MOVIMENTO DO 11 DE NOVEMBRO

MOVIMENTO DO 11 DE NOVEMBRO

 

Movimento militar deflagrado sob a liderança do general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra demissionário, no dia 11 de novembro de 1955. Teve como conseqüência a destituição do presidente da República em exercício, Carlos Luz, e a posse na chefia da nação do vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, confirmadas a seguir pelo impedimento do presidente licenciado João Café Filho. Seu objetivo era neutralizar uma suposta conspiração tramada no interior do próprio governo com o fim de impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.

 

A polarização política

O debate sobre a política de desenvolvimento econômico a ser adotada no Brasil, aguçado a partir de 1947, ainda durante o governo do general Eurico Dutra, em torno da questão de petróleo, opôs duas grandes facções, especialmente dentro das forças armadas. A uma ala nacionalista, agrupada em torno da defesa do monopólio estatal do petróleo e tendo como principal porta-voz o general Júlio Caetano Horta Barbosa, contrapôs-se uma ala liderada pelo general Juarez Távora, que defendia a participação do capital privado incluindo o estrangeiro na exploração do petróleo nacional. Os dois grupos também possuíam concepções diferentes em relação à política externa, defendendo o primeiro a maior independência do Brasil em relação aos Estados Unidos, e o segundo a legitimidade da liderança norte-americana no mundo ocidental.

O Clube Militar foi o palco privilegiado das lutas entre essas duas correntes. Entre 1944 e 1952, a diretoria do clube foi controlada pelos nacionalistas e por elementos próximos a eles. Neste último ano, contudo, seus adversários, através da chapa denominada Cruzada Democrática, chegaram ao poder após uma disputada campanha eleitoral. Os oficiais pró-Estados Unidos contavam ainda com uma outra instituição militar para promover seus interesses, a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em outubro de 1948 e calcada no modelo dos war colleges norte-americanos.

Por outro lado, a volta de Getúlio Vargas à presidência da República em 1951 veio reforçar o processo de polarização nos diferentes setores, da vida política brasileira, que se cindiram em getulistas e antigetulistas. O eixo das divergências foi a política nacionalista empreendida por Vargas, cujas medidas — como a instituição do monopólio estatal da exploração do petróleo através da criação da Petrobras — provocaram cerrada oposição nos meios empresariais, e no interior das forças armadas. A política trabalhista do governo também foi alvo de numerosas críticas, sobretudo após a decretação de um aumento de 100% no salário mínimo em 1º de maio de 1954.

No Congresso, os antigetulistas se aglutinavam em torno da União Democrática Nacional (UDN), segundo maior partido político do país, e de agremiações menores, como o Partido Democrata Cristão (PDC) e o Partido Libertador (PL). Os partidários de Getúlio se concentravam sobretudo no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), terceiro maior partido do país, e secundariamente no Partido Social Democrático (PSD), partido amplamente majoritário no Congresso, mas que se encontrava dividido em relação ao presidente.

 

A posse de Café Filho e as eleições de outubro

O primeiro confronto aberto entre os dois campos — englobando civis e militares — foi ganho pelos antigetulistas em 24 de agosto de 1954, com o suicídio de Vargas. No entanto, a grande mobilização popular que se seguiu à morte do presidente e à divulgação da sua carta-testamento impediu que os vencedores capitalizassem livremente seu triunfo. Ainda assim, o governo de João Café Filho, vice-presidente de Getúlio e seu substituto, foi em grande parte controlado por antigetulistas. Os ministros de Estado, os presidentes de autarquias e os ocupantes de cargos de confiança ligados ao PTB e ao PSD foram imediatamente substituídos por elementos próximos à UDN e aos partidos menores, defensores das posições udenistas, ou por pessoas sem vínculos partidários.

Assim, com exceção praticamente dos ministros da Justiça, o jurista Miguel Seabra Fagundes, e da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott — escolhido para o cargo por não estar ligado a nenhuma das duas alas rivais do Exército —, a maior parte dos ministros de Café Filho, como o brigadeiro Eduardo Gomes, da Aeronáutica, o almirante Edmundo Jordão Amorim do Vale, da Marinha, Raul Fernandes, das Relações Exteriores, e Eugênio Gudin, da Fazenda, eram homens mais ou menos ligados à UDN. A presidência do Banco do Brasil foi entregue ao udenista baiano Clemente Mariani, enquanto a chefia do Gabinete Militar da Presidência da República e a direção da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) foram confiadas respectivamente ao general Juarez Távora (que acumulava o cargo de secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional) e ao economista Otávio Gouveia de Bulhões, ambos próximos das posições da UDN. Os militares da ala nacionalista foram afastados dos postos de relevo, como foi o caso de seu principal expoente, o general Newton Estillac Leal, que perdeu o comando do II Exército.

Em 3 de outubro de 1954, conforme previa o calendário eleitoral, foram realizadas as eleições legislativas e para o governo de 11 estados, contrariando as pretensões de udenistas, pessedistas e políticos de outros partidos, que haviam pressionado Café Filho a adiar o pleito. O resultado das urnas não alterou significativamente a composição do Congresso. No entanto, a UDN que havia baseado sua campanha em violentos ataques a Vargas e ao seu governo, esperando com isso ampliar sua bancada acabou sendo a maior vítima do suicídio do presidente. Perdeu dez cadeiras, reduzindo sua representação de 84 para 74 congressistas. Por outro lado, o jornalista Carlos Lacerda, proprietário da Tribuna da Imprensa e um dos mais implacáveis adversários de Vargas, concorrendo na legenda da UDN, elegeu-se o deputado federal mais votado do Distrito Federal, superando Lutero Vargas, filho do ex-presidente e candidato do PTB. Os outros grandes partidos — o PSD e o PTB — registraram pequenos avanços, passando respectivamente de 112 para 114 e de 51 para 56 cadeiras.

 

Juscelino candidato à presidência

No mês de novembro, a sucessão presidencial passou a constituir o tema central das discussões na vida política brasileira. Nesse momento, a direção nacional do PSD lançou extra-oficialmente a candidatura de Juscelino Kubitschek, governador de Minas Gerais, às eleições presidenciais de outubro de 1955. A indicação não contou com a aprovação dos pessedistas de Pernambuco, liderados pelo governador Etelvino Lins (que fora eleito com o apoio da UDN), de Santa Catarina, tendo à frente Nereu Ramos e do Rio Grande do Sul. Na verdade, tanto Etelvino como Nereu alimentavam esperanças de virem a ser candidatos.

Em dezembro, o senador mineiro Artur Bernardes Filho, do Partido Republicano (PR), declarou que se empenharia para que seu partido apoiasse a candidatura de Juscelino caso esta fosse aprovada pela convenção nacional do PSD.

Por outro lado, a apresentação do nome de Kubitschek colocou os políticos udenistas, os militares antigetulistas e o próprio presidente Café Filho diante do seguinte dilema: encontrar um candidato capaz de derrotar Juscelino nas urnas ou impedir a realização das eleições, instalando no poder um governo forte. Diante dessas alternativas, uns acreditavam na possibilidade de vitória eleitoral, afirmando que o candidato ideal deveria ser escolhido entre os chefes militares do 24 de agosto. Todavia, as lutas internas entre os generais afastavam a viabilidade dessa solução. Outros, cientes da pequena penetração de um candidato militar, advogavam a necessidade de um regime de exceção. Outra alternativa, que conquistou numerosos adeptos, pregava a indicação de um candidato único às eleições presidenciais, um candidato de união nacional a ser procurado nos meios políticos. Essa tese era defendida pela UDN, com o apoio de Café Filho, e recebeu também a adesão dos pessedistas descontentes com a indicação de Juscelino.

Em 4 de janeiro de 1955, Carlos Lacerda publicou um artigo na Tribuna da Imprensa, no qual exortava as forças armadas a “entregar a mãos fortes a sucessão presidencial para a reorganização completa do país”, afirmando que o único obstáculo à “união das forças democráticas” era a candidatura de Juscelino.

Ainda em janeiro, o ministro da Marinha Amorim do Vale entregou pessoalmente a Café Filho um documento sigiloso assinado pelos três ministros militares, pelos generais Juarez Távora, Canrobert Pereira da Costa, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) e presidente do Clube Militar, e Álvaro Fiúza de Castro, chefe do Estado-Maior do Exército, pelo marechal João Batista Mascarenhas de Morais, comandante das tropas brasileiras na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, pelo almirante Salalino Coelho, chefe do Estado-Maior da Armada, e pelo brigadeiro Gervásio Duncan, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica. O documento, além de assegurar que a candidatura de qualquer líder militar não encontraria respaldo nas forças armadas, apelava aos dirigentes dos principais partidos políticos para resolverem “o problema da sucessão presidencial em um nível de compreensão e com um espírito de colaboração interpartidária”, ressaltando ainda a conveniência de um candidato único e civil que, contudo, deveria receber a aprovação das forças armadas. Café Filho foi solidário com o teor do documento dos militares.

Em pouco tempo, a imprensa começou a reproduzir trechos do documento secreto, o que levou Café Filho — com a aprovação dos signatários — a trazê-lo na íntegra ao conhecimento público em 27 de janeiro, através do programa radiofônico A voz do Brasil.

Kubitschek interpretou o conteúdo do documento como uma evidente demonstração da oposição dos militares à sua candidatura. Esse fato, porém, não o fez voltar atrás. Apoiado abertamente pelo presidente nacional do PSD, Ernâni Amaral Peixoto, deu prosseguimento à campanha eleitoral. Até esse momento, defrontara-se com um PSD dividido e não recebera o apoio do PTB e dos sindicatos. No entanto, a nota dos chefes militares unificou, ainda que temporariamente, uma parcela ponderável do mundo político. Os líderes do PSD, do PTB e do Partido Social Progressista (PSP) declararam que competia exclusivamente aos partidos apresentar os candidatos a cargos eletivos.

