COMÍCIO DAS REFORMAS

COMÍCIO DAS REFORMAS

 

Concentração popular, também conhecida como Comício da Central do Brasil, realizada no Rio de Janeiro no dia 13 de março de 1964, em frente à estação ferroviária Dom Pedro II, também chamada Central do Brasil, na praça da República. Organizada por líderes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), congregou cerca de 150 mil pessoas, incluindo membros de entidades sindicais e outras organizações de trabalhadores da cidade e do campo, servidores públicos civis e militares, estudantes e demais camadas populares. Tendo por finalidade demonstrar a decisão do governo federal de implementar as chamadas reformas de base e defender as liberdades democráticas e sindicais, o comício teve como principal orador o presidente da República, João Goulart.

Antecedentes

A orientação nacionalista-reformista adotada por Goulart desde o início de seu governo já havia desencadeado a oposição dos setores dominantes do país e de largos segmentos das classes médias e da oficialidade. A estabilidade do governo tornara-se precária, em meio a uma crise econômica e uma inflação vertiginosa. Nos primeiros meses de 1964, Goulart procurou estrategicamente mobilizar as massas para a implementação das reformas de base que vinham sendo bloqueadas pelo Congresso. Com esse intuito, determinou a elaboração da mensagem a ser enviada ao Congresso por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1964 e, com o apoio dos sindicatos, convocou um comício para o dia 13 de março no Rio de Janeiro, três dias antes da abertura dos trabalhos legislativos. Outros comícios, também apoiados pelos sindicatos e presididos por Goulart, foram programados para Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e São Paulo. A campanha pelas reformas de base deveria culminar na capital paulista com uma concentração de um milhão de trabalhadores no dia 1º de maio.

Uma comissão, composta por Osvaldo Pacheco da Silva, presidente da Federação Nacional dos Estivadores e representante do CGT e do Pacto de Unidade e Ação (PUA), pelo deputado federal Hércules Correia dos Reis, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ex-presidente do Sindicato de Têxteis da Guanabara e secretário da Comissão Permanente das Organizações Sindicais (CPOS), e pelo deputado José Talarico, secretário do PTB do estado da Guanabara e assessor de Goulart nas atividades sindicais, encarregou-se da organização do Comício da Central.

Foi publicado um edital de convocação, datado de 19 de fevereiro de 1964, dirigido “aos trabalhadores e ao povo em geral”, que manifestariam “sua inabalável disposição a favor das reformas de base”. Além dos organizadores Osvaldo Pacheco da Silva e Hércules Correia dos Reis, assinaram o edital representantes de mais de 19 entidades, entre os quais Dante Pelacani, do CGT, Clodesmidt Riani, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), Lindolfo Silva, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), o editor Ênio Silveira, do Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), Marcelo Cerqueira, da União Nacional dos Estudantes (UNE), e o deputado Sérgio Magalhães, pela Frente Parlamentar Nacionalista (FPN).

O edital deixava claro o objetivo de demonstrar em praça pública a decisão do governo federal de implementar as reformas agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral, que deveriam ser concretizadas ainda naquele ano de 1964. Outro objetivo era a defesa das liberdades democráticas e sindicais, exigindo-se a extensão do direito de voto aos analfabetos, soldados, marinheiros e cabos, assim como a elegibilidade para todos os eleitores e a necessidade de imediata anistia a todos os civis e militares indiciados e processados por crimes políticos e pelo exercício de atividades sindicais.

O texto do edital também se referia à necessidade de mobilização popular para garantir “o êxito do programa de reformulação da política econômico-financeira e de outras medidas que conduzissem ao fortalecimento do monopólio estatal do petróleo, à ampliação da Petrobras e à efetivação da reforma agrária”. O edital afirmava ainda que o presidente da República iria assinar, durante o comício, o decreto da Superintendência da Reforma Agrária (Supra), que declarava sujeitas à desapropriação todas as propriedades que ultrapassassem cem hectares, localizadas numa faixa de dez quilômetros à margem de rodovias ou ferrovias federais e as terras de mais de 30 hectares, quando situadas nas zonas que constituíssem bacias de irrigação dos açudes públicos federais. Esse decreto era considerado o primeiro passo na efetivação da reforma agrária.

