FIGUEIREDO, JOÃO BATISTA

FIGUEIREDO, João Batista

*militar; ch. Gab. Mil. Pres. Rep. 1969-1974; ch. SNI 1974-1978; pres. Rep. 1979-1985.

 

João Batista de Oliveira Figueiredo nasceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 15 de janeiro de 1918, filho de Euclides de Oliveira Figueiredo e de Valentina Silva Oliveira Figueiredo. Seu pai destacou-se na Revolução Constitucionalista de 1932 como comandante das tropas rebeldes que operaram no vale do rio Paraíba, fez cerrada oposição ao Estado Novo e foi eleito deputado pelo Distrito Federal à Assembléia Nacional Constituinte de 1946 na legenda da União Democrática Nacional (UDN). Seu irmão mais velho, Guilherme, lutou ao lado do pai em 1932 e tornou-se conhecido no Brasil e no exterior como teatrólogo. Outros dois irmãos, Euclides e Diogo, seguiram a carreira militar e alcançaram o generalato. O primeiro comandou a 1ª Divisão de Exército (Vila Militar) no Rio e o Comando Militar da Amazônia e o segundo comandou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, também no Rio.

Ingressou em 1923 no Colégio Santa Teresa, onde fez os primeiros estudos. Dois anos depois, transferiu-se para a Escola Nilo Peçanha e, em 1927, acompanhou a família para Alegrete (RS), onde seu pai, recém-promovido a coronel, assumiu o comando da 2ª Brigada de Infantaria. Em fins de 1928 obteve o primeiro lugar no concurso para o Colégio Militar de Porto Alegre, que começou a cursar no ano seguinte.

Oficial legalista, Euclides foi preso em 3 de outubro de 1930, data de eclosão da revolução que derrubou Washington Luís e levou à formação do Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas. Com a cessação dos combates e a libertação de Euclides, a família retornou ao Rio de Janeiro e João Batista obteve sua transferência para o Colégio Militar local. Seu pai, entretanto, tornou-se ferrenho oposicionista do novo governo, participando ativamente da preparação e do comando da Revolução Constitucionalista de São Paulo, derrotada em outubro de 1932. Euclides foi então enviado para o exílio, mas retornou ao país, anistiado, antes da formatura de João Batista no Colégio Militar, em dezembro de 1934.

Ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio, em abril de 1935. Em novembro, apresentou-se às autoridades militares para combater a Revolta Comunista, deflagrada no 3º Regimento de Infantaria e na Escola de Aviação Militar e rapidamente sufocada. Em 22 de novembro de 1937, 12 dias depois do golpe que implantou o Estado Novo, foi declarado aspirante da arma de cavalaria. Devido à sua condição de primeiro aluno, recebeu o espadim de Vargas, cujo chefe de polícia, capitão Filinto Müller, decretara pouco antes a prisão de seu pai.

Designado para servir no Regimento Andrade Neves (Regimento-Escola de Cavalaria), na Vila Militar, foi promovido a segundo-tenente em abril de 1938 e a primeiro-tenente em dezembro de 1940, sendo então enviado para o 8º Regimento de Cavalaria, em Uruguaiana (RS). Regressou ao Rio no ano seguinte, passando a atuar, até 1943, como ajudante-de-ordens do general Cristóvão de Castro Barcelos, que exerceu sucessivamente o comando da 4ª Região Militar (4ª RM), em Juiz de Fora (MG), a inspetoria do 3º Grupo de Regiões Militares e as funções de membro da Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos, criada durante a Segunda Guerra Mundial para estudar planos de defesa do hemisfério sul, ameaçado pelas investidas dos submarinos alemães.

No início de 1944, tornou-se instrutor de cavalaria na Escola Militar do Realengo, sendo promovido a capitão em dezembro. Permaneceu em Realengo até fins de 1945, quando estava em curso a redemocratização subseqüente à queda do Estado Novo. Freqüentou em 1946 o curso da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) e, nos dois anos seguintes, tornou-se instrutor da cadeira de fortificações da Escola Militar de Resende, mais tarde Academia Militar das Agulhas Negras. Retornou à EsAO de 1949 a 1952 como instrutor de cavalaria. Promovido a major em abril de 1953, ingressou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), passando a instrutor no ano seguinte. Viajou para Assunção em 1955 na qualidade de membro da missão militar de instrução ao Exército paraguaio, retornando em 1958. Em novembro desse ano foi promovido a tenente-coronel e passou a servir na 5ª Seção (relações públicas) do Estado-Maior do Exército (EME), de onde saiu em 1960 para cursar a Escola Superior de Guerra (ESG). Em 1961, durante o curto governo de Jânio Quadros, trabalhou sob as ordens do coronel Golberi do Couto e Silva no Conselho de Segurança Nacional.

Com a posse de João Goulart na presidência em setembro de 1961, assumiu as funções de instrutor da ECEME, comandada pelo general Jurandir Bizarria Mamede e logo transformada em um dos principais pontos de apoio à conspiração contra o novo governo. Na ECEME, no EME e na ESG desenvolveu-se a doutrina e formaram-se os principais quadros do movimento político-militar que derrubou João Goulart em 31 de março de 1964, inclusive Figueiredo, participante ativo de todas as fases desse processo.

Oficial de informações

Com a posse do general Castelo Branco na presidência da República, começou uma profunda reestruturação nos órgãos de segurança, que conduziu à criação, em 13 de junho de 1964, do Serviço Nacional de Informações (SNI), encarregado de exercer controle sobre adversários internos e externos do regime, acompanhar o funcionamento da máquina burocrática do Estado, recolher informes sobre a atuação de entidades públicas e privadas, analisar acontecimentos políticos e prever seus desdobramentos possíveis, de modo a evitar que o governo pudesse ser surpreendido por episódios e situações capazes de influir no comportamento geral da sociedade. Promovido a coronel em agosto de 1964, Figueiredo foi encarregado de chefiar a agência do SNI no Rio de Janeiro, novamente subordinado a Golberi, agora general da reserva e chefe do órgão em nível nacional.

Em 5 de junho de 1966, Castelo cassou o mandato do governador de São Paulo, Ademar de Barros, e transferiu o cargo para o vice Laudo Natel, com a condição de que este aceitasse nomes indicados pelo governo federal para as secretarias de Fazenda e de Segurança e o comando da Força Pública. Assim, Figueiredo foi nomeado para este último posto, onde ajudou a consolidar a nova administração e a combater o ademarismo.

Com a posse do general Costa e Silva na presidência em 15 de março de 1967, a chamada “linha dura” do regime militar aumentou sua influência na definição das políticas governamentais. Esse fato, aliado à onda de contestação estudantil e aos protestos operários em 1968, levou à edição, em 13 de dezembro desse ano, do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que, entre outras medidas, determinou o fechamento do Congresso, o retorno das cassações de mandatos e direitos políticos e a introdução da censura à imprensa, além de ter permitido intensificar a repressão aos adversários do regime e a supressão das garantias individuais dos cidadãos. Figueiredo chefiou nesse período o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (Dragões da Independência), em Brasília, encarregado da segurança dos palácios presidenciais. Foi promovido a general-de-brigada em março de 1969, mês em que o general Garrastazu Médici, chefe do SNI, alcançou o posto máximo da hierarquia e assumiu o comando do III Exército, em Porto Alegre, com a missão de aumentar o controle sobre as atividades dos exilados ao longo da fronteira com o Uruguai e a Argentina. Pretendendo aproveitar a experiência de Figueiredo no setor de informações, Médici convidou-o para a chefia do Estado-Maior.

Em fins de agosto de 1969, o presidente Costa e Silva sofreu um grave distúrbio circulatório que impediu a continuidade de suas atividades e levou os três ministros militares — general Aurélio de Lira Tavares, almirante Augusto Rademaker e brigadeiro Márcio de Sousa e Melo — a assumirem temporariamente o poder, impedindo a posse do vice-presidente Pedro Aleixo. A crise generalizou-se no meio militar até a indicação de Médici para a presidência da República, depois de escolhido pela alta hierarquia das três forças. Empossado em 30 de outubro de 1969, no mesmo dia o novo presidente nomeou Figueiredo para substituir o general Jaime Portela na chefia do Gabinete Militar.

Durante o governo Médici, o bom desempenho da economia e a estabilidade no sistema militar de sustentação garantiram um período sem grandes incidentes políticos. Além disso, a rígida ação da censura à imprensa, a propaganda governamental em larga escala e a intensificação da repressão contra grupos dissidentes dificultavam ao máximo que prosperassem as mensagens oposicionistas capazes de captar a insatisfação existente. Nesse período, as forças armadas concentraram as atividades de repressão política — principalmente por intermédio dos órgãos denominados centros de Operações para a Defesa Interna (CODIs).

Na chefia do SNI

Com a posse do general Ernesto Geisel na presidência em 15 de março de 1974, Figueiredo substituiu o general Carlos Alberto da Fontoura na chefia do SNI. O novo governo anunciou uma retomada “lenta, gradual e segura” das práticas democráticas, criando uma grande expectativa sobre o início de uma nova fase na vida política. Promovido a general-de-divisão em julho de 1974, Figueiredo integrou o núcleo central das principais decisões governamentais sobre o processo de distensão, que teve seu primeiro grande teste nas eleições de novembro para renovar a totalidade da Câmara e 1/3 do Senado. O acesso dos candidatos oposicionistas do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) ao rádio e à televisão em igualdade de condições com os da Aliança Renovadora Nacional (Arena) contribuiu decisivamente para que a oposição elegesse 16 dos 21 senadores e reduzisse consideravelmente a enorme maioria governista na Câmara. Apesar desse resultado, o governo anunciou a continuação de sua política, desagradando setores militares mais radicais, cujos líderes, alguns no exercício de comandos importantes, passaram a articular pressões para a manutenção do regime de exceção.

Candidato à sucessão

No decorrer do mandato, Geisel afirmou repetidamente que só trataria do problema sucessório a partir de janeiro de 1978. Apesar disso, consolidou-se desde muito antes nos meios políticos a convicção de que seu substituto seria o chefe do SNI, chegando a circular a versão de que essa escolha era fruto de acordo feito antes mesmo da posse de Geisel. De qualquer forma, a vivência de oito anos na atividade diária do palácio do Planalto, o contato permanente com dois chefes de governo e o exercício de atribuições intimamente relacionadas com a segurança do regime foram fatores decisivos para o fortalecimento do nome de Figueiredo.

Geisel começou efetivamente a preparar sua sucessão em abril de 1977, quando, a pretexto de realizar a reforma do Judiciário, decretou o recesso do Congresso e outorgou um conjunto de medidas, conhecido como o “pacote de abril”, que, entre outras providências, determinou a eleição por via indireta de 1/3 do Senado, com o objetivo de evitar que se repetisse o insucesso eleitoral de 1974 e, dessa forma, assegurar uma composição favorável ao governo no colégio que, em 15 de outubro de 1978, deveria escolher o novo presidente da República.