No dia 1º de fevereiro, os deputados e senadores eleitos em outubro tomaram posse. No dia 2, realizaram-se as eleições para os cargos de direção das duas casas do Congresso. Para a presidência da Câmara foi eleito o pessedista mineiro Carlos Luz, derrotando o candidato de Juscelino, o deputado paulista Pascoal Ranieri Mazzilli, também do PSD. Para a vice-presidência do Senado (a presidência, segundo a Constituição de 1946, era ocupada pelo vice-presidente da República) foi eleito Nereu Ramos, que se tornou o segundo na ordem de sucessão presidencial, depois de Carlos Luz.

No dia 10, reunido em convenção nacional, o PSD homologou a candidatura de Kubitschek, que recebeu 1.646 dos 1.925 votos dos convencionais. Confirmando a posição adotada desde novembro, as seções estaduais de Pernambuco, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além de representantes da Bahia e do Distrito Federal, recusaram-se a apoiar a candidatura ratificada e formaram uma dissidência. Esse grupo lançou quatro nomes alternativos como candidatos do partido: Etelvino Lins, Nereu Ramos, Carlos Luz e Lucas Lopes.

Nas vésperas da convenção, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede, um dos expoentes da ala antigetulista das forças armadas, mandara o escritor Álvaro Lins, amigo pessoal de Kubitschek, avisá-lo de que a homologação de sua candidatura implicaria a “saída da procissão”, isto é, o desfile de tanques do Exército pelas ruas do Rio no dia seguinte à reunião do PSD. A ameaça, porém, não se concretizou.

 

A oposição à candidatura de Kubitschek se organiza

Após o lançamento oficial da candidatura de Juscelino, a movimentação contra as eleições e a favor da intervenção dos militares tornou-se mais evidente. A grande imprensa do Rio e de São Paulo, quase toda antigetulista, procurava convencer a opinião pública de que o país atravessava uma situação de extrema gravidade, que só tenderia a aumentar com uma luta eleitoral em grande escala pela sucessão presidencial. Para esses jornais, a candidatura de Juscelino significava um retorno ao passado, ao período anterior à morte de Getúlio. Em sua opinião os militares deveriam intervir, impedindo a candidatura do governador mineiro e impondo um nome capaz de concretizar a chamada união nacional, ou então dando um golpe de Estado e assumindo diretamente o poder.

Em 6 de março, o Jornal do Comércio do Rio publicou um artigo do advogado João de Oliveira Filho que apregoava a conveniência de um golpe militar no país, embora frisasse que se trataria de um golpe legal, justificável a partir do colapso dos poderes constitucionais. Lacerda também voltou à carga nas páginas da Tribuna da Imprensa, acusando Kubitschek de “condensador da canalhice nacional” e reivindicando uma “reforma da democracia brasileira para instaurar a legalidade legítima”. Outro conhecido antigetulista, F. Rodrigues Alves Filho, lançou em São Paulo o livro Democracia corrompida ou golpe de Estado, no qual defendia um imediato golpe militar, porque só as forças armadas tinham “força para calar a mazorca, a imundície dos nossos costumes políticos”.

Nos meios políticos, os partidários da união nacional encontravam grandes dificuldades para lançar um candidato de ressonância junto ao eleitorado. Etelvino Lins e Nereu Ramos eram nomes inexpressivos em termos nacionais, o mesmo acontecendo com a candidatura militar mais provável, a do general Juarez Távora. Por outro lado, os adversários de Kubitschek hesitavam em apoiar Jânio Quadros, político de carreira meteórica recém-empossado no governo de São Paulo e que em janeiro declarara-se candidato à presidência da República. Comentava-se que Jânio teria concluído um acordo com Juscelino segundo o qual o governador de São Paulo apoiaria o candidato de PSD em troca do apoio deste à sua candidatura à presidência em 1960.

Ainda em março, o Partido de Representação Popular (PRP) apresentou a candidatura de seu presidente, o ex-chefe integralista Plínio Salgado. O PRP teria atendido a uma solicitação do próprio Juscelino, que não queria permanecer como o único candidato homologado à presidência.

 

O Acordo Jânio-Café

No dia 1º de abril, Jânio Quadros declarou que deixaria o governo de São Paulo a fim de desincompatibilizar-se para concorrer à presidência. Nesse mesmo dia, porém, Juarez Távora foi procurado no Rio por emissários de Quadros que lhe afirmaram que o governador paulista estava disposto a abrir mão da sua candidatura em prol da de Juarez, em troca da indicação do candidato à vice-presidência e da maior participação de São Paulo na administração federal. Juarez respondeu que não poderia se comprometer antes de ouvir a opinião dos chefes militares e do presidente Café Filho.

Interessando-se pela proposta de Jânio, Café Filho enviou a São Paulo o suplente de senador Reginaldo Fernandes, da UDN do Rio Grande do Norte, para dar prosseguimento às negociações. No dia 2 foi firmado um acordo — conhecido por Acordo Jânio-Café — pelo qual o presidente da República comprometia-se a conceder a São Paulo os ministérios da Fazenda e da Viação e Obras Públicas, e a presidência do Banco do Brasil, não abrindo mão, contudo, da indicação do candidato a vice-presidente. Café Filho já tinha um nome: Bento Munhoz da Rocha, seu amigo íntimo, governador do Paraná e membro do Partido Republicano. O governador paulista, por sua vez, se comprometeu a abrir mão da sua candidatura em benefício da de Juarez. Com efeito, nesse mesmo dia, Jânio retirou oficialmente sua candidatura, anunciando seu apoio à chapa Juarez Távora-Munhoz da Rocha.

A inclusão de Munhoz da Rocha criava uma situação delicada para os republicanos, uma vez que o PR — particularmente a seção mineira — estava bastante comprometido com a candidatura Kubitschek desde o final de 1954.

A fórmula encontrada por Café Filho e Jânio, além disso, não foi bem aceita nas fileiras antigetulistas. No dia 3 de abril, em cartas enviadas ao presidente e ao governador de São Paulo, Távora recusou-se a integrar a chapa por não concordar com as bases do acordo, principalmente com o fato de Café Filho ter indicado Munhoz da Rocha sem consulta prévia aos partidos. A escolha do governador paranaense contrariou as pretensões da UDN, que almejava lançar o mineiro Mílton Campos como companheiro de chapa de Juarez.

O Acordo Jânio-Café também desagradou aos titulares das pastas da Fazenda e da Viação e Obras Públicas, respectivamente Eugênio Gudin e Rodrigo Otávio, e ao presidente do Banco do Brasil, Clemente Mariani, que renunciaram aos seus cargos. Ainda no dia 3, os demissionários foram substituídos por nomes indicados por Quadros: José Maria Whitaker assumiu o Ministério da Fazenda e Otávio Marcondes Ferraz, o Ministério da Viação e Obras Públicas. Whitaker escolheu o novo presidente do Banco do Brasil, o também paulista Alcides Vidigal.

No dia 4, representantes da UDN, do PDC, do PL e da dissidência do PSD, reunidos para discutir as bases do Acordo Jânio-Café, decidiram formar uma comissão encarregada de coordenar os trabalhos para a indicação de seu candidato à presidência da República. Da lista de candidatos, encabeçada ainda por Juarez, constavam também os nomes dos pessedistas Nereu Ramos, Carlos Luz e Etelvino Lins.

No dia 5 de abril, pressionado por udenistas, democratas-cristãos e pessedistas dissidentes, Távora voltou a candidatar-se. No entanto, horas depois, recuou novamente em sua decisão. No dia seguinte, diante da posição definitiva de Juarez, líderes da UDN e da dissidência do PSD decidiram lançar a candidatura de Etelvino Lins, que se impôs a Luz e Nereu Ramos. A candidatura de Munhoz da Rocha, criticada desde o início por setores udenistas, começou a ser virtualmente esvaziada. Em 13 de abril, o presidente nacional da UDN, Arthur Santos, declarou à imprensa que Munhoz da Rocha era um nome inviável.

 

A aliança PSD-PTB

Enquanto seus adversários não conseguiam apresentar uma candidatura com grandes possibilidades de êxito nas urnas, Juscelino se fortalecia obtendo o apoio do PTB. Reunidos em 16 de abril na casa do petebista Osvaldo Aranha, Amaral Peixoto, Kubitschek e João (Jango) Goulart, presidente nacional do PTB, além do próprio Aranha, firmaram um acordo pelo qual, em troca do comprometimento dos trabalhistas com o candidato do PSD, Goulart seria o companheiro de chapa de Juscelino.

No dia 18, reunidos em convenção nacional, os trabalhistas aprovaram oficialmente a candidatura de Goulart à vice-presidência, ao lado de Kubitschek. Durante a convenção, foi lida uma carta de Luís Carlos Prestes na qual o líder do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), então chamado Partido Comunista do Brasil, propunha uma ação comum entre petebistas e comunistas.

A aliança entre o PSD e o PTB, contudo, só se tornou possível depois do fracasso das negociações de acordo entre os trabalhistas e o Partido Social Progressista (PSP), visando reeditar a chamada Frente Populista, responsável pelas candidaturas vitoriosas de Getúlio Vargas e Café Filho nas eleições presidenciais de 1950. A opção pela aliança com os pessedistas gerou uma pequena crise dentro do partido, levando os senadores Aguinaldo Caiado de Castro e Lúcio Bittencourt e o deputado Danton Coelho, defensores do acordo com o PSP, a negar apoio à chapa Juscelino-Goulart.

Se, por um lado, o lançamento da candidatura de João Goulart aumentou as possibilidades eleitorais da chapa devido à penetração do líder petebista junto aos meios sindicais e às massas populares, por outro, provocou imediata reação nos círculos antigetulistas. Mal visto pelos militares desde sua passagem pelo Ministério do Trabalho durante o segundo governo Vargas, devido à sua política de aproximação com os sindicatos, Goulart era considerado o herdeiro político do presidente morto. A indicação de Goulart também suscitou reações contrárias no próprio PSD.