Ao mesmo tempo em que era organizado o comício, o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, e diversos setores da oposição mobilizavam-se contra sua realização. A atitude hostil do governador carioca iria ensejar uma série de atritos com as autoridades do estado no tocante ao trânsito, principalmente dos ônibus vindos dos subúrbios e dos estados vizinhos transportando os trabalhadores para a concentração. No dia 11 de março, respondendo a um plano de opção oferecido pelo governo federal, dois mil membros do Departamento de Trânsito do Estado da Guanabara transferiram seus serviços para o governo federal, seguindo o exemplo de bombeiros e outras categorias, fato que acirrou a oposição do governo estadual.

Na madrugada do dia 12 para 13, houve uma tentativa de incendiar o palanque armado em frente à estação da Central do Brasil, confirmando as denúncias de que grupos de extrema direita tentariam impedir a realização do comício. As mulheres da Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) empenharam-se numa campanha telefônica pedindo ao povo para não comparecer à concentração, ao mesmo tempo em que persuadiam os moradores das ruas entre o palácio das Laranjeiras e a praça da República a colocar  velas acesas nas janelas para que o presidente as observasse, como sinal de luto, em seu trajeto de ida e volta do comício.

O comício

Cerca de 2.500 soldados da Polícia do Exército perfilavam-se na praça da República às 15 horas, quando começaram a chegar os integrantes das organizações de trabalhadores e de estudantes. Aproximadamente 150 mil pessoas compareceram ao local, segundo o historiador Thomas Skidmore, embora não haja consenso entre os autores nem entre os órgãos de imprensa quanto ao cálculo do número de participantes, que varia desde cem mil pessoas (O Globo) até duzentas mil (Muniz Bandeira). Entre os presentes, destacavam-se as delegações de marítimos, do CGT e do PUA, e as representantes das alas femininas do PTB e da FPN. No palanque presidencial, estavam presentes os chefes dos gabinetes Civil, Darci Ribeiro, e Militar, general Argemiro Assis Brasil, o ministro da Justiça Abelardo Jurema, e os três ministros militares, general Jair Dantas Ribeiro (Guerra), almirante Sílvio Mota (Marinha) e o brigadeiro Anísio Botelho (Aeronáutica). Ainda no palanque encontravam-se os governadores Miguel Arrais, de Pernambuco, João Seixas Dória, de Sergipe, e Badger da Silveira, do estado do Rio de Janeiro, além de deputados federais e estaduais.

Foi anunciada uma relação de 15 oradores que precederiam o presidente da República, entre os quais os três governadores, Leonel Brizola, deputado federal pelo PTB carioca, Artur Virgílio, líder do PTB no Senado, e Armindo Marcílio Doutel de Andrade, líder do PTB na Câmara dos Deputados, além de alguns líderes dos trabalhadores. Às 17 horas iniciou-se o primeiro discurso, do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Estado da Guanabara, José Lélis da Costa. No momento em que o deputado Sérgio Magalhães, representando a FPN, ia iniciar o terceiro discurso, foi feito um comunicado especial: o presidente da República acabara de assinar, no palácio das Laranjeiras, o decreto da Supra, que dava início às expropriações fundiárias.

Brizola foi o orador mais aplaudido. Depois de afirmar que o Congresso não estava identificado com o povo, exortou o presidente a “abandonar a política de conciliação e organizar um governo estritamente populista e nacionalista”. Segundo ele “a única solução pacífica para o impasse” seria depor o Congresso em exercício e “instalar uma Assembléia Constituinte com vistas à criação de um Congresso popular, composto de camponeses, operários, sargentos, oficiais nacionalistas e homens autenticamente populares”. Essa medida seria referendada por um plebiscito.

Goulart iniciou seu discurso às 20 horas, tendo falado por mais de uma hora. Inicialmente atacou os chamados “democratas”, cuja “democracia do antipovo, da anti-reforma e do anti-sindicato” seria a democracia “para liquidar com a Petrobras, a democracia dos monopólios nacionais e internacionais”.

Referindo-se à reforma agrária como “o complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros”, situou a política social do governo dentro da doutrina cristã. Citando o papa João XXIII, afirmou que “o cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelo Santo Padre” e que os rosários não podiam “ser levantados contra a vontade do povo e suas aspirações mais legítimas”.

