Designação para o episódio de euforia especulativa e crise financeira em torno da criação e negociação de ações e debêntures de novas companhias na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e seus arredores, que teve lugar durante a transição da Monarquia para a República e também nos primeiros anos do novo regime. O Encilhamento ocupa lugar de destaque na composição do imaginário referente às novidades modernizadoras trazidas pela República, pois foi onde as promessas de progresso foram as mais mirabolantes e de onde se originaram as crises no câmbio, nos bancos e nas finanças públicas que o país experimentou durante a primeira década do regime republicano.

O Encilhamento encaixa-se perfeitamente no figurino já bem estudado, notadamente por Charles Kindleberger, de uma “bolha especulativa”, que, como em tantos outros casos no Brasil e no exterior, não é algo que surge no vazio, ou que se explique por um surto de ambição e ganância, mas, em geral, é um fenômeno coadjuvante de forças maiores. Sem embargo, o Encilhamento esteve intimamente ligado a um amplo complexo de transformações que teve lugar naqueles anos, a começar pelo longamente decantado e retardado fim da escravidão e o extraordinário crescimento da imigração, processos que se potencializavam em contexto internacional altamente favorável, seja pelos excepcionais preços para o café, seja pelo vulto inédito das entradas de capitais estrangeiros atraídos pelas perspectivas radiantes que se abriam para o desenvolvimento do país.

O país precisava se renovar de muitas maneiras, todas elas mais amistosas ao empreendedorismo, ao internacionalismo e ao investimento, o que tornava muito difícil a missão do visconde de Ouro Preto, último ministro da Fazenda e presidente do Conselho de Ministros do Império, que definira seu programa como de “inutilização da República”. Ouro Preto se aproveitou de circunstâncias altamente favoráveis no tocante ao balanço de pagamentos e pôs em prática um ambicioso programa econômico que compreendia, entre outras iniciativas, o retorno à paridade de 1847 (27 pence por mil-réis), através da criação de um novo banco de emissão, o Banco Nacional do Brasil, do visconde de Figueiredo, e a disseminação de “auxílios à lavoura” intermediados por bancos e com vistas a favorecer a reestruturação das fazendas afetadas pelo novo regime de trabalho.

Não há dúvida que o Encilhamento começou aí, enfunado pela mudança no regime de trabalho, pelo novo banco e pela surpreendente disposição do ministro de remover entraves à vida empresarial que sempre caracterizaram o Império para talvez salvá-lo. Mas Ouro Preto não teve muito tempo, ou as mudanças em gestação pareciam grandes demais. A República não tardou, e seu primeiro ministro da Fazenda, Rui Barbosa, logo em 17 de janeiro de 1890, fez publicar o que merece ser chamado de o primeiro “pacote econômico” da República. O salto para a “modernidade” seria ambicioso e irreversível; em suas crônicas, Machado de Assis repetidamente referia-se ao 17 de janeiro como “o primeiro dia da criação”.

Os decretos de Rui trouxeram uma nova lei para bancos de emissão, criando vários deles, e para diferentes regiões do país, e também algumas importantes alterações na lei societária, modificando substancialmente os entraves à incorporação de novas empresas. A reação do “mercado” a tudo isso foi de absoluto deslumbramento; o Encilhamento ganhou enorme impulso: de pouco mais de 90 companhias listadas na Bolsa no início de 1888, passou-se a cerca de 450 em meados de 1891, às vésperas da débâcle. O crescimento do crédito e dos meios de pagamento foi extraordinário, ou até mesmo irresponsável, como advertiram muitos autores. Tudo parecia superlativo naquele ano da graça de 1890: os lançamentos de novas companhias, com os mais variados termos e denominações, os investimentos estrangeiros, o comércio internacional, as mudanças institucionais a sacudir cada um dos aspectos em que se sustentava o preguiçoso modo de vida imperial e, mais que tudo, as polêmicas em torno de cada um dos aspectos da nova ordem. Era patente àquela altura o sentimento de que se iniciava uma nova era na vida econômica, política e social do país, parecendo clara, por outro lado, a noção de que a velha ordem haveria de ser destruída em cada um de seus elementos. Conforme observou Richard Graham),"o conjunto religião-monarquia-privilégio-escravidão podia não estar logicamente relacionado entre si, mas por certo estava nas mentes daqueles que viveram aquela época". Nada poderia ilustrar com mais propriedade o termo “destruição criadora”, tão próprio de episódios de rápida modernização dentro dos quais uma bolha especulativa encontra todas as condições para prosperar.