No campo antigetulista, apesar de a candidatura Etelvino Lins ter sido homologada pela convenção nacional da UDN em 28 de abril, as dissensões internas continuavam. No final desse mês, Juarez Távora foi procurado por parlamentares do PDC, do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e da própria UDN, os quais, descrentes da viabilidade eleitoral do ex-governador pernambucano, pediram-lhe que reconsiderasse sua decisão e voltasse a se candidatar. Depois de relutar um pouco, Juarez atendeu àquela solicitação e no dia 11 de maio o PDC apresentou-o como seu candidato à presidência da República.

Um dos acontecimentos mais marcantes do cenário político no mês de maio foi a tentativa de impugnação da candidatura Juscelino pela UDN. Os parlamentares udenistas exigiram que Kubitschek apresentasse uma relação de bens à Câmara, procurando com isso provar publicamente que as acusações de corrupção contra Kubitschek eram procedentes. Quando a relação foi exibida, a UDN considerou-a ilegítima e propôs a formação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar os bens do candidato pessedista. A comissão chegou a ser constituída, mas o deputado Tarcilo Vieira de Melo, do PSD, levantou a preliminar de inconstitucionalidade da CPI que, por esse motivo, não chegou a funcionar.

As fileiras antigetulistas continuavam divididas. A candidatura Etelvino Lins, apesar de ter ganho o endosso oficial do Clube da Lanterna, organização civil liderada por Carlos Lacerda e que reunia basicamente a direita udenista, perdia terreno para a candidatura Juarez Távora. Raul Pilla, deputado do PL, procurou contornar a situação, conclamando os dois candidatos a se retirarem da competição em benefício de um terceiro nome que congregasse todas as correntes. Sua proposta foi recusada por ambas as partes.

No PSD, continuavam as negociações visando vencer as resistências contra Goulart. Em 17 de maio, o PTB mineiro rompeu com Clóvis Salgado, substituto de Kubitschek no governo de Minas e membro do PR, porque os republicanos se recusaram a apoiar João Goulart.

 

A definição das candidaturas

Em 10 de junho, ficou definitivamente sepultada a idéia de união nacional. Reunidos em convenção nacional, os pessedistas ratificaram o nome de Goulart para concorrer ao lado de Juscelino, desfazendo assim qualquer possibilidade de rompimento da aliança PSD-PTB. No dia 15, o diretório catarinense do PSD decidiu apoiar a aliança do partido com os trabalhistas para a sucessão do governo estadual, deixando de se opor, no plano nacional, à chapa Kubitschek-Goulart. Dessa forma, a dissidência pessedista ficou restrita às seções gaúcha e pernambucana.

Entre os antigetulistas, o esvaziamento de Etelvino Lins prosseguia num ritmo crescente e, no dia 22, o pessedista dissidente acabou retirando sua candidatura. Anteriormente, no dia 13, a UDN lançara o nome de Mílton Campos, presidente nacional do partido desde 28 de abril, como candidato à vice-presidência. A partir da renúncia de Etelvino, começou a ser articulado o apoio da UDN e da dissidência do PSD à candidatura de Juarez Távora, que a essa altura já fora homologada pelas convenções nacionais do PDC e do PSB. O próprio Juarez, em entrevista à imprensa datada do dia 27, enalteceu a decisão de Etelvino e pediu formalmente apoio à UDN e aos diretórios pessedistas dissidentes.

Afora a definição das candidaturas eleitoralmente mais fortes, foi homologada em junho a candidatura de Ademar de Barros, ex-governador de São Paulo e presidente nacional do PSP, tendo como candidato a vice o petebista dissidente Danton Coelho. Ainda em junho, o PRP confirmou a candidatura de Plínio Salgado, sem contudo apresentar candidato a vice-presidente.

No decorrer de julho, as forças antigetulistas se comprometeram efetivamente com Juarez e Mílton Campos. No dia 8, o PL decidiu oficialmente apoiá-los e no dia 10 os pessedistas dissidentes e os líderes udenistas decidiram fazer o mesmo, sendo essa posição homologada pela convenção nacional da UDN de 31 de julho.

Encerrado o primeiro semestre de 1955, quatro chapas, com seus respectivos suportes partidários, estavam oficialmente lançadas e aptas para concorrer ao pleito de outubro: Juscelino Kubitschek-João Goulart, apoiados pelo PSD, pelo PTB, pelo PR, pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN), pelo Partido Social Trabalhista (PST) e pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT); Juarez Távora-Mílton Campos, apoiados pela UDN, por dissidentes do PSD, pelo PDC, pelo PSB e pelo PL; Ademar de Barros-Danton Coelho, apoiados pelo PSP e por dissidentes do PTB; e Plínio Salgado, pelo PRP.

 

O agravamento das tensões

Irremediavelmente descartada a possibilidade do lançamento de um candidato único às eleições de outubro, a UDN — ou melhor, o esquema político-militar centrado nesse partido — passou a adotar outras estratégias para tentar impedir a chegada de Juscelino e Goulart ao poder. A ala udenista radical, isto é, o grupo organizado em torno do Clube da Lanterna e liderado por Lacerda, preconizava cada vez mais abertamente o golpe militar. Por outro lado, o setor mais moderado do partido, onde pontificavam José de Magalhães Pinto, Afonso Arinos de Melo Franco e o próprio candidato a vice-presidente Mílton Campos, procurava esgotar os meios legais para atingir os mesmos objetivos.

Dois fatos contribuíram decisivamente para o aprofundamento da crise: o discurso do general Canrobert Pereira da Costa no Clube de Aeronáutica e o manifesto do PCB em apoio à chapa Juscelino-Goulart. No dia 5 de agosto, por ocasião do primeiro aniversário da morte do major da Aeronáutica Rubens Vaz, assassinado por elementos ligados à guarda pessoal do falecido presidente Vargas, Canrobert proferiu um discurso que teve grande repercussão. Falando na qualidade de presidente do Clube Militar, exigiu a punição dos assassinos do major Vaz e pediu a união das forças armadas e a reformulação dos costumes políticos do país. Referindo-se ao regime de “falsidade democrática” e de “pseudolegalidade” em que vivia o país, denunciou os “numerosos escândalos das clamorosas malversações do dinheiro público” e lamentou — numa velada crítica a Juarez — que a fórmula da união nacional não tivesse vingado. A seu ver, essa teria sido a única possibilidade de o país enfrentar a crise econômica e social que atravessava. Divulgado o discurso pelos jornais, Kubitschek apressou-se em declarar que não concordava que o país vivesse num regime de falsidade democrática e alguns parlamentares chegaram a pedir a Café Filho a prisão de Canrobert.

Quase uma semana depois, no dia 11, o diário comunista carioca Imprensa Popular publicou em sua primeira página o Manifesto eleitoral do Partido Comunista do Brasil. O documento conclamava a população a se unir “para impedir... a implantação de uma ditadura militar fascista” no Brasil. A união de operários, camponeses, grandes capitalistas e fazendeiros interessados na defesa da Constituição poderia “isolar e bater as forças do golpe militar, impor a realização de eleições livres e garantir a vitória de seus candidatos nas urnas”. A seguir, o manifesto expressava a posição oficial do PCB de apoio às candidaturas de Juscelino Kubitschek e de João Goulart, devido ao compromisso de ambos de “lutar contra o golpe, em defesa da Constituição e das liberdades democráticas e pela melhoria das condições de vida do povo”. Em síntese, a vitória da aliança PTB-PSD significaria a derrota dos generais golpistas.

O documento comunista provocou grande irritação nos meios militares e o ministro da Guerra Henrique Lott declarou-se publicamente preocupado com o apoio do PCB a Kubitschek e Goulart e com “sua aceitação daquele apoio”. Juscelino negou ter entrado em entendimentos secretos com os comunistas, observando porém que um eventual apoio ou oposição do PCB ao seu nome em nada alteraria suas idéias.

As tomadas de posição se sucederam. No dia 6 de agosto, a revista Manchete publicou declarações de dez oficiais de diversas patentes, criticando abertamente o sistema eleitoral vigente, acusando-o de “viciado” e “fraudulento”. No dia 14, o general Osvaldo Cordeiro de Farias, governador de Pernambuco, declarou à imprensa que estava “praticamente instaurado o estado de emergência” no país. Cordeiro chegou a afirmar textualmente: “Não sou o que vulgarmente se denominaria hoje de um golpista, mas também não sou um antigolpista. Sou talvez um realista.” Dizendo-se neutro em relação à sucessão presidencial, o governador pernambucano afirmou não acreditar na implantação de uma ditadura militar, mesmo admitindo o estado de emergência.

A pregação do golpe militar atingiu seu ponto máximo no dia 19, num artigo de Lacerda publicado na Tribuna da Imprensa, cujo subtítulo era “Programa para o contragolpe”. Para o deputado udenista, a crise política poderia ser resolvida através das seguintes medidas: instituição do parlamentarismo ou do colegiado (idéia defendida pelo brigadeiro Guedes Muniz); extinção dos partidos políticos com menos de um milhão de votos; adiamento das eleições presidenciais de 3 de outubro de 1955 para pelo menos 1º de janeiro de 1956; dissolução do Congresso e convocação, em fevereiro de 1956, de uma Assembléia Constituinte que votaria a nova Constituição, elaborada pelo gabinete; entrega da chefia do primeiro gabinete a um chefe militar; promulgação de nova lei eleitoral, e revisão da política do petróleo, com a cessão do direito de pesquisa ao capital privado estrangeiro.

A resposta dos militares legalistas não tardou. No dia 20, o Jornal do Comércio de Recife publicou o Manifesto de apoio à legalidade, assinado por um grupo de oficiais do Exército lotados em guarnições do Norte e Nordeste do país, acusando os chefes militares ligados à UDN de tentar “intranqüilizar a nação em proveito próprio,... desrespeitando preceitos disciplinares, oferecendo assim um péssimo exemplo aos seus subordinados”. Esses oficiais faziam parte ou eram simpatizantes do Movimento Militar Constitucionalista (MMC), movimento articulado no interior do Exército no início de 1955, com alguma penetração na Marinha e na Aeronáutica, e que tinha por objetivo garantir o pleito de 3 de outubro e a subseqüente posse dos candidatos eleitos, fossem eles quem fossem.

