, posso entendê-la: é porque o PT tem vocação de hegemonia. Não vê a política como um jogo de diversidade no qual as maiorias se compõem para fins específicos, mas sem a pretensão de absorver a vida política nacional sob um comando centralizado.” Para FHC, “a contaminação da vida político-administrativa foi se agravando até chegarmos ao ponto a que chegamos. Se, no passado, nosso sistema de governo foi chamado de ‘presidencialismo de coalizão’, agora ele é apenas um ‘presidencialismo de cooptação’. Meu próprio governo precisou formar maiorias. Mas havia um objetivo político claro: precisávamos de três quintos da Câmara e do Senado para aprovar reformas constitucionais necessárias à modernização do país. Ora, os governos que me sucederam não reformaram nada nem precisaram de tal maioria para aprovar emendas constitucionais. Deixaram-se levar pela dinâmica dos interesses partidários. Não só do partido hegemônico no governo, o PT, nem dos maiores, como o PMDB, mas de qualquer agregação de 20, 30 ou 40 parlamentares, às vezes menos, que, para participar da ‘base de apoio’, organizam-se numa sigla e pleiteiam participação no governo: um ministério, se possível; se não, uma diretoria de empresa estatal ou uma repartição pública importante. Daí serem precisos 39 ministérios para dar cabida a tantos aderentes”.

Para o ex-presidente, “a raiz desse sistema se encontra nas regras eleitorais que levam os partidos a apresentarem uma lista enorme de candidatos em cada estado, para, nelas, o eleitor escolher seu preferido, sem saber bem quem são ou que significado político-partidário têm. Logo depois, nem se lembra em quem votou. A isso se acrescenta a liberalidade de nossa Constituição, que assegura ampla liberdade para a formação de partidos. Por isso, não se podem obter melhorias nessas regras por intermédio da legislação ordinária. Algumas dessas melhorias foram aprovadas pelos parlamentares. Por exemplo, a exigência de uma proporção mínima de votos em certo número de estados para a autorização do funcionamento dos partidos no Congresso. Ou a proibição de coligações nas eleições proporcionais, por meio das quais se elegem deputados de um partido coligado aproveitando a sobra de votos de outro partido. Ambas foram recusadas pelo Supremo Tribunal Federal por serem inconstitucionais”.

FHC prossegue com sua argumentação: “Com o número absurdo de partidos (a maior parte deles meras siglas sem programa, organização ou militância), forma-se, a cada eleição, uma colcha de retalhos no Congresso, em que mesmo os maiores partidos não têm mais do que um pedaço pequeno da representação total. Até a segunda eleição de Lula, os presidentes se elegiam apoiados em uma coalizão de partidos e logo tinham de ampliá-la para ter a maioria no Congresso. De lá para cá, a coalizão eleitoral passou a assegurar maioria parlamentar. Mas, por vocação do PT à hegemonia, o sistema degenerou no que chamo de “presidencialismo de cooptação”. E deu no que deu: um festival de incoerências políticas e portas abertas à cumplicidade diante da corrupção.”

Concluindo, ele afirma: “Mudar o sistema atual é uma responsabilidade coletiva. Repito o que disse, em outra oportunidade, a todos os que exerceram ou exercem a Presidência: por que não assumimos nossas responsabilidades, por mais diversa que tenha sido nossa parcela individual no processo que nos levou a tal situação, e nos propomos a fazer conjuntamente o que nossos partidos, por suas impossibilidades e por seus interesses, não querem fazer: mudar o sistema? Sei que se trata de um grito um tanto ingênuo, pedir grandeza. A visão de curto prazo encolhe o horizonte para o hoje e deixa o amanhã distante. Ainda assim, sem um pouco de quixotismo, nada muda. Se, de fato, queremos sair do lodaçal que afoga a política e conservar a democracia que tanto custou ao povo conquistar, vamos esperar que uma crise maior destrua a crença em tudo e a mudança seja feita não pelo consenso democrático, mas pela vontade férrea de algum salvador da pátria?”

Ainda em maio, em entrevista ao jornalista Roberto D’Ávila, na Globo News, veiculada no dia 11, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que o PT corre o risco de perder a disputa pela presidência da República, mesmo na hipótese de o candidato ser o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no lugar de Dilma Rousseff. FHC voltou a destacar que existe uma fadiga de material do PT no governo federal: “Quando você fica muito tempo no poder, os compromissos são muitos. Mesmo querendo mexer na máquina, você não consegue. Veja a presidenta Dilma. Ela começou tentando, mas não consegue. Com o tempo, você perde a capacidade de renovar.”

Em junho o Instituto DataFolha publicou uma pesquisa eleitoral sobre a preferência dos eleitores na escolha do seu candidato à presidência da República. Na matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo consta a informação de que a personalidade com menos influência positiva e mais influência negativa na decisão de voto do eleitor é FHC. A pesquisa revelou que 57% do universo de eleitores pesquisado declararam que não votariam, de jeito nenhum, em um candidato apoiado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Após a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) mista para investigar a compra da refinaria de Pasadena nos Estados Unidos, na mesma votação que convocou uma série de autoridades dos governos petistas de Lula e Dilma, os integrantes dessa comissão aprovaram, em bloco, pedidos de acesso a documentos que envolviam o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. A decisão ocorreu após um “cochilo” da oposição.

Durante os debates, o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) solicitou a exclusão de quatro requerimentos que pediam documentos referentes ao acidente da plataforma P-36, que afundou em março de 2001, durante o governo de FHC, e dos processos que ainda tramitavam no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que envolviam a troca de ativos entre a Petrobras e a companhia ibero-americana Repsol YPF. No plano de trabalho proposto pelos relatores das CPIs mista e exclusiva do Senado, respectivamente, o deputado Marco Maia (PT-RS) e o senador José Pimentel (PT-CE), citaram que a tragédia do afundamento da P-36 tirou a vida de 11 trabalhadores e gerou um custo para a estatal de US$ 2,2 bilhões. Disseram ainda que a operação da refinaria de Bahia Blanca poderia ter causado um prejuízo de US$ 2,5 bilhões à Petrobras.