Em junho de 1977, o economista Humberto Barreto, ex-assessor de imprensa de Geisel e presidente da Caixa Econômica Federal, concedeu uma longa entrevista à revista Veja, reproduzida em vários jornais da imprensa diária, anunciando a candidatura Figueiredo. A área governamental procurou dar a impressão pública de que o fato resultava apenas de uma opinião pessoal de Barreto e que Geisel só trataria do problema, conforme prometera, em janeiro de 1978. Entretanto, a permanência de Barreto na presidência da Caixa e a continuidade de sua freqüência ao Planalto, marcando dessa forma sua condição de elemento da confiança do presidente, não deixaram dúvidas quanto à procedência da solução divulgada.

A candidatura Figueiredo, no entanto, enfrentava dois obstáculos ponderáveis: a resistência oposta pelo grupo do general Sílvio Frota, ministro do Exército, que disputava a indicação, e a colocação do chefe do SNI no Almanaque do Exército, que não lhe facilitava a conquista imediata da quarta estrela, considerada indispensável para o acesso à presidência da República. Frota chegou a constituir, na Câmara, um grupo de aproximadamente 40 deputados, liderado por Sinval Boaventura, de Minas, e Siqueira Campos, de Goiás, que tomaram posição em defesa de sua candidatura, denunciando a existência de comunistas em vários escalões da administração pública federal. A atuação do chamado “grupo frotista” no Congresso estabeleceu choques sucessivos no relacionamento entre o ministro do Exército e o presidente da República até que, em 12 de outubro de 1977, Geisel resolveu destituir Frota, numa operação que mobilizou todo o Alto Comando e criou a possibilidade de um confronto militar entre os dois lados. Com a exoneração de Frota, a primeira barreira foi removida. Restava agora melhorar a posição de Figueiredo no Almanaque, visando sua promoção a general-de-exército.

Em 25 de novembro, o Alto Comando reuniu-se em Brasília sob a presidência do novo ministro do Exército, general Fernando Bethlem, para examinar a lista de promoções, mas não chegou a tratar da promoção de Figueiredo. Quatro dias depois, em 29 de novembro, Geisel ratificou sua concordância com a escolha do chefe do SNI para seu sucessor. O general Hugo de Abreu, que não estava de acordo com esse resultado, pediu demissão da chefia do Gabinete Militar, em 3 de janeiro de 1978, sendo substituído pelo general Gustavo Morais Rego. Geisel conseguira, portanto, superar as principais resistências no setor militar. Daí em diante, a candidatura Figueiredo passou a ser assunto de interesse básico da área política. Em 22 de fevereiro, o candidato concedeu entrevista aos jornais manifestando-se favorável à privatização de certas empresas estatais e admitindo que a anistia não poderia ser ampla nem irrestrita e que o desenvolvimento político deveria ser conduzido “de forma lenta e gradual”.

Promovido a general-de-exército em 31 de março seguinte, Figueiredo teve novo contato com a imprensa em 6 de abril, dois dias antes da convenção da Arena que homologaria sua candidatura. Declarou então reconhecer a existência de uma aspiração nacional a favor da abertura política, criticou a massificação do ensino e a atuação política dos estudantes fora dos campi universitários, admitiu a necessidade de uma reforma agrária “precedida de ampla conscientização do homem do campo”, enfatizou a segurança do Estado em relação aos direitos dos cidadãos e defendeu a eleição indireta para a presidência.

Em 8 de abril, a sétima convenção nacional da Arena, reunida em Brasília sob a presidência do deputado Francelino Pereira, homologou a chapa Figueiredo-Aureliano Chaves com 775 votos, computando-se ainda 25 sufrágios em branco e dois nulos. Mesmo os deputados do grupo frotista acabaram compondo-se com Figueiredo. Saudado pelo deputado Henrique Córdova, de Santa Catarina, o candidato arenista discursou defendendo a ação do Estado nos setores da economia considerados vitais para a segurança nacional. Acentuou também que o conjunto de medidas de exceção, tomadas “por imperativos conjunturais, sobretudo de segurança, não destruiu o ideário de inspiração essencialmente democrática da Revolução de 31 de março de 1964”.

Para cumprir o dispositivo constitucional relativo à desincompatibilização, deixou a chefia do SNI em 15 de junho de 1978, sendo substituído pelo general-de-brigada Otávio de Aguiar Medeiros, seu antigo assistente no tempo em que chefiava o Gabinete Militar do governo Médici. Fixou em seguida a sede de sua campanha no hotel Aracoara, em Brasília, onde passou a trabalhar. Sua candidatura foi contestada pelo MDB, que, integrado inicialmente na Frente de Redemocratização Nacional, da qual faziam parte dissidentes da Arena liderados pelo senador mineiro Magalhães Pinto e personalidades sem vinculação partidária, levantou a candidatura oposicionista do general Euler Bentes Monteiro, antigo chefe do Departamento de Material Bélico do Exército. Como a Arena, posteriormente, fechou a questão em torno do nome de seu candidato, os dissidentes, ameaçados com a perda do mandato, se retraíram, mas o MDB continuou sustentando Euler, que teve como companheiro de chapa o senador gaúcho Paulo Brossard. Realizado o pleito indireto em 15 de outubro de 1978 sob a presidência do senador Petrônio Portela, Figueiredo obteve 355 votos contra 226 dados ao candidato oposicionista. No mesmo dia, Figueiredo lançou uma proclamação ao povo brasileiro, na qual afirmou: “Reconheço que a disputa é própria dos regimes abertos, das instituições sadias. Travado o pleito, porém, quero apresentar ao povo a mensagem que é a própria expressão do caráter nacional: a minha mão estendida em conciliação.”

A revogação do AI-5 vinha sendo apontada pelo MDB e por outros segmentos oposicionistas como a única opção capaz de propiciar a volta segura ao regime democrático, porque consistia na remoção do principal instrumento de arbítrio, cuja vigência inutilizava, na prática, o exercício da livre representação popular. Geisel extinguiu o AI-5 a contar de 1º de janeiro de 1979, mas introduziu no texto da Constituição as chamadas “salvaguardas”, no sentido de não permitir que o processo da abertura tomasse proporções muito amplas. Além de restringir as categorias profissionais beneficiadas pelo direito de greve, excluindo aquelas mais diretamente ligadas à prestação de serviço público, elas instituíam o “estado de emergência”, facultando ao governo federal intervir em qualquer área do território nacional, independentemente de audiência ao Congresso, para controlar focos de subversão.

Na presidência da República

Em 19 de janeiro, já com o país livre do AI-5, o presidente eleito anunciou a composição de sua equipe de governo: Justiça, senador Petrônio Portela; Marinha, almirante Maximiano da Fonseca; Exército, general Válter Pires; Relações Exteriores, embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro; Fazenda, Carlos Rischbieter; Transportes, Eliseu Resende; Agricultura, Antônio Delfim Neto; Educação e Cultura, Eduardo Portela; Trabalho, Murilo Macedo; Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos; Saúde, Mário Augusto de Castro Lima; Indústria e Comércio, João Camilo Pena; Minas e Energia, César Cals; Interior, Mário Andreazza; Comunicações, Haroldo Correia de Matos; Previdência e Assistência Social, Jair Soares; Gabinete Militar, general Danilo Venturini; Gabinete Civil, general Golberi do Couto e Silva; Serviço Nacional de Informações, general Otávio Medeiros, e Secretaria de Planejamento, Mário Henrique Simonsen.

Figueiredo tomou posse em 15 de março de 1979 perante o Congresso, reafirmando seu propósito de “fazer desse país uma democracia”.

Política interna

Desde o início, o novo governo deixou clara sua intenção de conduzir a abertura em um ritmo compatível com a segurança do regime. Das tensões decorrentes da aplicação dessa política e das dificuldades crescentes na área econômica resultaram, desde logo, modificações nos quadros de primeiro e segundo escalões da administração federal. Em julho de 1979, foi criado o Ministério Extraordinário para a Desburocratização, chefiado por Hélio Beltrão, com o objetivo de descongestionar os canais da máquina governamental para favorecer o cidadão comum e as classes empresariais, cujos negócios freqüentemente ficavam na dependência de tramitações complexas e demoradas no âmbito do aparato estatal.

A primeira demissão no governo atingiu em 10 de agosto de 1979 o ministro-chefe da Secretaria de Planejamento, Mário Henrique Simonsen, fato interpretado pela imprensa como decorrente de desencontros com seu colega da Agricultura, Antônio Delfim Neto, que passou a ocupar seu lugar. Para esta última pasta, foi nomeado Amauri Stábile.

Em 28 de agosto, Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, de iniciativa do governo e aprovada pelo Congresso, anistiando todos os cidadãos punidos por atos de exceção desde 9 de abril de 1964, data da edição do AI-1. O benefício atingiu estudantes, professores e cientistas afastados das instituições de ensino e pesquisa nos anos anteriores, mas o reaproveitamento de servidores civis e militares ficou subordinado à decisão de comissões especiais criadas no âmbito dos respectivos ministérios para estudar cada caso. Outra restrição dizia respeito às pessoas condenadas pelos chamados “crimes de sangue”, atos terroristas cometidos no período em que grupos de esquerda usaram a luta armada para combater o regime militar. Segundo o Superior Tribunal Militar (STM), havia então 52 presos políticos, dos quais 17 foram imediatamente libertados e 35 permaneceram à espera de uma análise mais demorada dos seus processos. Entre presos, cassados, banidos, exilados ou simplesmente destituídos dos seus empregos, a Lei de Anistia beneficiou 4.650 pessoas.

Em setembro, já amadurecia nos círculos governamentais o projeto de extinção do bipartidarismo, concebido, segundo se afirmava, por Golberi com o objetivo de evitar o caráter plebiscitário das eleições e impedir que o governo ficasse em posição difícil no colégio eleitoral que elegeria o próximo presidente da República. A reformulação partidária, no entendimento do governo, desaconselhava a realização de eleições municipais em novembro de 1980. O próprio presidente chegou a declarar que a prorrogação, por mais dois anos, dos mandatos dos prefeitos e vereadores seria “uma conseqüência natural das reformas político-partidárias em curso”. As bancadas do MDB na Câmara e no Senado fizeram cerrada oposição à medida, levando o governo a apressar a elaboração da nova Lei Orgânica dos Partidos, cujo texto foi entregue em outubro ao presidente por Petrônio Portela. Previa-se a extinção da Arena e do MDB, a manutenção da sublegenda apenas em nível municipal e a permissão das coligações, tidas como normais e imprescindíveis no sistema pluripartidário.

Sete dias depois, em 17 de outubro de 1979, Figueiredo enviou mensagem ao Congresso propondo a extinção da Arena e do MDB e a formação, em 18 meses, de novos partidos, que deveriam montar diretórios em, pelo menos, 1/5 dos municípios de nove estados. A mensagem colocou o governo sob fogo implacável do MDB, que lutou desesperadamente contra sua extinção, embora alguns políticos, tanto governistas quanto oposicionistas, cujas afinidades eram marcadas pela prudência e pela moderação, começassem a confabular sobre a hipótese de uma terceira agremiação, que, não sendo eminentemente situacionista, não seria também radicalmente contestadora.