No dia 23, o almirante Sílvio Camargo, comandante dos Fuzileiros Navais, enviou carta ao ministro Amorim do Vale manifestando preocupação com a situação político-militar do país. Camargo denunciava a existência na Marinha de um grupo de oficiais que defendiam a implantação de um regime extralegal como única solução para a crise. Esse grupo dizia contar com quase todos os oficiais embarcados, com parte da Aeronáutica e com percentagem pequena, “embora enérgica”, do Exército. Camargo temia que “paixões políticas” levassem parte da Marinha a iniciar um movimento armado de apoio a um golpe de Estado.

 

A cédula única e a carta Brandi

O principal debate travado no Congresso durante o mês de agosto girou em torno de um projeto da UDN que pretendia alterar o método de votação nas eleições. Parlamentares udenistas, temendo que a ocorrência de fraudes no pleito presidencial viesse beneficiar os candidatos da aliança PSD-PTB, propuseram a instituição de uma cédula oficial de votação, impressa pelo Estado e portadora dos nomes dos candidatos. As cédulas seriam distribuídas pela Justiça Eleitoral às mesas eleitorais que, por sua vez, as entregariam aos eleitores no momento de entrar na cabina. A proposta da UDN contou com o apoio do ministro da Justiça Prado Kelly.

Embora o Senado tenha-se manifestado a favor da cédula oficial, os líderes do PSD na Câmara se opuseram firmemente à sua adoção. No dia 16, a maioria dos deputados votou contra o projeto udenista. No dia seguinte, o general Lott compareceu à Câmara para transmitir a seu presidente, Carlos Luz, o ponto de vista das forças armadas, favorável à cédula oficial. Os partidários de Juscelino criticaram a iniciativa do ministro da Guerra, acusando-o de atentar contra a independência do Legislativo.

No final do mês, chegou-se a uma solução de compromisso, patrocinada pelo ministro Edgar Costa, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Todos os candidatos seriam relacionados numa única cédula, a ser impressa e distribuída pelo governo. No entanto, essas cédulas também poderiam ser impressas e distribuídas pelos partidos políticos. No dia 27, foi votada e aprovada apesar da oposição da bancada udenista a redação final do projeto da cédula única, como ficou conhecido. O resultado final das negociações provocou reações diferentes dentro da UDN. Enquanto Afonso Arinos considerou a cédula única “uma vitória parcial”, Lacerda classificou-a de uma completa derrota.

No mês de setembro, o Congresso recusou o projeto da UDN de emenda constitucional, apresentado por Afonso Arinos, que transferia a eleição presidencial para a Câmara dos Deputados caso o candidato eleito não tivesse alcançado a maioria absoluta nas urnas (ou seja, 50% dos votos mais um). A tese da maioria absoluta já fora derrotada cinco anos antes, quando a mesma UDN tentara impedir a posse de Getúlio Vargas.

Em meados de setembro, um novo episódio veio acirrar ainda mais os antagonismos. No dia 17, Lacerda publicou na Tribuna da Imprensa uma carta datada de 5 de agosto de 1953 e dirigida a João Goulart, naquela época ministro do Trabalho. Seu suposto autor era o deputado argentino Antonio Jesus Brandi. A carta relatava os entendimentos secretos que Goulart teria mantido com Juan Domingo Perón, então presidente da Argentina, no sentido da implantação no Brasil de uma república sindicalista, e a existência de contrabando de armas argentinas para o país através do Rio Grande do Sul.

O documento causou grande impacto e dias depois de sua divulgação o general Lott, atendendo à solicitação de parlamentares petebistas, ordenou a abertura de um inquérito policial-militar (IPM), designando o general Emílio Maurell Filho para chefiá-lo. A sindicância foi levada a efeito em Buenos Aires e em 3 de outubro, dia das eleições, os jornais brasileiros publicaram um telegrama de Maurell a Lott afirmando que era “sumamente provável” que a assinatura fosse autêntica. Como foi divulgada no dia exato do pleito, a informação não chegou a pesar em termos eleitorais, mas de qualquer forma prejudicou a imagem de Jango.

 

A vitória de Juscelino e Goulart e suas primeiras repercussões

Garantidas por tropas do Exército, as eleições de 3 de outubro transcorreram num clima de ordem e tranqüilidade. À medida que os votos iam sendo apurados, configurava-se a vitória dos candidatos da aliança PSD-PTB. A partir do dia 10, Juscelino e Jango passaram à dianteira nos resultados parciais, superando Ademar de Barros e Mílton Campos.

Em meados do mês, as apurações foram concluídas. Kubitschek obteve 3.077.411 votos (correspondentes a 36% do total), Juarez Távora 2.610.462 (30%) e Ademar de Barros 2.222.725 (26%). Plínio Salgado, o último colocado, conseguiu apenas 714.379 votos (8% do total). Na corrida para a vice-presidência, Goulart alcançou quase três milhões e seiscentos mil sufrágios, registrando uma diferença superior a duzentos mil votos sobre Mílton Campos. Danton Coelho ficou bem atrás, com apenas 1.140 mil votos.

Logo que as urnas começaram a indicar a vitória de Juscelino e Goulart, a UDN e seus aliados deram início a uma batalha judiciária visando anular as eleições, impedindo assim a proclamação e a posse dos candidatos virtualmente eleitos. A argumentação udenista se centrava em três pontos: a ocorrência de corrupção eleitoral, principalmente em Minas Gerais, reduto de Juscelino, a contestação dos votos dados pelos comunistas aos candidatos vitoriosos; e, mais uma vez, a tese da maioria absoluta.

A questão do voto comunista foi a que provocou mais discussão. O principal defensor do não reconhecimento dos vencedores do pleito devido ao apoio do PCB foi o brigadeiro Eduardo Gomes. O ministro da Aeronáutica baseava seu ponto de vista no parecer do jurista — e ministro das Relações Exteriores — Raul Fernandes, o qual sustentava que um partido ilegal não podia indicar aos seus adeptos candidatos partidários. Desse modo, descontados os votos dos comunistas (calculados com base nos resultados alcançados pelo PCB nas últimas eleições de que participara como partido legal) do total obtido por Juscelino e Jango, os candidatos antigetulistas se sagrariam vencedores. A fragilidade da iniciativa era evidente, a começar pela impossibilidade material de distinguir os sufrágios dos comunistas no sistema de voto secreto. Além disso, antes do pleito, o próprio candidato da UDN declarara à imprensa que não rejeitaria os votos dos comunistas caso lhe fossem dados.

À testa da ala golpista da UDN, Carlos Lacerda usava tática diferente. Em discurso na Câmara chegou a pedir a suspensão da Constituição de 1946, o que incluía a supressão de todos os direitos individuais “até que o país [voltasse] à normalidade”. Sua sugestão, contudo, não encontrou eco no interior da própria bancada udenista. Paralelamente, nas páginas da Tribuna da Imprensa, Lacerda continuava a publicar violentos artigos onde não só defendia a interdição da posse dos eleitos como também pedia insistentemente a intervenção dos militares na política nacional. Em artigo datado do dia 5 de outubro, Lacerda apelou para “quem tem nas mãos a força capaz de decidir a questão”, afirmando que era preferível ferir a legalidade do que “entregar o Brasil a contraventores e criminosos do pior dos crimes, que é o de enganar o povo com o dinheiro que lhe roubam”. Em outro artigo, afirmava textualmente: “Kubitschek e Jango não podem tomar posse.”

A Cruzada Brasileira Anticomunista (CBA), do contra-almirante Carlos Pena Boto, compartilhava das posições de Lacerda. No dia 14 de outubro, em entrevista a O Globo, Pena Boto declarou ser “indispensável impedir que Juscelino e Jango tomem posse dos cargos para que foram indevidamente eleitos”. O presidente da CBA afirmou também que os candidatos vitoriosos tinham sido eleitos pela minoria, pois haviam recebido “apenas... cerca da terça parte da votação global”, e que o PCB, embora fora da lei, participara ostensivamente da eleição.

Segundo o documento do Ministério da Guerra intitulado Subsídios para a história dos acontecimentos de novembro de 1955, no dia 12, Pena Boto, na qualidade de comandante-em-chefe da Esquadra, expediu uma ordem de serviço dirigida ao comandante da flotilha de contratorpedeiros. O cumprimento dessa determinação teria levado as unidades da Esquadra a receberem, entre 14 e 21 de outubro, grandes quantidades de munição e de alimentos, excessivas para simples exercícios de rotina. O documento do Ministério da Guerra afirma que tais preparativos eram uma prova do envolvimento do alto comando da Esquadra e de outras autoridades da Marinha num movimento armado que impediria a posse de Juscelino e Goulart.

Na área militar, Amorim do Vale e Eduardo Gomes procuravam convencer o general Henrique Lott do acerto das teses udenistas, instando-o, sobretudo, a se entender com o presidente do TSE, Luís Gallotti, de modo que este considerasse válida a tese da maioria absoluta. O ministro da Guerra recusou-se, declarando-se contrário a qualquer interferência das forças armadas no Judiciário. No decorrer de 1955, Lott se posicionara repetidas vezes a favor da realização das eleições e da posse dos eleitos. Por outro lado, deputados pessedistas ligados ao esquema de Juscelino, como José Maria Alkmin, líder do PSD na Câmara, e Armando Falcão, vinham mantendo contatos mais ou menos freqüentes com Lott.