Mas a situação política não estava nada assentada em 1890, a especulação logo atingiria níveis perigosos, e o panorama internacional estava prestes a azedar em razão de dificuldades na Argentina repercutindo seriamente no banco Baring Brothers, um dos mais importantes na praça de Londres. Na verdade, a “crise Baring” seria uma das primeiras e mais interessantes crises financeiras de características globais, e não poderia deixar de atingir fortemente nossa jovem República, especialmente a partir do início de 1891. Rui deixaria a Fazenda em fins de 1890 logo após a fusão dos dois maiores bancos da ocasião – o Banco Nacional do Brasil, criatura do Império, e o Banco dos Estados Unidos do Brasil, fundado pelo conselheiro Francisco de Paula Mayrink sob os auspícios da lei bancária de Rui –, formando um novo gigante, o Banco da República dos Estados Unidos do Brasil (BREUB).

O estado dos mercados, e da bolsa em particular, só fez piorar ao longo de 1891, quando o país experimentou uma brutal depreciação do câmbio, parecendo cumprir o vaticínio dos “metalistas”, segundo o qual a torrente de papel-moeda produziria o colapso da taxa de câmbio e a inflação. É também verdadeiro, porém, que a drástica reversão dos fluxos de capital para o Brasil, mercê da crise Baring, proporciona uma explicação alternativa, ou adicional, à crise cambial através do balanço de pagamentos. Na verdade, o debate sobre se a crise teve com causa o excesso de emissões ou a piora no balanço de pagamentos mobilizou algumas das melhores mentes da ocasião, como o próprio Rui, que defendeu sua passagem pela Fazenda com grande desembaraço em diversos discursos depois reunidos em seu Finanças e política na República, publicado em 1892. Do lado contrário, culpando Rui diretamente pelos excessos do Encilhamento, destacam-se Pandiá Calógeras, Antônio Carlos de Andrada e J. P. Wileman, entre muitos outros, e não cabe aqui penetrar no emocional terreno ocupado pelos admiradores incondicionais e pelos detratores de Rui.

A crise cambial em 1891 deu impulso à derrocada do Encilhamento e fragilizou tremendamente os bancos e as finanças públicas. A euforia foi assumindo ares de pânico, e as dificuldades com os grandes bancos foi ganhando prioridade nos debates da nova Assembleia Constituinte. A renúncia do marechal Deodoro da Fonseca em fins de 1891, num episódio que ficou conhecido como o “Golpe da Bolsa”, envolveu os impasses em torno do destino dos bancos de emissão, os quais, por sua vez, traziam em suas carteiras todas as virtudes e os pecados do Encilhamento. Já sob Floriano Peixoto, houve uma tentativa prematura de saneamento e liquidação de excessos, na primeira passagem de Rodrigues Alves pelo Ministério da Fazenda. Em fins de 1892, uma nova fusão bancária, dessa vez unindo o outrora vetusto e pacato Banco do Brasil ao BREUB, revelou com mais clareza a natureza da crise, que se deslocara da bolsa para os bancos. O novo estabelecimento recebeu o nome de Banco da República do Brasil, e a fusão teve como padrinho e idealizador o próprio ministro da Fazenda Serzedelo Correia, o sucessor de Rodrigues Alves, que a justificou alegando que nenhum dos dois bancos teria condições de sobreviver sobre suas respectivas pernas. É difícil ver como a fusão melhoraria a saúde do organismo fundido; talvez apenas o tornasse maior e, dessa forma, mais justificada a intervenção do poder público, a fim de evitar o que hoje é chamado de “risco sistêmico”.

Como em outros episódios de modernização acelerada, os excessos acabaram comprometendo os progressos, os custos políticos da destruição suplantaram os benefícios da criação, e o marasmo se seguiu à mudança, sem contudo, revertê-la. O Encilhamento converteu-se numa espécie de síntese de excessos insustentáveis, ou, visto de um ângulo benigno, num episódio de esperanças frustradas, mas não impossíveis, de mudança e progresso. Ou talvez de ambas. E por isso, talvez, o tratamento do Encilhamento na literatura termine sendo mais ambíguo, e portanto mais informativo e rico de significados, do que o sugerido pelas versões de financistas interessados e diretamente envolvidos.

Para começar, é de se notar que o vocábulo tem origem no turfe, diversão imensamente popular na ocasião. Designava o momento em que os cavalos de corrida eram encilhados, num espaço aberto contíguo à pista, e, supostamente, as combinações e apostas referentes ao páreo eram entabuladas. Seu uso para descrever, de forma pejorativa, as negociações com ações e debêntures, dentro e principalmente fora do recinto da Bolsa de Valores, em bares, confeitarias e logradouros públicos, começou timidamente na imprensa em 1888, mas disseminou-se a seguir, e foi imortalizado a partir de 26 de fevereiro de 1893, quando a Gazeta de Notícias deu início à publicação, em forma de folhetim, dos 70 episódios de “O Encilhamento – cenas contemporâneas”, obra assinada por Heitor Malheiros, pseudônimo de Alfredo D’Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay, engenheiro militar, francófilo, monarquista e futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira de número 13.