Com a extinção do bipartidarismo, aprovada em novembro, as novas forças políticas começaram a constituir-se. A maior parte dos antigos emedebistas filiou-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), sob a presidência do deputado paulista Ulisses Guimarães. Dissidentes da antiga Arena, com o senador emedebista Tancredo Neves, criaram o Partido Popular (PP), que tinha como presidente de honra o senador arenista Magalhães Pinto. O líder sindicalista Luís Inácio da Silva, o Lula, com o apoio de intelectuais, grupos socialistas e de algumas correntes ligadas às comunidades eclesiais de base, fundou o Partido dos Trabalhadores (PT). A ex-Arena, acrescida de políticos oriundos do antigo MDB, passou a chamar-se Partido Democrático Social (PDS), presidido pelo senador José Sarney. Dois grupos, liderados pelo ex-governador gaúcho Leonel Brizola e pela ex-deputada Ivete Vargas, disputavam a sigla do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em maio de 1980, favoreceu Ivete, levando Brizola a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), completando assim o espectro partidário que se manteria até fevereiro de 1982.

Enquanto o Congresso experimentava essa recomposição política, Figueiredo começou a efetuar novas modificações em sua equipe de governo. O titular da pasta da Saúde, Mário Augusto de Castro Lima, pediu demissão em novembro, sendo substituído pelo médico piauiense Valdir Arcoverde.

Em visita a Florianópolis, em 1º de dezembro, o presidente foi surpreendido por uma ruidosa manifestação estudantil de hostilidade que se desdobrou em conflitos entre a polícia e populares. O episódio ganhou grande repercussão e levou ao enquadramento de diversos manifestantes na Lei de Segurança Nacional, pois, segundo o próprio Figueiredo, não era possível “aceitar insultos” impunemente.

Janeiro de 1980 foi um mês de grandes alterações na equipe governamental. Com a morte de Petrônio Portela no dia 6, o deputado mineiro Ibrahim Abi-Ackel assumiu a pasta da Justiça. No dia 17, Carlos Rischbieter pediu demissão do Ministério da Fazenda por divergências com Delfim Neto, sendo substituído por Ernâni Galveias.

Nesse mês, começou também uma onda terrorista de direita, voltada para impedir que o país retornasse ao regime democrático. Nos meses seguintes, ocorreram 25 atentados sem vítimas, em sua maioria explosões de bombas contra bancas de jornais que vendiam periódicos de orientação esquerdista, chamados de “imprensa alternativa”. A situação se agravou com a detonação, em 27 e 28 de agosto, de cartas-bombas enviadas ao vereador do Rio de Janeiro Antônio Carlos de Carvalho, do PMDB, e a Eduardo Seabra Fagundes, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em conseqüência desses atentados, o jornalista José Ribamar de Freitas, chefe de gabinete do vereador, ficou gravemente ferido e dona Lida Monteiro da Silva, secretária da OAB, faleceu. Imediatamente, os presidentes de todos os partidos reuniram-se no Congresso para manifestar solidariedade à luta contra o terrorismo, chegando a cogitar de uma visita ao presidente, desaconselhada por Golberi. Diante disso, as lideranças partidárias enviaram, por intermédio de Jarbas Passarinho, líder do governo no Senado, uma resolução de apoio ao governo no combate ao terrorismo. A morte de dona Lida indignou todas as correntes de opinião do país. Foi, depois de 1964, o primeiro movimento unânime de condenação ao terrorismo, unindo partidos políticos, sindicatos, imprensa, organismos universitários e outros segmentos representativos da sociedade. O presidente da República, em discurso pronunciado em Uberlândia (MG), exortou dramaticamente os terroristas a que escolhessem a ele próprio como alvo, em vez das vítimas inocentes que vinham sendo abatidas.

Em setembro, Figueiredo obteve a prorrogação, por dois anos, dos mandatos dos prefeitos e vereadores eleitos em 1976. Apesar da obstrução do PMDB, a emenda prorrogacionista apresentada pelo deputado Anísio de Sousa, do PDS de Goiás, foi aprovada pelo Congresso no dia 4. Em 13 de novembro o Congresso, com a presença de 420 deputados e 67 senadores, aprovou o projeto do governo restaurando o princípio de eleições diretas para os governos estaduais e extinguindo a figura do senador eleito por via indireta, assegurando os mandatos dos parlamentares em exercício. A proposta de emenda constitucional do governo prometia ainda “revisão dos estatutos legais pertinentes à propaganda eleitoral pelo rádio e pela televisão, de forma a compatibilizá-la com o sistema da eleição direta”. Tratava-se de promessa de revisão da Lei Falcão, que limitava drasticamente a propaganda eleitoral pelos meios eletrônicos de comunicação, revisão que terminou por não ser efetuada para o pleito de 1982.

Os fatos políticos mais importantes dos dois últimos meses do ano foram as novas substituições no primeiro escalão do governo. Em 27 de novembro o ministro Eduardo Portela, da Educação, desentendeu-se com Delfim, que vinha dificultando a liberação de recursos para pagamento de salários dos professores universitários em greve, demitiu-se e foi substituído pelo general Rubem Ludwig, antigo assessor de imprensa no governo Geisel. Em dezembro, o ministro Said Farhat, da Secretaria de Comunicação Social, revelou que o governo, apesar do apoio que dava a Nélson Marchezan para presidente da Câmara, não fazia maiores objeções à vitória de Antônio Mariz, dissidente do partido situacionista e candidato com apoio da oposição. Farhat não conseguiu sustentar-se e pediu demissão.

Em 1981, o terrorismo voltou a tentar comprometer a continuidade do projeto de abertura política. Duas bombas explodiram na noite de 30 de abril no Riocentro, na Barra da Tijuca, onde o Centro Brasil Democrático (Cebrade) promovia um show de música popular em comemoração ao Dia do Trabalho, com a presença de cerca de 20 mil pessoas. Uma das explosões ocorreu num carro particular que manobrava no estacionamento, matando um dos ocupantes, o sargento Guilherme Pereira do Rosário, e ferindo gravemente o motorista, capitão Wilson Luís Chaves Machado, ambos do CODI do I Exército. A imprensa e a opinião pública se convenceram de que as vítimas eram os próprios terroristas, mas o general Gentil Marcondes, comandante do I Exército, divulgou a versão de que ambos cumpriam “missão de rotina” e determinou que o sepultamento do sargento fosse com honras militares.

A crise subseqüente chegou a ameaçar a estabilidade do governo e foi solucionada à base de mútuas concessões. Não houve punição ostensiva aos militares integrantes da “linha dura” e o I Exército pôde fazer seu próprio inquérito para concluir que os dois militares haviam sido “vítimas de uma armadilha ardilosamente colocada no carro do capitão”. Em compensação, não ocorreu a partir daí outro atentado terrorista significativo. Essa solução, entretanto, não agradou a todos os membros do governo. Em 6 de agosto, alegando “divergências irreconciliáveis”, Golberi pediu demissão da chefia do Gabinete Civil, que exercia desde o início do governo Geisel e que o projetava como principal articulador do processo de distensão política. Para explicar essa atitude, a imprensa mencionou sua divergência em relação ao resultado do inquérito sobre o atentado do Riocentro e sua discordância quanto aos aumentos dos descontos salariais em favor da Previdência, solução adotada pelo governo para cobrir os déficits do sistema. Golberi foi substituído por Leitão de Abreu, que exercera o cargo no governo Médici.

A tensão vivida por Figueiredo nesse período se refletiu em seu estado de saúde. Em 18 de setembro, no Rio, foi atingido por um distúrbio cardíaco que forçou sua internação no Hospital dos Servidores do Estado. No dia seguinte, seus médicos impuseram-lhe um repouso estimado em oito semanas, forçando a transferência temporária do governo, no dia 23, para o vice Aureliano Chaves. Figueiredo regressou a Brasília em 14 de outubro e, três dias depois, embarcou para Cleveland, nos Estados Unidos, onde pretendia submeter-se a uma intervenção cirúrgica, julgada afinal desnecessária pelos médicos americanos.

Regressou ao Brasil em 23 de outubro e, em 12 de novembro, reassumiu o governo. Nesse período, o Congresso, contrariando as expectativas da liderança do PDS, conseguira derrubar o instituto da sublegenda para as eleições aos governos estaduais. Com o regresso do presidente, o comando pedessista resolveu reviver a questão para tentar preservar os interesses eleitorais do partido. Entretanto, depois de várias reuniões do Conselho de Desenvolvimento Político, ficou decidido que não havia mais condições para voltar atrás no caso das sublegendas para governadores, mas que o governo federal deveria acionar outras formas de retaliação à oposição. Em novembro, o Congresso recebeu mensagem do Executivo estabelecendo a vinculação total de votos, segundo a qual o eleitor seria obrigado a sufragar a chapa integral de um único partido para os cargos de governador, senador, deputado federal, deputado estadual, prefeito e vereador. Qualquer discrepância — um voto sequer em candidato de outro partido — implicaria a anulação. A mesma mensagem proibiu a coligação de partidos, em qualquer nível, e determinou a elevação do território de Rondônia à categoria de estado, concedendo-lhe assim o direito de eleger três senadores e seis deputados federais.

Figueiredo sancionou a lei criando o novo estado em 22 de dezembro de 1981. Quanto aos projetos que estabeleciam a vinculação de votos e a proibição das coligações, a obstrução da oposição dificultou o quórum regimental tentado pelo PDS, razão pela qual a aprovação ocorreu em 10 de janeiro de 1982, por decurso de prazo. Em resposta, o PP iniciou um processo de incorporação ao PMDB, visando assim impedir a completa fragmentação das correntes oposicionistas. A incorporação dos dois partidos efetivou-se no mês seguinte.

Janeiro de 1982 iniciou-se com grandes eventos transformadores da legislação eleitoral, definidos pela oposição como recursos casuísticos destinados a sustentar a maioria pedessista no Congresso e nos governos estaduais. Naquele mês foi sancionada a Lei das Inelegibilidades, tornando elegíveis os punidos pelos atos institucionais, assim como os estudantes e professores atingidos pelo Decreto-Lei nº 477 e os dirigentes sindicais destituídos por atos administrativos. A oposição tentou restabelecer a elegibilidade dos condenados pela Lei de Segurança Nacional, desde que da sentença não constasse, como pena acessória, a inelegibilidade, mas Figueiredo vetou essa proposta.

Em março, o presidente enviou ao Congresso projeto que extinguia a validade do voto destinado pelo eleitor apenas à legenda partidária e reabria o prazo de filiação para os ex-integrantes do PP descontentes com a incorporação ao PMDB que desejassem ingressar em outros partidos. O projeto foi aprovado dois meses depois por decurso de prazo, em virtude da obstrução oposicionista.

Em abril, Figueiredo decidiu que os prefeitos dos municípios considerados de interesse para a segurança nacional só poderiam ser exonerados mediante aprovação do presidente, medida considerada pela oposição como voltada para diminuir a autonomia do governador do estado do Rio, Chagas Freitas, do PMDB.