Os partidários da posse dos eleitos no Congresso também se movimentavam. No dia 21, parlamentares do PSD, PSP, PRP, PTN e PST lançaram um manifesto em defesa da Constituição e do respeito ao resultado das urnas. O PR, o PSB e o diretório paulista do PDC apoiaram o teor do manifesto. Nos círculos militares, a possibilidade de Juscelino e Jango não virem a ser empossados também causava preocupação. O general Euclides Zenóbio da Costa, último ministro da Guerra de Getúlio e chefe da Inspetoria Geral do Exército, redigiu um manifesto, publicado na imprensa no dia 18, no qual advertia o Exército quanto à ação golpista de uma “minoria desvairada” que “se converte numa ameaça grave à ordem e ao progresso do país”. Como havia proibido a manifestação de militares sobre assuntos políticos, Café Filho pediu a imediata punição de Zenóbio. Lott atendeu o presidente, mas solicitou simultaneamente a demissão do general Alcides Etchegoyen, conhecido oficial antigetulista e homem de confiança da UDN, do cargo de inspetor de Artilharia Antiaérea, por ele ter se pronunciado contra a posse de Juscelino e Goulart. Os dois generais perderam seus cargos.

Na segunda metade de outubro, chegou ao fim a sindicância efetuada pelo general Maurell na Argentina, relativa ao episódio da carta Brandi, que a UDN procurava utilizar a seu favor. Retornando ao Rio, Maurell anunciou que chegara à conclusão de que a carta era forjada.

 

O Caso Mamede e a posse de Carlos Luz

As ameaças à posse de Juscelino e Jango ganharam nova dimensão em 1º de novembro, por ocasião do enterro do general Canrobert Pereira da Costa, falecido na véspera. Durante a cerimônia, discursaram o general Lott, pelo Exército, o brigadeiro Gervásio Duncan, pela Aeronáutica, e o almirante Diogo Borges Fortes, pela Marinha, entre outros oradores. Em último lugar falou o coronel Jurandir de Bizarria Mamede, destacado integrante da corrente udenista das forças armadas. Em seu discurso — a causa próxima do Movimento do 11 de Novembro —, Mamede, além de elogiar Canrobert por ter liderado o movimento contra Vargas em agosto de 1954, atacou os políticos que usavam a “pseudolegalidade imoral e corrompida” para saciar “seus apetites de poder e mando”. Não deixando dúvidas quanto à visão que tinha da situação política, Mamede afirmou que seria uma “indiscutível mentira democrática” se o regime presidencial, que comporta uma “enorme soma de poder” no Executivo, permitisse a “vitória da minoria”, que seria consubstanciada na posse dos eleitos. Irritado com as palavras do coronel, por considerá-las uma demonstração de indisciplina e de quebra da hierarquia militar, Lott julgou imprescindível a punição de Mamede.

Ainda no dia 1º, antes que o discurso de Mamede fosse de conhecimento de todo o país, foi lançado um manifesto dos intelectuais pernambucanos em defesa da legalidade. No Rio, o brigadeiro Vasco Alves Seco defendeu publicamente a posse dos eleitos, ao mesmo tempo que em Ubá prefeitos de nove cidades mineiras pediam a Café Filho providências contra as “manobras golpistas”.

Na noite daquele mesmo dia, Eduardo Gomes telefonou a Lott informando-o de que lhe remeteria no dia seguinte uma exposição de motivos sobre as atividades comunistas no país, na qual era pedido o fechamento de diversos jornais e revistas ligados ao PCB. Na ocasião, foi abordado o Caso Mamede, e Lott manifestou seu ressentimento perante a atitude daquele oficial. Na manhã do dia 2, Café Filho recebeu um longo memorial, assinado por Eduardo Gomes, Amorim do Vale e Lott, solicitando o imediato fechamento de diversos órgãos de imprensa comunistas, entre os quais o jornal Imprensa Popular, que fazia pesados ataques aos ministros da Marinha e da Aeronáutica. O presidente convocou o ministro da Justiça, José Eduardo Prado Kelly, que por sua vez procurou o consultor-geral da República, Temístocles Cavalcanti, e ambos julgaram o ato reclamado pelos ministros militares inconstitucional.

Lott continuava empenhado em punir o coronel Mamede, mas para tal dependia do assentimento do presidente Café Filho, uma vez que Mamede estava temporariamente afastado dos quadros do Ministério da Guerra. Mamede lecionava na Escola Superior de Guerra (ESG), que estava ligada ao Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), o qual, por sua vez, estava subordinado à Presidência da República. Por esse motivo, Lott telefonou na manhã do dia 3 para o chefe da Casa Militar, coronel José Canavarro Pereira, para saber se Café Filho havia tomado conhecimento do discurso de Mamede. O ministro da Guerra foi então informado de que o presidente fora acometido de um distúrbio cardiovascular naquela manhã, tendo sido imediatamente internado no Hospital dos Servidores do Estado.

Diante dessa situação imprevista, Lott resolveu entender-se diretamente com o brigadeiro Duncan, chefe interino do EMFA, e no dia 5 enviou-lhe um ofício pedindo o retorno de Mamede às fileiras do Exército sob o argumento de que já se esgotara o prazo-limite de três anos permitido para um oficial servir na ESG. Baseado em informações do comandante da instituição, almirante Ernesto Araújo, Duncan respondeu que Mamede ainda era necessário à escola.

Na imprensa, Lacerda continuava exigindo a intervenção dos militares. No editorial da Tribuna da Imprensa de 4 de novembro, intitulado “A hora das forças armadas”, afirmava estar próxima a hora da implantação de um “novo regime” a cargo dos militares: “O legalismo é, neste momento, apenas o pretexto para entregar o poder aos inimigos do Brasil... O dilema é este: ou se estabelece o regime de emergência, ou tomam posse Juscelino e Goulart para imporem ao país, em pouco tempo, uma ditadura e, como inevitável conseqüência, uma guerra civil.”

Paralelamente, prosseguia a tentativa udenista de impugnar a vitória eleitoral de Kubitschek e Jango. No dia 5, Juarez Távora e Mílton Campos lançaram um manifesto defendendo a tese da maioria absoluta com efeito retroativo e da impugnação dos votos dos comunistas. O PL e o PSB — partidos integrantes da coalizão que apoiara a chapa Juarez-Mílton Campos — se recusaram a firmar o documento, que só foi assinado pela UDN e o PDC. Ainda em 5 de novembro, o brigadeiro Luís Leal Neto dos Reis declarou ao Correio da Manhã, jornal carioca favorável à posse dos eleitos, que os militares deviam manter-se alheios à política e que os candidatos vitoriosos, proclamados pelo Judiciário, deveriam ser empossados. No dia seguinte, Reis foi punido por Eduardo Gomes com dez dias de prisão.

No dia 8, um dado novo agravou ainda mais a tensão: Café Filho, informado pelos médicos de que deveria ficar inativo por mais alguns dias, comunicou ao ministério sua decisão de transmitir imediatamente o governo a Carlos Luz, seu sucessor legal, e elemento sabidamente próximo ao esquema udenista. Na tarde desse mesmo dia, Luz foi empossado na presidência. Ao mesmo tempo, o deputado José Antônio Flores da Cunha, da UDN gaúcha, o substituiu na presidência da Câmara dos Deputados.

Luz reuniu o ministério no dia 9, quando comunicou aos ministros de Café Filho sua intenção de manter o mesmo gabinete. Depois da reunião, em audiência particular, Lott pediu ao novo presidente uma solução rápida para o Caso Mamede. Luz afirmou ser conveniente ouvir o consultor-geral da República, Temístocles Cavalcanti, mas Lott insistiu que se tratava de um assunto do Exército e não de natureza jurídica. Quatro dias antes, quando Luz, na qualidade de substituto eventual de Café Filho, o visitara no Ministério da Guerra, Lott lhe sugerira algumas soluções tecnicamente possíveis para punir Mamede e acrescentara que, se nenhuma delas fosse adotada, pediria demissão do ministério.

A pregação golpista de Lacerda continuava. Em sua edição do dia 9, a Tribuna publicou um violento artigo de seu diretor intitulado “Não podem tomar posse”, que afirmava em determinado trecho: “É preciso que fique claro, muito claro, que o presidente da Câmara não assumiu o governo... para preparar a posse dos senhores Juscelino Kubitschek e João Goulart. Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, não tomarão posse... O governo inaugurado ontem, sob o aspecto legal de uma sucessão rotineira, é um governo que só nasceu e só se manterá pelo consenso dos chefes militares responsáveis pelo 24 de agosto, cujo equívoco agora estão em condições de desfazer.”

Contrapondo-se à ação dos que defendiam a intervenção dos militares, os deputados das assembléias legislativas da Paraíba e de Pernambuco pronunciaram-se, ainda no dia 9, a favor da posse dos eleitos. No Rio, diversos parlamentares visitaram o presidente Carlos Luz defendendo o respeito ao resultado das urnas.

 

O afastamento de Lott

No dia 10, o ministro da Guerra compareceu ao palácio do Catete para uma audiência com Carlos Luz, a fim de tomar conhecimento da solução do Caso Mamede. Lott só foi recebido por volta das 19:30h, embora a entrevista tivesse sido marcada para as 18 horas. Iniciada a audiência, o presidente interino comunicou a Lott o parecer de Temístocles Cavalcanti, contrário à punição do coronel Mamede, acrescentando que este permaneceria lotado no EMFA, o que o resguardava de qualquer sanção. Imediatamente, Lott colocou a pasta da Guerra à disposição de Luz, o qual não só aceitou seu pedido de demissão como também informou que já havia pensado num substituto para o posto. O novo titular do ministério seria o general Álvaro Fiúza de Castro, reformado há alguns meses, e primeiro signatário do manifesto dos generais de 22 de agosto de 1954, exigindo o afastamento de Vargas da presidência. Fiúza, que já se encontrava no palácio, foi chamado à sala de reunião. Ele e Luz desejavam que a passagem do cargo fosse imediata, mas Lott argumentou que precisava “esvaziar as gavetas” do ministério. Assim, a transmissão foi marcada para o dia 11, às 15 horas.