Mais adiante, o presidente mencionou a necessidade de revisão da Constituição de 1946, “antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada”. Afirmando também a necessidade de ampliação da democracia, “colocando fim aos privilégios de uma minoria”, assegurou que o processo democrático deveria seguir o caminho pacífico, através das reformas, pois “de nada vale ordenar a miséria... dando-lhe aquela aparência bem comportada”. Referindo-se à assinatura do decreto da Supra, frisou que o decreto ainda não era a reforma agrária, pois “reforma agrária feita com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária”, mas sim “negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário”. Com relação à Petrobras, afirmou que assinara pouco antes o decreto de encampação de todas as refinarias particulares, o que significava que as refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos e Amazonas e a Destilaria Rio-Grandense passavam a pertencer ao patrimônio nacional.

Referindo-se à mensagem que iria enviar ao Congresso 48 horas mais tarde, Goulart declarou que aí estavam também consignadas a reforma eleitoral — baseada no princípio de que “todo alistável deve ser também elegível” — e a reforma universitária, “reclamada pelos estudantes”. Anunciou ainda que “dentro de poucas horas”, outro decreto seria dado ao conhecimento da nação, o decreto que iria “regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados” cujos aluguéis estavam sendo “oferecidos até mediante o pagamento em dólares”. O discurso presidencial mencionou por fim a existência de “forças poderosas” e de “parcelas ponderáveis... que ainda permaneciam insensíveis à realidade nacional” e que poderiam vir a ser “responsáveis perante a História” pelo derramamento de sangue brasileiro, “ao pretenderem levantar obstáculos à caminhada e à emancipação”.

O comício terminou às 21:15h. No dia seguinte, Goulart assinou o decreto estipulando o tabelamento do preço de aluguéis e imóveis em todo o território nacional e desapropriando imóveis desocupados por utilidade social.

Repercussões

As repercussões do comício se fizeram imediatamente sentir em todas as partes do país. Manifestações antigovernamentais irromperam em São Paulo e Belo Horizonte, provocadas por grupos de direita, enquanto a União Democrática Nacional (UDN) e parte do Partido Social Democrático (PSD) e outros partidos menores reclamavam o impedimento de João Goulart.

Ademar de Barros, governador de São Paulo, concordou que o impedimento era a medida a ser tomada contra um presidente “que pregava publicamente a subversão da ordem”, enquanto Lacerda, tentando formar uma coligação de governadores antigovernistas, referiu-se ao comício como “um ataque à Constituição e à honra do povo” e, ao discurso do presidente, como “subversivo e provocativo, além de estúpido”. Por seu turno, o ministro Abelardo Jurema declarou que a oposição não ousaria tentar o impedimento de Goulart, acrescentando que o presidente era “o maior líder popular da Nação”, ao passo que a oposição não tinha o menor suporte popular, além de ser malvista pelas forças armadas.

Enquanto a agitação contra Goulart recrudescia nos meios políticos e na imprensa, entidades financiadas pelo empresariado como a Camde, a Fraterna Amizade Urbana e Rural (FAUR), a União Cívica Feminina (UCF), a Sociedade Rural Brasileira (SRB), entre outras, articulavam a realização, nas principais cidades do Brasil, das chamadas marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, a fim de levantar as classes médias contra o perigo do comunismo.

Durante a Semana Santa, eclodiu grave crise na Marinha. No dia 26 de março, centenas de marinheiros sublevados, liderados pelo “cabo” (na verdade, marinheiro) José Anselmo dos Santos, se recolheram ao Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio, em protesto contra restrições impostas à categoria. O comportamento das autoridades, recusando-se a punir os rebeldes, enfraqueceu ainda mais o governo Goulart, que em 31 de março foi deposto por um movimento político-militar.

Heloísa Menandro

 

 

FONTES: CARONE, E. Quarta; DULLES, J. Unrest; Globo (14 e 15/3/64); Jornal do Brasil (14 e 15/3/64); SILVA, H. 1964; SKIDMORE, T. Brasil; VÍTOR, M. Cinco.