Em maio, foi enviada ao Congresso proposta de emenda constitucional alterando a composição do colégio eleitoral responsável pela eleição do presidente da República, instituindo o voto distrital misto para 1986, suprimindo exigências para a formação de partidos e restituindo ao Legislativo algumas das prerrogativas que havia perdido depois de abril de 1964. Esse conjunto de medidas passou a ser conhecido como “emendão”. Pouco depois, ocorreram mais duas substituições no governo. Eliseu Resende, ministro dos Transportes, e Jair Soares, da Previdência, desincompatibilizaram-se para se candidatar aos governos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul pelo PDS, sendo substituídos por Cloraldino Severo e Hélio Beltrão.

Em 25 de junho, o “emendão” foi aprovado pelo Congresso, estabelecendo as seguintes medidas: o colégio eleitoral seria constituído de todos os integrantes do Congresso, mais seis deputados de cada Assembléia Legislativa indicados pelo partido majoritário; a aprovação das emendas constitucionais passaria a depender do apoio de 2/3 da Câmara e 2/3 do Senado; o sistema distrital misto seria aplicado nas eleições de 1986 para a Câmara e assembléias legislativas; os prazos para desincompatibilização seriam reduzidos para quatro e seis meses; os prefeitos e vereadores eleitos em novembro de 1982 teriam mandato de seis anos; as câmaras dos municípios com mais de um milhão de habitantes passariam a ser compostas de 33 vereadores, em vez de 21; a eleição do próximo presidente da República seria em 15 de janeiro de 1985; os partidos não precisariam atingir nas eleições de 1982 o índice de 5% do eleitorado nacional e 3% em pelo menos nove estados. Além disso, algumas das prerrogativas do Legislativo foram restauradas. Por 2/3 dos votos dos senadores e deputados, o Congresso poderia assumir a iniciativa de autoconvocar-se; apenas os delitos contra a honra poderiam ameaçar a inviolabilidade do mandato parlamentar, aplicando-se a Lei de Segurança Nacional somente para os crimes cometidos fora da tribuna; o número de deputados federais aumentaria de 420 para 479, estabelecendo-se que nenhum estado poderia ter mais de 55 representantes e elevando-se as bancadas dos territórios de dois para quatro parlamentares. O decurso de prazo foi igualmente aliviado. O projeto de interesse do Executivo que não fosse apreciado em 45 dias ingressaria em pauta preferencial nas cinco sessões seguintes, ao fim das quais seria aprovado por decurso de prazo.

O “emendão” determinou ainda que o número de sessões da Câmara e do Senado não seria limitado, todo pedido de informação formulado por parlamentares seria imediatamente respondido pelo Executivo, as comissões parlamentares de inquérito poderiam estender suas investigações a todo o país e os parlamentares federais que viajassem para o exterior em missão diplomática ou cultural não dependeriam mais de autorização prévia do presidente da República.

Em agosto, ocorreram novas mudanças no governo. O general Danilo Venturini saiu da chefia do Gabinete Militar para assumir o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários. Para seu lugar foi designado o general Rubem Ludwig, substituído na Educação e Cultura pela professora paulista Ester Figueiredo Ferraz, a primeira mulher no Brasil a ocupar o cargo de ministro.

Ainda em agosto, Figueiredo adicionou outras inovações ao processo eleitoral. Suprimiu da cédula de votação a legenda partidária e os nomes dos candidatos majoritários, suscitando novos protestos das lideranças oposicionistas. Outubro e novembro foram destinados pelo presidente da República a percorrer o país em propaganda eleitoral dos candidatos do PDS aos governos estaduais. Em fins de outubro, durante um comício em Volta Redonda (RJ), o chefe do governo, na presença do senador Amaral Peixoto e do candidato pedessista Moreira Franco, prestou homenagem pública a Alzira Vargas do Amaral Peixoto, simbolizando o desfecho de uma animosidade de 52 anos, uma vez que o pai do presidente fora adversário ferrenho de Getúlio Vargas, pai de Alzira, durante muitos anos. Com as eleições de 15 de novembro de 1982, o projeto de distensão deu um importante passo à frente. A oposição conquistou maioria na Câmara, mas o PDS manteve seu controle sobre o Senado, obteve 12 dos 22 governos estaduais e garantiu maioria governista no Colégio Eleitoral encarregado de escolher o sucessor de Figueiredo.

Após a vitória de Leonel Brizola para o governo do estado do Rio de Janeiro nesse pleito, o general Euclides Figueiredo, então comandante militar da Amazônia, assim reagiu ao resultado das urnas: “Brizola é um sapo que a gente engole, digere e expele na hora certa.” O governador preferiu ignorar, diplomaticamente, a grosseria do irmão do presidente. Ao contrário do exilado da década de 1960, o Brizola pós-exílio revelava uma face conciliadora que chegou a surpreender e constranger seus companheiros de partido. Empossado, propôs a prorrogação por dois anos do mandato de Figueiredo. Segundo sua proposição, o sucessor seria eleito então pelo voto direto. A proposta foi criticada por outros líderes oposicionistas — se aprovada, beneficiaria Brizola e os demais governadores, cujos mandatos terminariam em 1987, no mesmo ano do fim da gestão alongada de Figueiredo.

Em 14 de julho de 1983 Figueiredo licenciou-se para se submeter a uma cirurgia para colocação de pontes de safena numa clínica em Cleveland, nos Estados Unidos, permanecendo 44 dias fora. Segundo a imprensa, Figueiredo teria ficado magoado com algumas atitudes do vice-presidente Aureliano Chaves — como, segundo ele, buscar vender uma falsa imagem de austeridade e contropô-la a hábitos dispendiosos do presidente licenciado — e sobretudo com os elogios dos ministros militares à eficiência e disposição para o trabalho de seu substituto.

A partir desse período se iniciariam os debates em torno da sucessão.

A política trabalhista e social

A política de distensão conduzida pelos governos Geisel e Figueiredo não modificou a estrutura sindical e a legislação trabalhista, que colocavam as entidades e os movimentos reivindicativos dos trabalhadores sob tutela e vigilância do governo. Mesmo assim, a abertura influenciou no sentido de uma retomada das atividades sindicais duramente reprimidas depois de 1964. Os sindicatos dos metalúrgicos do ABC — especialmente o de São Bernardo e Diadema — se destacaram no contexto nacional, organizando, a partir de 1978, sucessivas greves que paralisaram a indústria de ponta. Na época da posse, Figueiredo enfrentou uma greve de 160 mil metalúrgicos paulistas que resultou na intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos envolvidos. Mesmo assim, trabalhadores, patrões e governo conseguiram chegar a um acordo que incluiu a volta das direções cassadas.

Em maio, Figueiredo atendeu uma antiga reivindicação dos inquilinos, sancionando a lei que terminou com a chamada “denúncia vazia”, por meio da qual os proprietários de imóveis podiam despejar seus ocupantes sem alegar motivo relevante. Em outubro, pressionado pelo crescimento da taxa de inflação e dos movimentos trabalhistas, o governo promulgou uma nova lei salarial, introduzindo o reajuste semestral, maiores índices para os trabalhadores de menores rendimentos e a incorporação de uma taxa de incremento de produtividade no cálculo do salário. Considerada uma vitória do movimento sindical, essa lei vigoraria até janeiro de 1983, quando as vicissitudes da crise econômica e as exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) levariam o governo a reformulá-la.

Em abril de 1980, nova greve paralisou as indústrias metalúrgicas do ABC durante mais de um mês, provocando uma escalada repressiva que levou à ocupação militar de São Bernardo, à interdição dos sindicatos e à prisão de Luís Inácio da Silva, o Lula, e mais 29 líderes sindicais, enquadrados posteriormente na Lei de Segurança Nacional. Libertados em 16 de maio, foram condenados em primeira instância a penas entre três e quatro anos de prisão, mas aguardaram em liberdade o recurso ao STM, que anulou a sentença anterior por considerar a Justiça Militar incompetente para julgar a greve.

Em 10 de dezembro de 1981, Figueiredo sancionou a lei que estendia o direito ao usucapião para quem ocupasse, com fins produtivos e por mais de cinco anos, glebas abandonadas. Cinco dias depois, três mil agricultores estabelecidos em Rondônia receberam do governo títulos de propriedade. Entretanto, o agravamento dos conflitos de terra nas regiões Norte e Nordeste levou o presidente a criar, em 18 de agosto de 1982, o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, que passou a ser conhecido como Ministério da Terra. O novo organismo passou a coordenar a ação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT) e do Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas (Gebam), no sentido de solucionar conflitos entre posseiros e supostos proprietários nas áreas de maior tensão social.

Com o agravamento da crise econômica a partir de 1983, o governo passou a sofrer pressão dos trabalhadores, que, por meio de greves, como a dos petroleiros das refinarias de Paulínia (SP) e Mataripe (BA) e dos 70 mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, protestavam contra a manipulação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), base dos reajustes salariais, e das seguidas mudanças da política salarial. Ao lado das reivindicações econômicas, apareceram as manifestações políticas, como a dos grevistas que pediam imediato rompimento com o FMI e a moratória internacional. As greves se alastraram pela Grande São Paulo e o governo interveio e afastou dirigentes. Na greve geral de julho de 1983, só na Grande São Paulo houve mais de 800 prisões e violência policial e o governo interveio em mais dois sindicatos, o dos bancários e o dos metroviários.

Em agosto, parte do movimento sindical se reuniu em São Bernardo do Campo, no I Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), decidindo pela criação e organização da Central Única dos Trabalhadores (CUT), oficialmente fundada nessa ocasião. A CUT reuniu, em sua fundação, cerca de quinhentas entidades sindicais, e experimentaria um considerável processo de expansão nos anos seguintes, tendo dirigido as principais campanhas instauradas pelo movimento sindical desde então.

Relações com a Igreja Católica

Os conflitos entre a Igreja Católica e o regime instituído pelo movimento de março de 1964 agravaram-se no governo Figueiredo a partir de agosto de 1980, quando se deu a aprovação do Estatuto dos Estrangeiros, que definia medidas rígidas de repressão às atividades políticas dos estrangeiros e atingia, particularmente, o chamado clero progressista, pois 5.044 dos 12.664 padres em atividade no Brasil eram originários de outros países, especialmente da Itália.

O primeiro conflito entre o governo Figueiredo e a Igreja ocorreu em Ribeirão (PE). O padre Vito Miracapillo recusou-se a celebrar missa comemorativa da data de 7 de setembro e foi expulso do país por decreto presidencial em outubro de 1980. A medida foi temporariamente sustada por uma liminar concedida pelo ministro Djaci Falcão, do Supremo Tribunal Federal (STF), mas em 30 de novembro o próprio STF, por 11 votos a zero, assegurou a validade legal do processo de expulsão, de modo que o padre Vito não teve outra opção senão deixar o país.