Entretanto, um dado indica que, independentemente do resultado da reunião, Carlos Luz tinha a intenção prévia de afastar Lott. O Diário Oficial do dia 11, impresso na tarde do dia 10 — antes portanto do encontro entre os dois — trazia publicada a notícia da indicação de Fiúza. Outro dado que reforça essa suposição é que no dia 10, o Repórter Esso, noticiário radiofônico diário das 20 horas, informou minutos após a reunião que Fiúza havia escolhido o general Ademar de Queirós, sabidamente contrário à posse dos eleitos, para a chefia de seu gabinete.

O afastamento de Lott já fora previsto também pelos militares partidários da posse de Kubitschek. De fato, no dia 5 de novembro circulara em diversas unidades militares um boletim do MMC denunciando a iminência de um golpe de Estado, que eclodiria provavelmente até 20 de novembro, promovido pelos setores antigetulistas civis e militares e chefiado pelo coronel Mamede. O MMC já havia traçado uma linha de ação para neutralizar a tentativa de golpe. A reação teria início a partir da exoneração de Lott e de sua substituição por Fiúza de Castro, Etchegoyen ou outro general vinculado ao esquema golpista, possibilidade cada vez mais forte devido ao desenrolar do Caso Mamede e à conhecida afinidade entre Carlos Luz e os militares contrários à posse dos eleitos.

 

A eclosão do movimento

Ao chegar em casa, às 21 horas, Lott foi procurado pelo general Odílio Denis, comandante da Zona Militar Leste (hoje I Exército), com sede no Rio. Denis mostrou-se preocupado com as conseqüências da demissão de Lott, bem como com as verdadeiras intenções do governo e a crise que ocorreria no Exército. Informou ainda que a Marinha e a Aeronáutica encontravam-se de prontidão, sugerindo que a guarnição do Exército da capital do país também fizesse o mesmo. Acrescentou que ele e os generais sob seu comando estavam dispostos a abandonar seus cargos em virtude do afastamento do ministro da Guerra. Porém, devido ao ponto de vista de Lott, que não julgava conveniente a prontidão para não alarmar a população, Denis retirou-se.

A notícia da demissão de Lott provocou intensa atividade nos círculos militares e políticos ligados a Juscelino. Na casa do general Zenóbio da Costa, em Vila Isabel, reuniu-se o comando central do MMC, composto por oficiais que serviam sob suas ordens na Inspetoria Geral do Exército.

Na residência oficial do general Denis, vizinha à de Lott, realizou-se uma outra reunião às 22 horas, congregando dez generais comandantes das guarnições do Distrito Federal, além do general Olímpio Falconière da Cunha, comandante da Zona Militar Centro (atual II Exército), com sede em São Paulo, que se encontrava de passagem pelo Rio. A reunião fora convocada depois que o próprio Fiúza informara Denis de que o coronel Mamede não seria suspenso e que ele, enquanto ministro da Guerra, cooperaria inteiramente com Carlos Luz. Além disso, a troca de ministro seguramente determinaria substituições nos comandos das zonas militares, o que não agradava a Denis. Na reunião, foi decidido que os generais tomariam os pontos-chave da capital e forçariam o governo a respeitar a disciplina militar.

Enquanto isso, na área parlamentar, diversos congressistas favoráveis à posse dos eleitos reuniram-se no anexo do Hotel Copacabana Palace em torno de José Maria Alkmin, para discutir a situação. Alkmin informou Juscelino por telefone sobre os acontecimentos mais recentes e procurou sondar o clima reinante entre os militares.

Voltando atrás em sua decisão, Lott telefonou à uma hora da manhã do dia 11 para o general Denis, comunicando-lhe estar disposto a agir. Em seguida, Lott, Denis, Falconière e outros oficiais seguiram para o Ministério da Guerra, onde foi centralizado o comando das operações militares. Tropas deslocaram-se da Vila Militar com a missão de interditar o acesso ao palácio do Catete, de ocupar os quartéis de polícia e a sede da companhia telefônica, e de controlar as operações de telégrafo. O jornal Tribuna da Imprensa e a sede do Clube da Lanterna também foram ocupados.

A comunicação com as unidades do Exército de todo o país foi feita diretamente por rádio, radiofonia e telefone. Paralelamente, os chefes do Legislativo e do Judiciário foram contatados e informados de que, estando resolvido o problema militar, o aspecto político-institucional do país passaria a ser examinado.

Logo após sua deflagração, o movimento ganhou numerosas adesões. Compareceram ao Ministério da Guerra Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, Flores da Cunha, presidente em exercício da Câmara dos Deputados, o marechal Mascarenhas de Morais e os generais Aristóteles Sousa Dantas, comandante da Zona Militar Norte (hoje IV Exército), e Nélson de Melo, comandante da Infantaria Divisionária de Ponta Grossa (PR).

Às seis horas da manhã de 11 de novembro, o general Lott, chefe do movimento, expediu a seguinte declaração aos chefes dos estados-maiores dos principais comandos do país: “Tendo em conta a solução dada pelo presidente Carlos Luz no caso do coronel Mamede, os chefes do Exército, julgando tal ato de positiva provocação aos brios do Exército, que viu postergados princípios de disciplina, decidiram credenciar-nos como intérpretes dos anseios do Exército, objetivando o retorno da situação aos quadros normais do regime constitucional vigente. Acreditamos contar com a solidariedade dos companheiros da Marinha e da Aeronáutica, e apelamos para os governadores estaduais, solicitando apoio para esta atitude.”

Paulatinamente, todas as unidades do Exército foram-se pronunciando a favor da decisão de Lott. Os governadores de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e do território do Amapá também se solidarizaram com o movimento. Pela manhã, o almirante Benjamim Sodré comunicou ao ministro da Guerra que, após reunião, o almirantado resolvera acatar a decisão que o Congresso viesse a tomar quanto ao problema presidencial.

 

A fuga do Tamandaré

A situação era francamente desfavorável aos titulares do governo. Informado da movimentação no Ministério da Guerra, Carlos Luz, por volta das duas horas da madrugada, acompanhado de membros do governo, dirigiu-se ao palácio do Catete. Alertado por membros da Cruzada Brasileira Anticomunista, Pena Boto colocou os navios da Esquadra em prontidão; o cruzador Tamandaré, comandado pelo capitão-de-mar-e-guerra Sílvio Heck, foi preparado para zarpar caso fosse necessário. A prisão do coronel Geraldo Meneses Cortes, chefe de polícia do Distrito Federal e elemento de confiança dos partidários de Carlos Luz, por oficiais de Zenóbio debilitou ainda mais a posição dos governistas.

Por volta das quatro horas da madrugada, antes de os soldados de Lott chegarem ao Catete, Otávio Marcondes Ferraz, ministro dos Transportes, conduziu de carro Carlos Luz e Prado Kelly para o Ministério da Marinha. Eduardo Gomes e Amorim do Vale, que já se encontravam naquele ministério, emitiram uma nota afirmando que a Marinha e a Aeronáutica estavam ao lado do presidente Luz. A seguir, Eduardo Gomes partiu de avião para São Paulo.

Os homens de Lott, liderados pelos generais Floriano Brayner e Emílio Maurell Filho, chegaram ao palácio presidencial ainda a tempo de prender os generais Fiúza de Castro e Alcides Etchegoyen. Os dois foram levados para o Ministério da Guerra, onde o marechal Mascarenhas de Morais declarou-os prisioneiros. Etchegoyen sentiu-se mal e foi recolhido ao Hospital Central do Exército, enquanto Fiúza de Castro permaneceu detido no próprio gabinete de Lott.

No Ministério da Marinha, Pena Boto sugeriu ao presidente Luz — devido à situação no Rio, já definida a favor de Lott — que transferisse o governo para Santos, para onde poderia rumar a bordo do Tamandaré. A sugestão foi aceita e às nove horas da manhã de 11 de novembro o cruzador zarpou para o porto paulista. Entre os 27 passageiros, encontravam-se Carlos Luz, Prado Kelly, Bento Munhoz da Rocha (ministro da Agricultura), José Monteiro de Castro (chefe do Gabinete Civil da Presidência da República), o coronel José Canavarro Pereira (chefe do Gabinete Militar da Presidência da República), Carlos Lacerda, o coronel Mamede, além de vários oficiais da Aeronáutica e do Exército ligados a Lacerda. O ministro da Marinha ficou no Rio para organizar o resto da Esquadra que, segundo já fora decidido, partiria da baía de Guanabara naquela noite.

Antes de partir, Luz assinou várias cópias de uma declaração dirigida ao deputado Flores da Cunha na qual afirmava que, “tendo em vista os graves acontecimentos desta madrugada, que ferem de frente a nossa Constituição”, mantinha-se na presidência do país, a bordo de um navio de guerra em águas territoriais brasileiras.

 

A situação em São Paulo

O brigadeiro Eduardo Gomes pretendia organizar em São Paulo a resistência ao movimento militar chefiado por Lott. Para tanto, contava com a Esquadra — que, conforme fora acertado, se dirigiria para Santos na noite do dia 11 —, com a Força Pública estadual, com a 2ª Divisão de Infantaria (2ª DI), comandada pelo general Tasso Tinoco, e com a IV Zona Aérea, comandada pelo brigadeiro Ivo Borges. Apesar de não se ter definido claramente em relação à situação, o governador paulista Jânio Quadros encorajava, de uma forma ou de outra, a iniciativa de Gomes. O ministro da Aeronáutica já tinha inclusive ordenado que todos os aviões de caça e bombardeio do Campo dos Afonsos e da base aérea do Galeão decolassem para a base aérea de Cumbica, na capital paulista.