Além dos trabalhos citados e de mais de uma centena de artigos em revistas nacionais e estrangeiras, Fernando Henrique publicou, entre outros, A construção da democracia – estudos sobre política (1993), As idéias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento (2ª ed. rev. e ampl. 1993), The new global economy in the information agereflections on our changing world (em co-autoria com M. Carnoy, Manuel Castells e S. Cohen, 1993), O presidente segundo o sociólogo (entrevista a Roberto Pompeu de Toledo, 1998), O mundo em português; um diálogo (em co-autoria com Mário Soares), Charting a new course: the politics of globalization and social transformation (2001), Transição e democracia: institucionalizando a passagem do poder (2002), A arte da política: a história que vivi (2006), The accidental President of Brazil: a memoir  (com Brian Winter, 2006), Cartas a um jovem político: para construir um pais melhor (2006).

Vários dos seus discursos encontram-se em Política externa em tempos de mudança: a gestão do ministro Fernando Henrique Cardoso no ItamaratyA utopia viável: trajetória intelectual de Fernando Henrique Cardoso e Globalização e outros temas contemporâneos. Seus programas de governo podem ser consultados em Mãos à obra Brasil (1994) e Avança Brasil (1998).

Sobre sua trajetória política e seus governos foram escritos vários artigos e livros, entre os quais Nos bastidores da campanha – Fernando Henrique Cardoso, de Expedito Filho (1994), FHC: os paulistas no poder, organizado por Roberto Amaral (1995), Fernando Henrique Cardoso: o Brasil do possível, de Brigitte Hersant Leoni (1997), A presidência afortunada, de Cândido Mendes (1998), O governo Fernando Henrique, 1995-1998, de Maria Cecília Ribas Carneiro (1999), Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas (Florianópolis, Editora Insular, 2000),  Governo Fernando Henrique Cardoso, de Henrique Fontana (2000), Mapa da corrupção no governo FHC, de Larissa Bortoni e Ronaldo de Moura (2002) e Fernando Henrique Cardoso e a reconstrução da democracia no Brasil, de Ted G. Goertzel (2002).

 

Renato Lemos/Alan Carneiro

 

 

FONTES: ABRÚCIO, F. O segundo governo FHC; ALENTEJANO, P. R. R.  A política de assentamentos rurais do governo FHC;  ASSEMB. NAC. CONST. Repertório (1987-1988); CARVALHO, S. SocialCarta Capital (24/06/1998); COUTO, C.G.; DIMENSTEIN, G.; Estado de S. Paulo (01/07/1992, 25/10/1992, 26/05/1993, 02/08/1993, 02/01/1994 e 04/02/1995); Folha de S. Paulo (17/11/1982, 12/04/1983, 28/04/1984, 05/05/1985, 17/11/1985, 12/03/1991, 22/08/1992, 01/10/1992, 15/06/1993, 03/07/1994, 10/07/1994, 2/10/1994, 03/04/1996, 04/02/1997, 14/02/1997, 25/02/1997, 09/04/1997, 05/04/1997, 22/06/1997, 23/06/1997, 24/06/1997 e 25/06/1997); Globo (24/10/1992, 01/11/1992, 13/03/1993, 13/05/1993, 01/01/1995, 15/06/1997 e 08/07/1997); Isto É (13/09/1978, 03/08/1983, 11/11/1996); Jornal do Brasil (06/08/1978, 19/11/1978, 22/04/1984, 14/03/1985, 05/06/1985, 18/12/1992, 09/12/1993 e 06/04/1995); LEONI, B. H. Fernando; OLIVEIRA, G. ; REIS, J. C. Identidades; SENADO. Dados biográficos (10); Senhor (17/07/1985); SOUSA, J. História; Enciclopédia britânica do Brasil — livro do ano (1982-1999); TUROLLA, F. Po- lítica econômica do segundo governo FHC; Políticas sociais (n. 6, fev. 2003); Veja (13/11/1985, 05/03/1986, 23/05/1993, 17/07/1997, 13/08/1997 e 07/10/1998). Portal Blog do Josias. Disponível em: <http://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br>. Acesso em 07/06/2014; Portal Brasil 247. Disponível em: <http://www.brasil247.com>. Acesso em 07/06/2014 e 09/06/2014; Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso em 05/06/2014; Portal Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br> Acesso em 05/06/2014 e 06/06/2014; Portal Editora Insular. Disponível em: <http://www.insular.com.br/index.php>. Acesso em 05/06/2014; Portal do Estado de Minas. Disponível em: <http://www.em.com.br>. Acesso em 06/06/2014; Portal Folha de S. Paulo. Disponível em: <http://www.folha.uol.com.br>. Acesso em 12/12/2009; Portal Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: <http://www.ifhc.org.br/>. Acesso em 12/12/2009; Portal Jornal O Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com>. Acesso em 07/06/2014; Portal Notícias do Piauí. Disponível em: <http://180graus.com>. Acesso em 28/05/2014; Portal Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/>. Acesso em 12/12/2009; Portal Revista Trip. Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br>. Acesso em 05/06/2014; Portal O Tempo. Disponível em: < http://www.otempo.com.br/capa>. Acesso em 06/06/2014; Portal Ultimo Segundo. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br>. Acesso em 02/06/2014; Portal UOL. Disponível em: <http://www.uol.com.br. Acesso em 09/06/2014; Portal Vi o Mundo. Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/>.  Acesso em 05/06/2014.