Em julho de 1981 o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, manteve entendimentos com o presidente e o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Ivo Lorscheiter e dom Luciano Mendes de Almeida, ficando decidido que os padres e ministros leigos estrangeiros teriam registro provisório, renovável, com direito a permanência. Todavia, em fins de agosto, novo choque se verificou com a prisão dos padres franceses Aristides Camio e François Gouriou pela Polícia Federal em São Geraldo do Araguaia (PA). Ambos trabalhavam na Comissão Pastoral da Terra, com 13 posseiros que, em defesa das propriedades de que desfrutavam, haviam se envolvido em conflito armado. Foram todos enquadrados na Lei de Segurança Nacional e, em 22 de junho de 1982, o Conselho Permanente de Justiça da 8ª Circunscrição Judiciária Militar, sediada em Belém, condenou Camio a 15 anos de prisão e Gouriou a dez anos. O advogado Heleno Fragoso recorreu da sentença e, em 3 de dezembro, o Superior Tribunal Militar reduziu as penas de Camio e Gouriou para dez e oito anos.

Política econômica

O montante da dívida externa, o déficit do balanço de pagamentos, a tendência à queda na taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e o retorno da inflação a níveis inéditos desde 1964 foram os principais problemas enfrentados pelo novo governo, forçado a atuar em meio a uma grave crise internacional. Em julho de 1979, Figueiredo advertiu a nação sobre a necessidade de adotar “uma nova economia de guerra” e anunciou o congelamento das importações de petróleo e a criação do Conselho Nacional de Energia, presidido por Aureliano Chaves e composto por oito ministros, os presidentes do Conselho Nacional de Petróleo, da Petrobras e da Eletrobrás e “três cidadãos de reputação ilibada e notório saber no campo da energia”. A partir daí, o governo intensificou os programas de pesquisa e investimento em fontes energéticas alternativas — especialmente o Proálcool — e adotou uma agressiva política de prospecção de petróleo na plataforma submarina, conseguindo dobrar a produção de óleo cru de 160 mil para 320 mil barris diários entre 1979 e 1982.

Ainda em julho de 1979, foi anunciado um plano de privatização de empresas do governo não ligadas a áreas de interesse para a segurança nacional e capazes de passar à administração do empresariado brasileiro, procurando assim combater o gigantismo estatal freqüentemente denunciado pela imprensa.

O governo conseguiu obter altas taxas de crescimento do PIB em 1979 e 1980 (6,4% e 7,9%), mas perdeu o controle sobre a inflação, que saltou de 77% para o elevado índice de 110% nesse período, e assistiu a uma grave deterioração na relação entre o valor das exportações e o montante da dívida externa, de 54 bilhões de dólares. O quadro se agravou durante o ano de 1981, quando a alta taxa de inflação (95%) e o aumento da dívida para 61 bilhões de dólares se combinaram com um crescimento negativo do PIB (-1,9%), que inaugurava no Brasil a “estagflação”, tão temida pelos economistas de todas as partes do mundo. No segundo semestre desse ano, a opinião pública, já assustada com a recessão, tomou conhecimento de um enorme déficit no sistema de previdência, que resultou, em dezembro, no aumento das contribuições compulsórias de empregadores e empregados através do chamado “pacote da Previdência”, duramente criticado pela oposição e o movimento sindical.

A necessidade de captar recursos para o desenvolvimento de programas governamentais nas áreas de produção agrícola, educação, saúde e habitação levou à criação, em 25 de maio de 1982, do Finsocial, constituído a partir de 0,5% da renda bruta das empresas públicas e privadas, incluindo instituições financeiras e seguradoras. O BNDE foi encarregado de gerir a aplicação desse fundo, passando a denominar-se Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Para enfrentar o crescente endividamento externo, o governo acelerou nesse período projetos de exportação de matérias-primas e produtos primários, investindo maciçamente, com apoio de empresas multinacionais, na exploração das enormes reservas de ferro, manganês e bauxita na serra de Carajás, no sul do Pará. O projeto previa ainda o aproveitamento dos recursos florestais e hidrelétricos da região e a expansão da produção agrícola local, mas a forma e a intensidade da participação de capitais estrangeiros foram motivo de intensas críticas no Congresso, na imprensa e em outras áreas da sociedade. Em agosto de 1982, o governo interveio para salvar um outro empreendimento de exploração e exportação dos recursos naturais da Amazônia, patrocinando a compra, por 23 empresas brasileiras, do Projeto Jari, que há vários anos estava sendo implantado em extensa área entre o Pará e o Amapá pelo empresário americano Daniel Ludwig. Pouco depois, em 1º de setembro, os contratos de risco com empresas estrangeiras para a prospecção de petróleo foram estendidos a todo o território nacional, inclusive a plataforma submarina, exceto onde a Petrobras já desenvolvia suas atividades. Ainda no terreno energético, foi completado em novembro de 1982 o enchimento do reservatório de Itaipu, maior hidrelétrica do mundo, na fronteira entre Brasil e Paraguai, e orçada em 13 bilhões de dólares, parcialmente financiados com recursos externos. A usina entraria em operação em 1983, apesar da queda da demanda de energia elétrica nos dois anos anteriores, devido à recessão econômica.

Em fins de novembro, o ministro da Fazenda, Ernâni Galveias, confirmou que o governo estava negociando sigilosamente com o FMI desde setembro um empréstimo de 4,8 bilhões de dólares para pagar os juros da dívida externa, avaliada em 88 bilhões de dólares. Em 20 de dezembro, Galveias, Delfim Neto e Carlos Geraldo Langoni (presidente do Banco Central) se reuniram em Nova Iorque com representantes de 132 bancos estrangeiros credores para comunicar oficialmente a impossibilidade de pagar a amortização da dívida em 1983.

Essa situação levou a uma série de modificações na política econômica e à assinatura de uma carta de intenções com o FMI, prevendo uma drástica redução dos investimentos públicos, maiores facilidades para a remessa de lucros para o exterior, corte de subsídios a mercadorias e serviços essenciais e diminuição nos índices de reajustes salariais dos trabalhadores. O Conselho Monetário Nacional elaborou em seguida a “Programação do setor externo para 1983”, subordinando explicitamente os rumos da política econômica ao gerenciamento da dívida externa. Pretendendo reduzir as importações de 20 bilhões de dólares para 17 bilhões de dólares, o governo determinou cortes de 29% nas compras externas do setor público e de 22% do setor privado, mesmo à custa de afetar ainda mais a produção. Em seguida, afirmando necessitar conter o desemprego, modificou a forma de cálculo dos reajustes salariais, punindo a classe média e os assalariados de rendas mais baixas. Também o programa nuclear foi afetado pelas medidas de contenção econômica. O orçamento da Nuclebrás foi reduzido em valores reais, a construção das usinas de Angra-II e Angra-III, retardada, e o projeto das demais centrais nucleares, adiado. O ano de 1982 fechou com uma inflação de 100%, um crescimento do PIB de -1% e reclamações generalizadas contra as taxas de juros — as mais altas do mundo — que continuavam sendo cobradas pelos bancos.

Em 1983 a situação econômica deteriorou-se bastante. O ministro do Planejamento, Delfim Neto, passou a personalizar a crise econômica. Sua passagem por essa pasta foi marcada por um descontentamento generalizado de diferentes segmentos da sociedade, que buscavam o seu afastamento. “Estamos a fim da cabeça do Delfim” foi um dos versos mais proclamados em todas as manifestações políticas nesse período. A política econômica do governo Figueiredo teve como resultados mais visíveis os quatro anos consecutivos de uma inflação de aproximadamente 100%, a grande recessão e o agravamento do quadro de miséria, além da maior visibilidade assumida pelo peso da dívida externa. Política econômica sem credibilidade, governo sem credibilidade. Ainda assim, Delfim manteve-se no cargo até o fim do mandato presidencial, recebendo total apoio de Figueiredo e de outros setores militares, como o grupo ligado ao ex-presidente Médici. As críticas à sua atuação partiam de adversários históricos, como os sindicatos e partidos de oposição, mas também surgiam de aliados tradicionais, como os empresários e os parlamentares governistas. Em maio de 1983, Delfim foi convocado pelo próprio PDS para esclarecer ao Congresso por que o Brasil acumulara uma dívida de 88 bilhões de dólares nos anos anteriores.

Além das críticas à condução da política econômica, Delfim também foi envolvido em denúncias, tais como a da desastrosa administração da dívida polonesa com o Brasil, conhecida como o Caso Polonetas, acompanhada pela quebra do Montepio Capemi e do conglomerado financeiro Coroa-Brastel. Em setembro de 1983, Delfim também foi acusado de ter recebido comissões para facilitar negócios de empresas francesas (10% nas negociações feitas na França) quando era embaixador do Brasil em Paris.

Naquele momento, duas grandes questões agitavam os debates em torno da política econômica: as dívidas externa (90 bilhões de dólares) e interna (21 trilhões de cruzeiros) e a política salarial. Os dois pontos eram evocados das mais distintas formas quando o assunto era o principal problema econômico da época, a inflação. Com o objetivo de pôr em ordem o balanço, o governo conseguiu negociar novo empréstimo do FMI, ainda em 1983, num financiamento conhecido como “empréstimo Jumbo”. Na tentativa de conter o estouro do défict público, a metade dos 6,5 bilhões de dólares prometidos pelo FMI foi diretamente comprometida com dívidas bancárias e comerciais no exterior.

O empréstimo só foi negociado porque o Congresso, ao aprovar o Decreto nº 2.065, desenhou uma nova política salarial, precisamente um dos itens impostos pelo FMI para o programa de reajuste. Tratava-se da quarta tentativa do governo de aprovar uma nova política salarial, limitando os reajustes de salários a 80% do INPC, conforme haviam recomendado os técnicos do FMI. A tramitação da proposta de política salarial do governo, durante o segundo semestre de 1983, foi o principal cavalo de batalha da oposição naquela conjuntura. Na discussão da nova política salarial, em setembro de 1983, pela primeira vez em 18 anos o Congresso derrubou o Decreto-Lei nº 2.024 — baixado pelo Executivo em maio de 1983, em substituição ao Decreto nº 2.012, de janeiro —, obrigando o presidente a repensar toda a estratégia de sustentação política de seu plano econômico. Nos dois casos, a idéia era reverter a política salarial em vigor desde 1979, que estabelecia reajustes salariais semestrais de 10% acima do INPC para os que ganhavam entre um e três salários mínimos e de 100% do INPC para os que recebessem entre três e dez salários-mínimos. Os decretos de 1983 limitavam os reajustes ao INPC e apenas as faixas salariais mais baixas recebiam reajustes equivalentes ao aumento dos preços. Porém, quando o Congresso rejeitou o Decreto nº 2.024, esse já não mais vigorava, já que fora substituído por regra ainda mais austera, prevista no Decreto-Lei nº 2.045, baixado em junho, que limitava o reajuste de todas as faixas salariais a 80% do INPC. Segundo a imprensa, a oposição matou o 2.024 não pelo que ele estabelecia, e sim pelo que ele era: um decreto.

Após a derrota na votação do decreto anterior, o governo procurou cercar-se de garantias extraordinárias para aprovar o Decreto nº 2.045. No Congresso, à base do entendimento, procurou negociar alterações na política salarial para as faixas de remuneração mais baixas, mas o acordo construído pelas lideranças governistas foi sepultado por Delfim. Diante da pressão popular em Brasília contra o decreto, Figueiredo recorreu, pela primeira vez após a suspensão do AI-5, em 1979, à suspensão parcial das liberdades públicas, colocando Brasília em estado de emergência e encarregando o comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, de aplicar as medidas coercitivas. O acordo no Congresso não foi vitorioso e o Decreto nº 2.045 não foi aprovado.