Na manhã do dia 11, logo após chegarem a São Paulo de avião, procedentes do Rio, Tasso Tinoco e Ivo Borges, em nota enviada à imprensa e às rádios, afirmaram que continuariam a receber e a acatar as ordens de Carlos Luz e de seus ministros militares. Intitulando-se comandante da guarnição de São Paulo, Tasso Tinoco expediu sucessivas ordens a partir das nove horas às unidades, inicialmente colocando-as de prontidão, em seguida orientando o deslocamento de algumas unidades para Cumbica e de outras para as imediações do seu quartel-general. Jânio compareceu ao quartel-general da 2ª DI para se avistar com Tinoco, o que deu margem a muitas especulações. Por seu turno, o secretário de Segurança Pública, general Honorato Pradel, determinou o fechamento dos bancos e das escolas da capital paulista.

Entretanto, os planos do ministro da Aeronáutica foram frustrados pela ação do general Falconière. Após ter participado da eclosão do movimento no Rio, ao lado de Lott e de Denis, o comandante da Zona Militar Centro partiu de carro para São Paulo às 4:30h da madrugada, com a intenção de garantir o sucesso do movimento na área sob seu controle, o que incluía a inspeção de regimentos localizados no eixo Rio-São Paulo.

Na altura de Guaratinguetá (SP), Falconière foi interceptado por oficiais da Escola de Especialistas da Aeronáutica, e levado à presença do brigadeiro Antônio Guedes Muniz, conhecido seguidor de Eduardo Gomes. Falconière pediu para falar pelo telefone com o brigadeiro, o que lhe foi concedido, pois Guedes não tinha certeza de que lado ele se encontrava. Efetuada a ligação, Falconière assegurou ao ministro da Aeronáutica que estava a caminho de São Paulo para defender a legalidade e a Constituição. Como ambos os lados reivindicavam a mesma coisa ou seja, a defesa da legalidade e da Constituição Gomes tranqüilizou-se e ordenou ao brigadeiro Guedes que liberasse Falconière.

Chegando a Caçapava (SP) às 11:30h, o comandante da Zona Militar Centro lançou um manifesto pró-Lott, dissipando os rumores de que teria ficado detido em Guaratinguetá, e enviou um regimento de quinhentos homens para Santos com o intuito de impedir o desembarque de Luz e sua comitiva. Por outro lado, unidades do Exército mantinham os campos de pouso do interior sob controle, impedindo o reabastecimento dos aviões.

Com as guarnições do interior do estado de São Paulo ao seu lado, Falconière, auxiliado pelo general Estênio de Albuquerque Lima, comandante da 2ª Região Militar (2ª RM), deslocou-se para a capital. Dispondo de efetivos muito superiores, Falconière não encontrou nenhuma reação, ocupando o quartel-general da 2ª RM. Tasso Tinoco foi detido. Desse modo, quando Eduardo Gomes aterrissou em Cumbica, no início da tarde, praticamente nada mais podia ser feito; da mesma forma, seu encontro com Jânio, às 15 horas, se revelou totalmente inócuo.

Na esfera política, a oposição ao governo estadual, aproveitando-se da instabilidade da situação, tentou derrubar Quadros, através de articulações tanto na Assembléia Legislativa paulista quanto na Câmara dos Deputados, no Rio. Contava para tanto com o apoio do prefeito de São Paulo, Lino de Matos, mas não conseguiu uma adesão decisiva, a do próprio Falconière, que preferiu manter-se à parte.

No dia 12, o governo paulista distribuiu o manifesto Ao povo de São Paulo, assinado por Jânio, pelo presidente da Assembléia Legislativa e pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmando sua decisão de aguardar o desenrolar dos fatos e de obedecer à Constituição e à legalidade. Considerando o teor da declaração ambíguo, Falconière exigiu um esclarecimento do governo, que acabou se pronunciando claramente a favor de Lott.

 

O impedimento de Carlos Luz e a posse de Nereu Ramos

Paralelamente às operações militares, Alkmin — talvez o principal nome civil do 11 de Novembro —, logo após a deflagração do movimento, endereçou uma petição a Flores da Cunha, assinada por ele e pelos líderes dos partidos que apoiavam a coalizão PTB-PSD, isto é, o PSP, o PRP, o PTN e o PR. O documento solicitava a convocação de uma sessão especial da Câmara dos Deputados para as dez horas do próprio dia 11.

Às quatro horas da madrugada, Alkmin, Flores da Cunha e Nereu Ramos foram chamados ao Ministério da Guerra. O general Lott explicou-lhes que era necessário dar uma rápida solução para o problema político, ou, em outras palavras, promover a substituição legal do presidente Carlos Luz, e garantiu-lhes que o Exército não pretendia interferir nas atribuições do poder civil.

Às 11 horas da manhã, a Câmara começou a discutir a moção apresentada pela aliança PSD-PTB e pelos partidos que a apoiavam, a qual, com base no artigo 79, parágrafo 1º da Constituição, declarava Luz impedido para o exercício da presidência e designava o vice-presidente do Senado para o cargo. A moção foi aprovada por 185 votos contra 72. Nessa mesma sessão, o presidente da Câmara Flores da Cunha declarou considerar-se desligado da UDN. No Senado, após duas horas de debates, a resolução da Câmara foi aprovada por 43 votos contra nove.

Às 18:30h do dia 11, o general Lott, na qualidade de chefe do movimento militar vitorioso, empossou Nereu Ramos na presidência da República até a saída de Café Filho do hospital. Em seguida, o novo presidente nomeou os ministros do seu gabinete. Lott foi reconduzido à pasta da Guerra, enquanto o brigadeiro Vasco Alves Seco e o almirante-de-esquadra Antônio Alves Câmara Júnior foram designados para os ministérios da Aeronáutica e da Marinha. As pastas da Justiça e do Trabalho foram entregues, respectivamente, a Francisco Meneses Pimentel e Nélson Omegna. O general Floriano de Lima Brayner foi designado para a chefia do Gabinete Militar da Presidência da República e Paulo Lira Tavares para a chefia do Gabinete Civil. Lucas Lopes, amigo pessoal de Kubitschek, retornou à pasta dos Transportes, de onde saíra em janeiro, depois de Café Filho ter endossado publicamente a solicitação dos chefes militares de um candidato de união nacional. No dia 12, José Carlos de Macedo Soares foi indicado para o Ministério das Relações Exteriores.

Ainda em 12 de novembro, Eduardo Gomes e Gervásio Duncan regressaram de São Paulo e se apresentaram a Alves Seco, juntamente com os brigadeiros Joelmir Campos de Araripe Macedo e Márcio de Sousa e Melo. Nenhum deles foi detido. Na Marinha, Alves Câmara anunciou que não puniria Amorim do Vale e Pena Boto.

 

A volta do Tamandaré

A notícia do impedimento de Carlos Luz, divulgada pelo rádio às 17 horas do dia 11, deixou os passageiros do Tamandaré pessimistas quanto à solução da crise a seu favor. Luz decidiu então enviar uma mensagem pelo rádio a Amorim do Vale, pedindo-lhe para não sair do porto do Rio com a Esquadra. Mais tarde, depois de conferenciar com seus companheiros de viagem, enviou mensagem a Eduardo Gomes e a Amorim do Vale recomendando-lhes suspender qualquer resistência a Lott, a fim de evitar derramamento de sangue.

Às 4:30h da madrugada do dia 12, o Tamandaré se encontrava a cem milhas de Santos. Pena Boto recebeu uma mensagem de terra avisando que os aviões da base aérea de Santos poderiam ser usados para bombardear o cruzador. Por outro lado, as tropas de Falconière que ocupavam o porto da cidade não permitiriam que o navio atracasse. Pena Boto, chegou a sugerir que o Tamandaré rumasse para Salvador, mas Carlos Luz não concordou, ordenando que o navio retornasse ao Rio.

Por volta das 12 horas do dia 13, o Tamandaré ancorou na baía de Guanabara. O deputado Ovídio Abreu, do PSD, foi enviado a bordo pelo presidente Nereu Ramos para pedir a renúncia de Luz à presidência da Câmara dos Deputados, cargo que legalmente lhe cabia, uma vez que não estava mais à frente do governo. Em troca, receberia permissão para desembarcar. Luz afirmou que estava pensando em renunciar, mas que não assinaria nenhuma declaração naquele sentido a bordo do Tamandaré. Essa resposta não tranqüilizou Lott e outros membros do ministério, que temiam que Luz tomasse alguma medida legal contra a decisão do Congresso. Somente depois de ter negado ser esta sua intenção, Luz pôde desembarcar.

Os coronéis Mamede e Canavarro, o tenente-coronel Jaime Portela de Melo e mais alguns militares lotados na ESG, no EMFA e no Conselho de Segurança Nacional, que também se encontravam no cruzador, ficaram detidos no comando da Zona Militar Leste. Aconselhado por seus colegas udenistas Afonso Arinos de Melo Franco e Juraci Magalhães, Lacerda asilou-se na embaixada de Cuba.

No dia 14 de novembro, Carlos Luz compareceu à Câmara dos Deputados. Em seu longo discurso, o ex-presidente discorreu sobre a evolução do Caso Mamede, a substituição do ministro da Guerra, a eclosão do movimento chefiado por Lott e a viagem para Santos a bordo do Tamandaré, procurando durante toda a exposição provar sua posição ao lado da legalidade. Antes do discurso de Luz, Flores da Cunha havia comunicado aos deputados que Luz, em carta a ele enviada, renunciava à presidência da Câmara.

 

A recuperação de Café Filho e o recrudescimento da crise

No dia 14 de novembro, o presidente licenciado Café Filho foi removido do Hospital dos Servidores do Estado para a Clínica São Vicente, na Gávea, já em franco processo de recuperação. Segundo o próprio Café, em sua autobiografia Do sindicato ao Catete, essa transferência se deveu a um incidente entre Félix Pacheco Raimundo de Brito, diretor do hospital e seu médico particular, e Nélson Omegna, o novo ministro do Trabalho.