Taunay transpôs para o Brasil a fórmula que Emile Zola utilizou em L’argent, romance à clé, onde personagens reais apareciam com nomes modificados e praticando ações também relacionadas com as que empreenderam na vida real. Compôs assim um minucioso retrato da euforia especulativa a partir de três personagens principais, o conselheiro Mayrink, Paulo de Frontin e Henry Lowdes, o visconde de Leopoldina, que apareciam no romance sob os nomes de Meyermayer, Lamarin e Drowns, o visconde de Petrolina.

A indesculpável omissão do visconde de Figueiredo entre os condestáveis da alta finança nessa quadra turbulenta nada teve de acidental. Figueiredo era o financista da Monarquia e o favorito do visconde de Ouro Preto, e Taunay, com efeito, em nenhum momento pretendeu pintar um retrato isento do que se passava. Monarquista ressentido, e diretamente abalado em seu futuro político e em sua fortuna pessoal, sua idéia foi diminuir e desancar a República destacando as trampolinagens do Encilhamento, reais e imaginárias, construindo assim uma poderosa metáfora para promessas que a República fracassara em cumprir e, mais importante, produzindo uma das utilizações mais ferinas do ataque no campo ético como ferramenta de luta política.

Não obstante a lúcida observação de José Murilo Carvalho, segundo a qual a República trouxe efetivamente “uma vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante”, as imoralidades do Império, bem mais contidas ou mais bem assimiladas, mesmo quando envolvendo sua íntima imbricação com o instituto da escravidão, não serviam como álibi para as da jovem República, as quais parecem uma espécie de vingança dos “espíritos animais”, enjaulados durante tantos anos, e agora libertos para excessos de toda ordem. Talvez nem mesmo fossem necessários os exageros de Taunay: os fatos reais eram suficientemente escabrosos. O fato é que o romance teve imensa e duradoura influência sobre a historiografia, que, com a ajuda da narrativa conservadora dos eventos da década de 1890 proporcionada por financistas como Pandiá Calógeras, para ficar apenas neste, consagrou a versão de que a primeira década republicana foi perdida em devaneios.

Mas essa versão não deve ser vista como definitiva; disse bem José Murilo Carvalho que “batalhas históricas, ou os eventos em geral que envolvem conflitos, são travados pelo menos duas vezes. A primeira quando se verificam na forma de evento, a segunda quando se trata de estabelecer sua versão histórica ou sua memória. A primeira é uma batalha histórica, a segunda um combate historiográfico”. Taunay foi um ardoroso combatente nesse terreno e conquistou muitos adeptos, inclusive entre brasilianistas que revisitam a época, como Schulz, e se enredam com a adjetivação carregada da ficção de Taunay. Nesse terreno, aliás, muito melhor seria mergulhar nesse passado através da ficção machadiana; não há dúvida que a visão mais equilibrada que se conhece sobre o Encilhamento e, de forma mais genérica, sobre o debate entre República e Monarquia –  afinal, é esse o tema sobre o qual Taunay e outros estão a discutir – pode ser encontrada em Esaú e Jacó, o romance de Machado de Assis, onde prevalece um absoluto e irreconciliável empate entre as formas de governo cuja defesa cabe aos gêmeos Pedro e Paulo.

Resta mencionar, por fim, que a historiografia revisionista mais recente logrou identificar efetivos avanços em matéria de crescimento e industrialização, para não falar em amplos progressos de natureza institucional, o que tem ajudado a enriquecer o olhar que se tem sobre esse período tão estigmatizado de nossa história.

 

Gustavo H. B. Franco

 

FONTES: ANDRADA, A. Bancos; BARBOSA, R. Finanças; CALÓGERAS, J. Política; CARVALHO, J. Pontos; CARVALHO, J. Bestializados; CARVALHO, N. Encilhamento; FISHLOW, A. Lições; FRANCO, G. Economia; FRANCO, G. Década; FRANCO, G. Reforma; GRAHAM, R. Britain; KINDLEBERGER, C. International; KINDLEBERGER, C. Manias; LEVY, M. Encilhamento; SCHULZ, J. Crise; TAUNAY, A. Encilhamento; WILEMAN, J. Brazilian.