Derrubado o Decreto nº 2.045, o governo baixou nova regra (Decreto-Lei nº 2.064) condenada a ter vida curta, pois preservava reajustes integrais para a faixa de até três mínimos, mas instituía reajustes progressivamente menores para os salários mais altos, o que foi recebido como uma punição mais violenta da classe média. Após uma semana de atritos entre Delfim e os líderes governistas no Congresso, adotou-se uma fórmula média, de aumento de 87% do INPC para toda a massa salarial, que gerou a edição do Decreto-Lei nº 2.065.

Por trás das medidas autoritárias e dos atritos entre governo e oposição e entre aliados do próprio governo na discussão da política salarial estava o crescimento da pressão popular, em especial por intermédio das demonstrações de força do movimento sindical, como a greve geral em julho daquele ano, contra a política salarial, e a criação da CUT no mês seguinte.

Em 1984 a economia se recuperou um pouco e o PIB cresceu 5,4% reais.

A política externa

A partir do governo Garrastazu Médici (1969-1974), com a investidura do ministro Mário Gibson Barbosa no Itamarati, o Brasil começou a desvincular-se de seu tradicional alinhamento automático com os Estados Unidos para assumir uma posição que passou a ser conhecida como “pragmática”, defensora de uma aproximação com os países que oferecessem vantagens que pudessem interessar às aspirações nacionais de desenvolvimento econômico.

Em seu discurso de posse, Figueiredo deixou claro que se fixaria nessa orientação, buscando intercâmbio, inclusive, com nações que haviam adotado “sistemas diferentes do nosso”. As inúmeras viagens que realizou ao exterior, acrescidas de outras tantas visitas de chefes de Estado que o Brasil recebeu — da Europa ocidental, das Américas, do Pacífico e da África —, tinham como fundamento, assinalados em notas conjuntas, o fortalecimento do diálogo Norte-Sul, o revigoramento do princípio de não-intervenção, a proscrição do colonialismo, a condenação à discriminação racial e o combate ao protecionismo, entendido como forma de asfixiar as economias dos países emergentes.

Sete dias depois de empossado, Figueiredo recebeu a visita do vice-presidente Walter Mondale, dos Estados Unidos, na qualidade de enviado especial do presidente Jimmy Carter, propondo a intensificação de relações bilaterais. Em agosto, hospedou o primeiro-ministro espanhol, Adolfo Suárez, com quem debateu o crescimento do intercâmbio comercial e as afinidades no processo de redemocratização em curso nos dois países. Em outubro, recebeu a visita do presidente do Peru, general Francisco Morales Bermúdez. A declaração conjunta firmada pelos dois chefes de Estado ressaltava que o Peru venderia mais petróleo ao Brasil, a Petrobras passaria a fazer prospecções em território peruano e o Banco do Brasil abriria uma linha de crédito para a construção de uma hidrelétrica no Peru, a cargo de consórcios brasileiros. No mês seguinte, Figueiredo visitou o presidente Luis Herrera Campins, da Venezuela. Na agenda, foram tratados assuntos referentes à eliminação de todas as formas de colonialismo e racismo na América, à consolidação do regime representativo, ao reinício do diálogo Norte-Sul, ao revigoramento da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao fortalecimento dos pactos Andino e Amazônico e à maior participação do Brasil na compra de petróleo venezuelano.

Em janeiro de 1980, Carter enviou o general Andrew Jackson Goodpaster para obter a solidariedade do governo às represálias econômicas que os Estados Unidos vinham aplicando contra a União Soviética em virtude da invasão do Afeganistão. Carter queria a garantia de que o Brasil não venderia aos soviéticos as mercadorias embargadas pelos americanos. Figueiredo afirmou que não endossava a decisão americana, mas que não tomaria iniciativa para substituir com produtos brasileiros aqueles que os Estados Unidos haviam bloqueado.

No mês seguinte, saudando em Brasília Sekou Touré, presidente da Guiné-Conacri, Figueiredo centralizou seu discurso em torno das reivindicações autonomistas da Namíbia e do Zimbábue. Em abril, visitou o Paraguai e abriu uma linha de crédito de 11,5 milhões de dólares para construção de uma siderúrgica no país, a ser efetuada por firmas brasileiras.

As relações com a Argentina continuavam desestabilizadas desde o governo Médici, quando se iniciou a construção da usina hidrelétrica binacional de Itaipu, mas ambos os governos tinham interesse em que elas fossem reabilitadas. Em maio de 1980, Figueiredo seguiu para Buenos Aires, onde manteve longas conversações com o presidente argentino, general Jorge Rafael Videla. Foi criada uma comissão bilateral destinada a examinar os problemas ligados à integração econômica dos dois países. Na declaração conjunta, o governo brasileiro renovou sua solidariedade à Argentina em torno da disputa das ilhas Malvinas com a Inglaterra, ficando ainda acertado que os dois países dariam maior utilização às fontes hídricas do rio Uruguai, com a construção de quatro unidades geradoras de energia.

A condenação do racismo na África do Sul e a defesa da autodeterminação da Namíbia constituíram a ênfase do pronunciamento de Figueiredo em 16 de junho de 1980, quando saudou em Brasília o presidente Luís Cabral, da Guiné-Bissau. No dia 30, o papa João Paulo II chegou ao Brasil, sendo saudado por Figueiredo, que afirmou: “Acompanhamos e estimulamos os esforços da Santa Sé em prol do desarmamento e em favor da redução das distâncias que perigosamente separam os países pobres dos ricos.” A passagem do papa pelas grandes cidades provocou grandes concentrações populares, reunindo centenas de milhares de pessoas.

Com o presidente José Lopez Portillo, do México, que chegou ao Brasil em 30 de julho, o chefe do governo brasileiro abordou longamente a crise energética mundial e revelou o desejo de aumentar as compras de petróleo naquele país. Em agosto, Jorge Videla, da Argentina, retribuiu a visita de Figueiredo. Na ocasião foi firmado um acordo prevendo a compra pelo Brasil de 240 toneladas de concentrado de urânio e de três bilhões de metros cúbicos de gás por ano. Em troca, a Argentina receberia o vaso do reator da usina nuclear de Atucha II, fabricado pela Nuclebrás.

Em outubro, Figueiredo foi ao Chile, sendo bastante aplaudido pelo povo nas ruas de Santiago. Em seu discurso, deu ênfase à não-intervenção de um país em negócios internos do outro, manifestando-se compreensivelmente prudente em suas declarações à imprensa sobre a abertura política desencadeada no Brasil. De volta ao país, discursou em Belém na cerimônia de encerramento da I Reunião dos Ministros das Relações Exteriores dos Países Signatários do Tratado de Cooperação da Amazônia. Na ocasião, esses países — Brasil, Colômbia, Venezuela, Peru, Equador, Bolívia, Guiana e Suriname — assinaram a Declaração de Belém, afirmando que “o uso e aproveitamento dos recursos naturais em cada um dos territórios amazônicos nacionais constituem um direito soberano e exclusivo de cada Estado signatário do Tratado de Cooperação da Amazônia”.

O primeiro estadista estrangeiro a visitar o Brasil em 1981 foi o primeiro-ministro do Canadá, Pierre Trudeau, que chegou em 14 de janeiro, tratando com Figueiredo da intensificação do diálogo Norte-Sul. Em fins de janeiro, o presidente brasileiro chegou a Paris, onde inicialmente assinou acordo de 310 milhões de dólares para montagem, no Brasil, de uma usina termoelétrica acionada a carvão. O presidente francês, Valéry Giscard d’Estaing, interessou-se pelo projeto do Proálcool. No fim da visita de Figueiredo, os financiamentos acertados com os franceses já haviam alcançado 1,5 bilhão de dólares, incluindo transportes ferroviários e urbanos, transportes marítimos, Projeto Carajás, complexo industrial e portuário de Suape (PE) e desenvolvimento econômico de várzeas irrigáveis e cerrados. De Paris, Figueiredo foi a Lisboa, onde chegou a 1º de fevereiro. Na nota conjunta que assinou com o presidente Ramalho Eanes, o racismo foi mais uma vez condenado e a libertação da Namíbia, posta em destaque. Os dois presidentes solidarizaram-se com a independência de Timor Leste, criticaram a invasão soviética do Afeganistão e exaltaram a autonomia do Zimbábue.

Em março, Figueiredo embarcou para Bogotá. Dos entendimentos com o presidente Julio Cesar Turbay Ayala ficou decidido o aumento da compra de carvão mineral pelo Brasil a empresas privadas colombianas.

A viagem do chefe de Estado brasileiro à República Federal da Alemanha ocorreu em maio. Em Bonn, foram assinados protocolos de intenção prevendo investimentos no Brasil de 970 milhões de dólares nos setores de alumínio, indústrias químicas e transportes urbanos. Num dos encontros com o primeiro-ministro Helmut Schmidt, ficou assegurada a continuidade do acordo nuclear firmado no governo Geisel. Foi assinado um contrato de empréstimo de 62,2 milhões de dólares, repassados pelo Banco Alemão de Reconstrução em favor da Nuclebrás.

No fim de maio, Figueiredo encontrou-se em Paso de los Libres com o general Roberto Viola, que sucedera Videla no governo argentino. Na ocasião, ambos reafirmaram os propósitos dos dois países, já manifestados em ocasiões anteriores, no sentido de manter o Atlântico Sul à margem de confrontações internacionais, por tratar-se de área de interesse dos países localizados na região.

A convite do presidente Fernando Belaúnde Terry, Figueiredo desembarcou em Lima, no Peru, em 24 de julho. Foram firmados 13 acordos, destacando-se a cooperação técnica no âmbito da energia elétrica, ligações rodoviárias e siderurgia, incluindo-se a participação de empresas brasileiras na construção de complexos energéticos no Peru.

O presidente Herrera Campins, da Venezuela, visitou o Brasil em 10 de agosto. A nota conjunta, divulgada no dia seguinte, ressaltava a defesa da unidade latino-americana, o aumento do intercâmbio com os países do Terceiro Mundo, a agilização do diálogo Norte-Sul e a importância da OEA, “como organismo de consulta, coordenação e cooperação da América Latina em matéria de energia”.

A guerra civil que se desenrolava em El Salvador foi o tema principal tratado durante a visita de Turbay Ayala, da Colômbia, que chegou a Brasília nos primeiros dias de setembro, frisando a nota conjunta que o problema deveria ser resolvido sem ingerências externas. O mesmo assunto foi ainda destaque durante a visita ao Brasil do presidente do Equador, Osvaldo Hurtado, em fevereiro de 1982.

Karl Carstens, presidente da República Federal da Alemanha, veio ao Brasil nos primeiros dias de abril tratar, principalmente, da cooperação Norte-Sul.