A proximidade do retorno de Café Filho à presidência trouxe sérias preocupações ao novo governo devido, entre outras coisas, à suspeita de seu envolvimento nas articulações contra a posse dos eleitos e à grande probabilidade de os ex-ministros retornarem a seus cargos. Lott e seus companheiros procuraram então pressionar Café a não voltar à presidência, ou a fazê-lo apenas sob determinadas condições. As preocupações dos vitoriosos ligavam-se também à posição assumida por Nereu Ramos, que deixara claro que se afastaria do poder assim que Café Filho se recuperasse totalmente e manifestasse vontade de voltar à presidência.

Embora Café Filho não descartasse a possibilidade de renunciar, preferia aguardar os acontecimentos. Nesse ínterim, foi constituído um grupo de oito médicos para examiná-lo, a fim de determinar se já estava em condições de reassumir a presidência se assim o desejasse.

Antes do exame médico, Lott presidiu uma reunião de generais. Na ocasião foi decidido que, “para o bem da nação”, era melhor que Café Filho não retornasse à presidência. Na tarde do dia 20, Lott visitou o presidente licenciado na clínica, levando a seu conhecimento a resolução tomada na reunião. Café Filho reagiu, afirmando que preferia ser deposto. Na manhã do dia 21, a junta médica declarou-o em condições de assumir. Logo a seguir, Café assinou uma declaração oficial, redigida por Prado Kelly, informando Nereu Ramos e os presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal de que a partir daquele momento reassumia a presidência.

Paralelamente aos problemas colocados pela volta de Café Filho, o novo governo se consolidava. Nos dias que se seguiram ao 11 de Novembro, os líderes do movimento vitorioso receberam declarações de apoio de diversos governadores estaduais. As duas principais organizações empresariais do país — a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação Nacional do Comércio — também proclamaram sua solidariedade. Do lado operário, dirigentes sindicais marcaram uma semana de manifestações para atestar “o apoio da massa operária à atitude das forças armadas”.

No Congresso, sucediam-se os discursos de apoio e de repúdio ao Movimento do 11 de Novembro. José Maria Alkmin, em resposta ao discurso de Carlos Luz proferido no dia 14, fez um breve retrospecto da vida política brasileira desde o lançamento da candidatura Juscelino. Referiu-se às pressões sofridas pelo PSD para não indicar Kubitschek e para não aceitar o candidato escolhido pelo PTB para a vice-presidência. Denunciou o clima de golpe reinante antes mesmo das eleições e o revigoramento da conspiração depois da vitória de Juscelino e Goulart. Destacou que o golpe fora pregado na Câmara, nos jornais, nas rádios. Alkmin chegou mesmo a descrever os pontos centrais do plano golpista: “Substituição do ministro da Guerra, prisões em massa, subversão da ordem e até fuzilamento, como ficou provado nos documentos encontrados.”

Do lado dos vencidos, a UDN lançou um manifesto contra o governo Nereu Ramos, denunciando uma conspiração contra o partido. No dia 18 de novembro, o diretório nacional do PDC distribuiu nota onde condenava “o indisfarçável atentado à Constituição da República ocorrido na madrugada de 11 do corrente” e opunha-se a qualquer restrição às prerrogativas constitucionais de Carlos Luz.

Na área militar, apesar de todos os oficiais detidos terem sido soltos em poucos dias, os quartéis permaneciam de prontidão. O almirante Pena Boto foi exonerado do comando da Esquadra sendo substituído pelo almirante Carlos Silveira Carneiro. O coronel Siseno Sarmento, ligado ao grupo vencido, estava desaparecido desde o dia 11 e o comando do Exército solicitava sua apresentação ao órgão onde servia.

Indiscutivelmente, a figura central do governo Nereu Ramos era o general Lott. Em entrevista à agência de notícias United Press, no dia 16 de novembro, o ministro da Guerra apontou Carlos Lacerda como um dos cabeças da conspiração. Entre os chefes militares, responsabilizou Eduardo Gomes, Amorim do Vale, o coronel Mamede e outros. Afirmou também que Carlos Luz deveria ser incluído entre os conspiradores, acrescentando que estes pretendiam intervir no Poder Judiciário, dissolver o Congresso e colocar à frente do Executivo um chefe militar, intenção amplamente divulgada pelos artigos de Lacerda na imprensa.

No dia 19, o Correio da Manhã — que, juntamente com Última Hora, era um dos poucos jornais cariocas que apoiavam a posse de Juscelino e Jango — transcreveu um documento do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), analisando os acontecimentos do 11 de Novembro. Assinado por Hélio Jaguaribe, secretário-geral do IBESP, o documento enfocava o “frustrado golpe de 10 de novembro e procurava avaliar o significado das duas tendências, a “golpista” e a “legalista”, que remeteriam a “dois opostos sistemas de interesses”. O documento, além de denunciar o caráter “neofascista” e as diferentes táticas dos golpistas, que tinham em Lacerda seu chefe ideológico e na Tribuna da Imprensa seu órgão oficial, mostrava também as contradições do novo governo, que preferiu a solução de compromisso à punição dos conspiradores.

 

O impedimento de Café Filho e o estado de sítio

Quando o comunicado de Café Filho chegou à Câmara, já se sabia que Lott desejava que o Congresso votasse o impedimento do presidente licenciado. O ministro da Guerra acreditava que, da mesma forma que Carlos Luz, Café Filho procuraria impedir a posse de Kubitschek. Entretanto, dessa vez Lott encontrou uma certa resistência nos círculos parlamentares. O próprio líder da maioria, o pessedista mineiro Gustavo Capanema, afirmou que o Congresso não poderia afastar Café Filho devido à inexistência de base legal. O problema foi contornado pelo vice-líder da maioria, Vieira de Melo, também do PSD, defensor da proposta de Lott, que preparou o discurso justificando o afastamento de Café, o que Capanema se recusara a fazer.

Na tarde do dia 21, Café Filho reuniu-se na Clínica São Vicente com Eduardo Gomes, Amorim do Vale, Munhoz da Rocha, Prado Kelly e Napoleão Alencastro Guimarães — todos membros do seu ministério — para discutir a situação. Nessa ocasião, foi informado que seu secretário havia sido impedido de entregar seu comunicado oficial a Nereu Ramos. Por ordem de Lott, o palácio do Catete fora cercado por tanques e tropas. Liberado pelos médicos, Café Filho resolveu então voltar para seu apartamento em Copacabana.

Café e seus ministros encontraram o prédio cercado por forte aparato militar. O presidente licenciado recebeu permissão para entrar no edifício, mas seus acompanhantes tiveram de ficar do lado de fora. Lott havia colocado todas as unidades do Exército sediadas no Rio em estado de alerta.

A sessão extraordinária do Congresso da noite do dia 21 foi das mais movimentadas. Um deputado da maioria chamou Café Filho de golpista. Outro acusou-o de ter traído a política estabelecida pelo PSP, partido pelo qual se elegera vice-presidente em 1950. Por seu lado, o líder udenista Afonso Arinos proferiu um veemente discurso de crítica ao governo protestando contra a censura imposta à imprensa e às rádios, e acusou os militares de estarem pressionando o Congresso a tomar uma decisão de acordo com seus interesses. Outros representantes da UDN reiteraram que a Câmara estava abdicando de sua soberania e prestando-se a “manobras ilegais e ignominiosas”. Dois parlamentares da oposição afirmaram que Nereu e Lott eram traidores.

Pouco depois das duas horas da madrugada de 22 de novembro, foi iniciada a votação do afastamento de Café. Por 179 votos contra 94, a Câmara aprovou a resolução proposta pela maioria, e antes das nove horas da manhã o Senado também aprovou a resolução, por 35 votos contra 16. Nereu Ramos foi assim confirmado como presidente legítimo até a posse de Juscelino em janeiro do ano seguinte.

A decisão do Congresso provocou grande indignação nas hostes oposicionistas. Na Marinha, os almirantes afirmaram aceitar a situação de força criada pelo Exército por não se encontrarem em situação de resistir, mas salientaram “sua total condenação e repulsa por um ato ilegal, a despeito de ter sido aprovado pelo Congresso”.

Jânio Quadros também pronunciou-se contra a posição tomada pelos parlamentares. Em manifesto divulgado pela imprensa, o governador de São Paulo afirmou acreditar que “essa decisão receberá um terrível julgamento da História”.

Logo após o Senado ter votado o impedimento de Café Filho, Nereu Ramos solicitou ao Congresso — atendendo a um memorando dos três ministros militares, datado de 14 de novembro — a decretação do estado de sítio no país por 30 dias, prazo máximo previsto pela Constituição. Apesar de a situação estar sob controle, Lott, Vasco Seco e Alves Câmara acreditavam que ainda havia “focos de subversão, aparentemente adormecidos, mas ainda dotados de um potencial perigoso”.

No início da tarde de 23 de novembro, a Câmara dos Deputados reuniu-se em sessão extraordinária para discutir a matéria. Apesar da oposição da UDN e de partidos menores, o estado de sítio foi aprovado por 178 votos contra 91. No dia seguinte, foi aprovado pelo Senado por 35 votos contra 16.

Em 14 de dezembro, a Suprema Corte recusou o mandado de segurança impetrado por Prado Kelly em favor de Café Filho. Em 7 de janeiro de 1956, quando Kubitschek se encontrava em visita aos Estados Unidos, o Tribunal Superior Eleitoral proclamou os resultados oficiais das eleições presidenciais de 3 de outubro, que praticamente ratificavam os resultados divulgados pela imprensa e conseqüentemente confirmavam a eleição de Juscelino e Jango. Finalmente, depois de diplomados pelo TSE, os eleitos foram empossados em 31 de janeiro de 1956.

Sérgio Lamarão

 

 

FONTES: CAFÉ FILHO, J. Sindicato; Correio da Manhã (2 e 30/11/55); COSTA, J. Marechal; DULLES, J. Unrest; FRANCO, A. Escalada; MIN. GUERRA. Subsídios; QUADROS, J. História; RAMOS, P. 11; ROCHA, B. Radiografia; Semanário (9/59); SKIDMORE, T. Brasil.