Em pleno conflito anglo-argentino, decorrente da luta pela posse das ilhas Malvinas, Figueiredo desembarcou em Washington em 12 de maio, onde conversou separadamente com o presidente Ronald Reagan e com o secretário de Estado, Alexander Haig. Embora o presidente brasileiro discordasse da posição americana, de apoio militar à Inglaterra, tanto Figueiredo quanto Reagan defenderam uma solução pacífica decidida na esfera da Organização das Nações Unidas (ONU), que determinara, sem ser acatada, a suspensão das operações militares. Em julho, Figueiredo foi a Ottawa, onde prosseguiu as conversações com Pierre Trudeau.

Até o fim de 1982, o ponto culminante da política externa de Figueiredo foi o discurso pronunciado em 27 de setembro na abertura da 37ª Assembléia Geral da ONU, no qual criticou com severidade o protecionismo alfandegário imposto pelos países industrializados ao comércio internacional, reduzindo as possibilidades de colocação dos produtos das nações emergentes. Condenou a persistência das altas taxas de juros como fatores de asfixia dos investimentos produtivos e focalizou a extensão dos níveis mundiais de desemprego, atingindo simultaneamente as comunidades ricas e as subdesenvolvidas. Segundo Figueiredo, diante de tal quadro, “reaparecem hoje os sinais que lembram de forma dramática as experiências da década de 1930”. Salientou que “a política econômica das grandes potências está destruindo riquezas sem construir nada em seu lugar”. Assinalou que “o enrijecimento dos fluxos financeiros e o processo de inibição das trocas internacionais destroem a perspectiva de superação das dificuldades presentes”. A respeito dos principais problemas políticos existentes nas relações internacionais, atacou o racismo na África do Sul, reconheceu a legitimidade da soberania argentina sobre as Malvinas e manifestou seu horror diante do “massacre de civis palestinos em Beirute”. Afirmou também que “a questão do Oriente Médio só encontrará solução quando forem desocupados os territórios hoje sob ocupação militar e for reconhecido o direito do povo palestino a um Estado soberano”. Afirmou que “não é possível isolar as dificuldades da América Central da crise mundial, nem minimizar a responsabilidade dos países industrializados pela criação de condições propícias à retomada do desenvolvimento econômico e social”. Disse, por fim, que “a solução da presente crise não é uma questão de ajuda para os países em desenvolvimento. Trata-se, sim, de assegurar condições para que eles possam saldar seus compromissos com a justa remuneração de seu trabalho”.

Até fins de 1984, Figueiredo viajou a Paraguai, México, Nigéria, Guiné-Bissau, Senegal, Argélia, Cabo Verde, Bolívia, Marrocos, Espanha, Japão, China e finalmente Estados Unidos.

O fim do regime militar

Em abril de 1983, o deputado Dante de Oliveira, do PMDB de Mato Grosso, apresentou na Câmara uma proposta de emenda constitucional restabelecendo as eleições diretas para a presidência da República em novembro de 1984, prática extinta em outubro de 1965 pelo Ato Institucional nº 2, editado pelo marechal Castelo Branco. Embora inicialmente não tenha tido muita repercussão na Câmara, a emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida, começou a mobilizar a opinião pública e as lideranças parlamentares de oposição, produzindo também grande impacto no seio do partido governista, onde crescia o descontentamento com o governo Figueiredo. A partir de então, começou a ganhar corpo a proposta de estabelecimento de um pacto político entre as correntes oposicionistas e os descontentes do PDS comprometidos com a retomada da legalidade com vistas a lançar um candidato de consenso à presidência da República, em pleito direto a ser realizado em novembro de 1984.

De janeiro a abril de 1984, os comícios em favor das eleições diretas em todos os níveis reuniram multidões surpreendentes nas praças das capitais e principais cidades — no conjunto, mais de 30 milhões de brasileiros, segundo estimativa de seus articuladores —, convertendo-se em um movimento nacional de rejeição à continuidade do arbítrio. Como forma de pressão, a campanha fez instalar enormes placares com o nome de cada congressista, em pontos-chave das principais cidades, para anotar seu voto. Com efeito, a amplitude nacional da campanha das diretas e a crescente projeção de seus líderes levaram o governo a endurecer. Em 24 de abril, véspera da votação da emenda na Câmara, Figueiredo decretou estado de emergência em Brasília e em dez municípios de Goiás e designou para seu executor o general Newton Cruz, chefe do Comando Militar do Planalto, pertencente à “linha dura”. A justificativa oficial para a mobilização da força policial no cerco ao Congresso e contra as manifestações pró-diretas programadas foi a necessidade de defender os parlamentares do que foi denominado “coação popular”. Na realidade, os dispositivos repressivos foram acionados não apenas com o objetivo de intimidar os congressistas, mas especialmente para evitar que as manifestações populares encontrassem eco junto aos parlamentares do PDS menos submissos em seus compromissos de fidelidade ao governo. Newton Cruz executou as medidas à risca, dissolvendo passeatas estudantis, montando barreiras nas ruas e nas estradas de acesso à capital federal e cercando o prédio do Congresso.

Paralelamente a essas medidas, Figueiredo enviou ao Congresso, ainda em abril, proposta de emenda constitucional restabelecendo eleições diretas para presidente em 1988. Segundo o economista Ronaldo Costa Couto, essa medida visava a proteger politicamente os parlamentares do PDS contrários à emenda das diretas, deslocando o eixo da discussão, pois todos passariam a ser favoráveis às eleições diretas, cabendo a diferença sobre quando, se para o sucessor de Figueiredo ou só em 1988.

A emenda Dante de Oliveira foi votada na Câmara em 25 de abril de 1984, em sessão que durou 16 horas e na qual o PDS, cumprindo determinações do palácio do Planalto, retirou do plenário 113 parlamentares. Mesmo assim, 298 congressistas votaram a favor, 65 contra e três se abstiveram, faltando, portanto, apenas 22 votos favoráveis para que fosse atingido o total de 320 — 2/3 da composição da Câmara — necessário à aprovação da emenda, condição prévia para envio ao Senado.

Prevalecendo a opção indireta para a escolha do sucessor de Figueiredo em 1985, quatro candidatos — que já vinham se mobilizando desde 1983 — se apresentaram para disputar a indicação pelo PDS: o vice-presidente Aureliano Chaves, o senador por Pernambuco Marco Maciel, Mário Andreazza, ministro do Interior, e o deputado Paulo Maluf (SP). Para resolver o impasse, o presidente do partido, o senador maranhense José Sarney, com o apoio de Figueiredo, propôs em junho a realização de eleições prévias entre todos os filiados que ocupassem postos eletivos ou cargos em diretórios, de modo a se definir um candidato de consenso a ser levado à convenção partidária marcada para setembro. Contudo, a recusa de Maluf a participar desse tipo de consulta, que considerou um casuísmo de seus adversários para deter sua candidatura, levou Figueiredo a retirar seu apoio à proposta. Tal recuo permitiu a Maluf arregimentar forças para derrotar a proposta de realização de prévias na reunião do diretório nacional convocada justamente para planejar a sua realização. O episódio culminaria com a renúncia de Sarney da presidência do PDS, concretizando a ruptura da unidade da agremiação governista.

Nesse momento, Figueiredo não apoiava ninguém, principalmente seu vice-presidente, com quem se indispusera. E ainda tinha a tese de Brizola, de extensão do mandato por mais dois anos, que voltava ao debate político, com o apoio dos ministros militares e de um setor do PDS. Segundo Ronaldo Costa Couto, “o que havia era o governo agonizante de um presidente contraditório e surpreendente, com o estado de saúde sob suspeita, desiludido e hostil aos políticos profissionais. E também não insensível ao continuísmo”.

Em meio a essa crise político-institucional, a oposição contra-atacou a emenda Figueiredo, como ficou conhecida, com uma subemenda antecipando a data da realização do pleito direto. Foi o bastante para que os comícios públicos, esvaziados depois de 25 de abril, voltassem a agitar as praças das principais capitais. Ainda em junho, às vésperas da votação da emenda, o PMDB e os partidos aliados, inclusive os descontentes do PDS aglutinados em torno de Sarney, Aureliano e Maciel, obtiveram destaque para a subemenda das diretas, o que levou o governo, temeroso de nova derrota no Congresso, a retirar sua emenda, produzindo novos impasses nas negociações.

A sucessão presidencial não transcorreu sem reiteradas ameaças destinadas a intranqüilizar o encaminhamento do processo eleitoral. A crise fazia-se sentir nas forças armadas e entre o poder constituído e o meio político e decorria de projetos que visavam a contrariar a mais provável decisão do Colégio Eleitoral em favor do candidato da Aliança Democrática. Apesar dos esforços de Figueiredo, que passou a incluir a presença de Maluf — escolhido em convenção do PDS em agosto de 1984, quando derrotou Mário Andreazza — em atos oficiais do governo federal, numa tentativa de vencer as resistências que ainda persistiam no partido e em setores importantes do regime contra o ex-governador paulista, o candidato oficial não parecia capaz de se afirmar como uma real opção para o governo.

Boatos foram disseminados em Brasília sugerindo que um poderoso setor das forças armadas ameaçava intervir no processo eleitoral, objetivando estender o mandato de Figueiredo. Em 21 de setembro, os altos comandos das três forças armadas reuniram-se no Rio e em Brasília para analisar o desenvolvimento da campanha sucessória, da qual a opinião pública vinha participando com surpreendente intensidade. Os pronunciamentos das chefias militares, que possibilitavam entrever dissensões, deixaram o meio político inseguro quanto a possíveis tentativas de intimidação da campanha oposicionista e de deslegitimação do processo sucessório. Em 26 de outubro, a Folha de S. Paulo publicou reportagem relatando as providências do governo para a execução de medidas de emergência previstas para vigorar a partir de 2 ou 3 de janeiro do ano seguinte. Falava em prontidão na unidade de fuzileiros navais em Brasília, onde haviam sido observados exercícios de adestramento que faziam prever o desencadeamento de ações repressivas.

Com as sucessivas declarações militares e a decisão de Figueiredo de retirar Newton Cruz da chefia do Comando Militar do Planalto e da 11ª Região Militar, os ânimos começaram a serenar. O incêndio de parte do escritório da Aliança Democrática em Brasília, em 26 de novembro, porém, novamente veio abalar a confiança da opinião pública quanto ao destino da abertura. Foi, porém, com o pronunciamento do presidente em 5 de dezembro, perante mais de 70 oficiais-generais das três forças, que o meio político e os diversos segmentos da sociedade interessados na consolidação do processo democrático tiveram a certeza de que a sucessão presidencial chegaria a seu desfecho sem os tropeços do veto militar. Estabelecendo íntima conexão entre a lealdade individual aos poderes do Estado e a coexistência democrática dos agrupamentos sociais diversificados, Figueiredo conclamava a oficialidade: “Na disputa pelo poder, pela hegemonia econômica ou social, dentro dos limites da sã convivência, os homens reforçarão os laços que viabilizam a sociedade, fortalecerão sua personalidade e consolidarão seus valores.”

Em 15 de janeiro, os membros do Colégio Eleitoral deram 480 votos a Tancredo Neves e apenas 180 a Paulo Maluf, tendo sido registradas 17 abstenções e nove ausências. Estava decidido o fim do regime militar.

Amargurado e frustrado, Figueiredo proferiu, durante uma entrevista para a TV Manchete ainda em janeiro, uma frase que simbolizaria o seu desgosto com a vida pública. Quando o entrevistador pediu-lhe para dirigir algumas palavras “ao brasileiro médio, do povo, povão”, o presidente respondeu: “Bom, o povo, o povão que poderá me escutar será talvez os 70% dos brasileiros que estão apoiando o Tancredo. Então desejo que eles tenham razão, que o doutor Tancredo consiga fazer um bom governo para eles. E que eles tenham consigo o doutor Tancredo, e que ele dê a eles o que não consegui. E desejo felicidades a eles. E que me esqueçam. Aliás, pedi isso desde o começo, se lembra?” Dias depois, em outra entrevista, declarou que tinha sido mal interpretado e que pedira que a imprensa o esquecesse.

Tancredo, que vinha sentindo fortes dores abdominais desde o início de março, teve que se internar na véspera da posse, marcada para 15 de março, com uma crise de diverticulite, que gera um quadro agudo, provocando dores semelhantes às crises de apendicite. Depois de uma série de complicações orgânicas e de se submeter a sete intervenções cirúrgicas, faleceria em 21 de abril de 1985.

A solução para o problema criado pelo impedimento de Tancredo foi objeto de considerações jurídico-políticas. Alguns ministros resistiram à passagem da faixa presidencial e Figueiredo, rompido com Sarney, chegou a pensar em entregar o governo ao presidente do STF, caso não se chegasse a uma conclusão sobre quem deveria ser empossado. Circularam notícias de que o chefe da Casa Civil do governo, Leitão de Abreu, emitira parecer sustentando a tese de que o presidente da Câmara, Ulisses Guimarães, deveria assumir como presidente da República em exercício. Essa tese seria apoiada por setores do PMDB, mas não pelo PFL. Na véspera da posse, contudo, uma reunião entre Leitão de Abreu e líderes políticos teria deliberado que Sarney assumiria interinamente a presidência.

Sarney foi empossado em 15 de março sem a presença de Figueiredo, que se recusou a participar da cerimônia de transmissão do cargo por considerá-lo traidor do PDS e de seu governo.

Com a saída de Figueiredo da presidência, encerrava-se, assim, tanto o processo de abertura “lenta, gradual e segura” iniciado por Geisel quanto, oficialmente, o período de 21 anos de regime militar.

Fora do poder

Figueiredo deixou Brasília ainda no dia 15. Passando a viver entre seu sítio em Nogueira, distrito de Petrópolis (RJ), e a capital fluminense, afastou-se totalmente da vida política e da imprensa até 1987, quando concedeu algumas entrevistas, manifestando-se a respeito de alguns temas tratados na Assembléia Nacional Constituinte, que iniciara seus trabalhos em fevereiro desse ano. Nas entrevistas, condenou as modificações propostas em relação ao papel das forças armadas, não permitindo sua intervenção em momentos de crise. Segundo Figueiredo, “se as forças armadas tiverem que intervir, vão fazê-lo, porque não vai depender do que estiver escrito na Constituição, vai depender do que estiver escrito no coração de cada brasileiro”.

Em agosto de 1987 redigiu um texto “de alerta dirigido à nação, contra todas as formas de radicalismo que ameaçavam a redação da nova Constituição”. No panfleto, Figueiredo afirmava que no governo do presidente José Sarney “a democracia estava sendo comprometida paulatina e sistematicamente em função de motivações outras que não coincidem com os legítimos interesses nacionais”. Além disso, existia o perigo dos “movimentos de contestação radical que, por defenderem uma reforma agrária anárquica, poderiam levar o país a uma guerra civil”.

A partir de setembro começou a declarar, em entrevistas, que era necessária a união dos partidos de centro visando à construção de uma candidatura à presidência da República no pleito de novembro de 1989. Tendo como objetivo principal barrar o crescimento das esquerdas, um grupo de amigos de Figueiredo começou a organizar um movimento que viabilizasse sua possível candidatura presidencial. Foram programadas viagens pelo país e o lançamento mensal de manifestos à nação com análises sobre a conjuntura política. Em dezembro desfiliou-se do PDS e, meses depois, foi convidado a ingressar no Partido Social Democrático (PSD). Chegando a participar do programa nacional da agremiação em março de 1988, decidiu não se filiar. Declarando-se, ainda, desiludido com a política, acabaria não se candidatando a qualquer cargo eletivo.

Em maio seguinte, o médico do Exército Amílcar Lobo, participante de sessões de tortura durante o regime militar, declarou ao Jornal do Brasil que vira, em 1971, Figueiredo — então chefe da Casa Militar do governo Médici — no Centro de Informações do Exército (CIE) dando orientações sobre métodos de tortura a presos políticos para o então chefe do CIE, coronel José Luís Coelho Neto. Figueiredo declarou que “nunca se deve valorizar a infâmia pelo oferecimento de resposta” e que, partindo de alguém que foi repudiado pelos próprios colegas de profissão, “minha atitude só pode ser de indiferença e desprezo pelo caluniador”.

Em julho de 1988, Figueiredo sofreu mais uma acusação, dessa vez de uma ex-funcionária do SNI, que entrou na Justiça com uma ação de investigação de paternidade para efeito de pensão alimentícia de seu filho, fruto, segundo ela, de sua relação com o ex-presidente. Figueiredo — que entrou com uma queixa-crime contra a acusadora — negou a existência de qualquer relação amorosa e declarou que havia interesses políticos por trás desse episódio.

Em entrevista ao jornal O Globo, em abril de 1991, Figueiredo reconheceu que o atentado do Riocentro fora obra dos militares apontados no inquérito policial-militar arquivado pelo STM e que não interveio no trabalho da Justiça em nome da independência dos poderes, embora o resultado não tenha, segundo o ex-presidente, “convencido ninguém porque não chegou a nada”. Numa entrevista posterior, admitiria também “a possibilidade de ter havido abusos de grupos paralelos — fora do controle do governo — e até mesmo torturas cometidas pelo pessoal de baixo, à revelia dos comandantes”.

Integrando o Conselho Nacional de Mobilização (CMN) — entidade formada por civis ligados à Escola Superior de Guerra, militares da reserva e da ativa, dirigentes da Maçonaria, do Rotary e do Lions Club —, apoiou a aprovação, em 29 de setembro de 1992, pela Câmara, da abertura do processo de impeachment do presidente Fernando Collor, acusado de crime de responsabilidade por ligações com um esquema de corrupção liderado pelo ex-tesoureiro de sua campanha presidencial Paulo César Farias. Afastado da presidência logo após a votação na Câmara, Collor renunciou em 29 de dezembro de 1992, pouco antes da conclusão do processo pelo Senado, sendo efetivado na presidência o vice Itamar Franco, que vinha exercendo o cargo interinamente desde 2 de outubro.

Em abril de 1993 um grupo de amigos de Figueiredo começou a articular o lançamento de sua candidatura presidencial no pleito de outubro do ano seguinte, idéia que não foi aprovada pelo ex-presidente. Em maio de 1994 Figueiredo agrediu dois jornalistas presentes num ato de apoio de taxistas à candidatura do general Newton Cruz ao governo do estado do Rio de Janeiro. Reclamando da presença de jornalistas e argumentando que não era obrigado a dar entrevistas ou justificar suas atitudes, tentou arrancar o bloco de anotações de um repórter do jornal O Globo e empurrou a câmera contra o rosto de uma fotógrafa.

Em novembro de 1995 internou-se numa clínica no Rio de Janeiro para operar um aneurisma abdominal, mas problemas pós-operatórios complicaram o estado de saúde do ex-presidente, que acabou permanecendo 21 dias na Unidade de Terapia Intensiva, seis deles em estado de coma. Por não ter tido os olhos devidamente protegidos durante a fase pós-operatória, sofreu ressecamento e ulceração das córneas, tendo perda quase total da visão. Mesmo com a saúde debilitada, participou, em setembro de 1996, de uma reunião no Clube Militar, na qual foi aprovado um recurso que seria enviado ao presidente Fernando Henrique Cardoso e ao ministro da Justiça, Nélson Jobim, contra a concessão de indenização às famílias dos guerrilheiros Carlos Lamarca e Carlos Marighella.

A partir de 1997, com sérios problemas cardíacos e de coluna, passou a viver isolado em seu apartamento em São Conrado, no Rio de Janeiro, evitando a imprensa e até os amigos mais próximos. Sofrendo de fortes dores na coluna, em julho desse ano submeteu-se a uma cirurgia com um médium que dizia incorporar o espírito do médico alemão dr. Fritz.

Em novembro abriu uma exceção ao seu isolamento e compareceu, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ao ato de lançamento da candidatura do general Newton Cruz à Câmara no pleito de outubro de 1998.

Casou-se com Dulce Maria de Guimarães Castro, com quem teve dois filhos.

Faleceu no Rio de Janeiro no dia 24 de dezembro de 1999.

Sobre a sucessão do general Geisel, a escolha de Figueiredo e aspectos de seu governo, foram publicados: A quinta estrela; como se tenta fazer um presidente no Brasil (1978), de Getúlio Bittencourt; A segunda guerra: sucessão de Geisel (1979), de André Gustavo Stumpf e Merval Pereira Filho; O outro lado do poder (1979) e Tempo de crise (1980), de Hugo Abreu, e Abertura, a história de uma crise (1982), de Bernardo Kucinski. Excertos de discursos de pronunciamentos de Figueiredo, organizados de forma crítica, foram publicados em O livro dos pensamentos do general Figueiredo (1978).

Plínio de Abreu Ramos/Marcelo Costa

 

FONTES: CHAGAS, C. 113; CORRESP. GAB. MIL. PRES. REP.; COUTO, R. História indiscreta; Encic. Mirador; Estado de S. Paulo (22/8/87, 15 e 20/1/88, 13/9/92, 23/12/96); Folha de S. Paulo (13/3, 18/9 e 23/12/87, 22/1, 17 e 19/7/88, 18/9/96); Globo (2/1/83, 14/3/85, 17/7 e 1/10/88, 28/4/91, 2/7/92, 30/3, 17/7 e 6/9/97); GÓIS, V. Brasil; INST. NAC. LIVRO. Índice; IstoÉ (20/7/77, 11/1 e 5/4/78); Jornal de Brasília (4/1/78); Jornal do Brasil (3, 8 e 17/7 e 29/11/77, 7 e 17/1, 23/2, 16/3, 1, 7 e 9/4, 27 e 29/7, 12/8 e 12/11/78, 20/1, 14/2, 26/6, 28/8 e 17/10/79, 19/1, 11/7, 28/8 e 15/10/80, 1/5, 1/7, 19/9 e 23/12/81, 25/5/82, 23/3/85, 19 e 21/9, 15/10 e 22/12/87, 19 e 20/5/88, 5/9/92, 9 e 13/4/93, 7/5/94, 16/2/97); MALVÁSIO, L. História; Manchete (30/7/77); Perfil (1971, 1972, 1973 e 1975); Veja (16/5/73, 20/7/77, 4/1/78, 30/1/85 ); Who’s who in Brazil.